Entenda o que é aborto de repetição e saiba por que ele acontece
Perdas gestacionais seguidas são um sinal de alerta para investigar a saúde da mulher, mas não representam o fim das chances de uma próxima gravidez.
Apesar de ainda ser visto como tabu social por alguns, o tema da perda gestacional tem sido cada vez mais debatido, muito por conta das redes sociais e um maior incentivo para falarmos sobre maternidade abertamente de maneira não romantizada.
Inclusive, em 15 de outubro, celebra-se o Dia Internacional da Sensibilização ou Conscientização à Perda Gestacional, na intenção de que o assunto continue em pauta e cada vez mais pessoas tenham o suporte necessário para enfrentar o trauma e, quem sabe, tentar engravidar novamente.
Mesmo assim, fala-se muito pouco ou quase nada sobre o chamado aborto de repetição ou, como o nome adianta, a perda gestacional que acontece de maneira recorrente. Apesar de ser um forte indício de que a saúde da paciente precisa ser investigada, mediante acompanhamento e tratamento médico adequados é possível tentar entender as causas do problema e encontrar soluções, caso a pessoa decida fazer mais uma tentativa.
Conversamos com especialistas para explicar, em detalhes, sobre o aborto de repetição, e mostramos o que pode ser feito para evitá-lo.
O que é aborto de repetição?
O aborto de repetição, que também leva o nome de abortamento habitual, é definido como a ocorrência de três ou mais perdas gestacionais consecutivas e espontâneas, ocorridas antes da 22ª semana, em gestações reconhecidas pelo exame de ultrassom ou pelo estudo do produto de concepção, explica a ginecologista Grazielly Teles.
Na maior parte dos casos, não é possível identificar apenas uma causa específica para os abortamentos de repetição, e na maioria das situações o prognóstico acaba sendo favorável para que gestações ocorram posteriormente.
Apesar das causas do aborto de repetição serem diferentes de pessoa para pessoa, alguns fatores, como os genéticos, de idade, anatômicos, imunológicos, endocrinológicos, ambientais e relacionados ao estilo de vida, porém, podem estar ligados ao diagnóstico das perdas recorrentes.
Principais fatores ligados à perda gestacional recorrente
- Fatores genéticos: Alterações cromossômicas parentais, as quais aparecem em cerca de 5% dos casais que tentam engravidar, podem ser consideradas uma das causas do aborto de repetição. Estas alterações aparecem, geralmente, pelas translocações dos genes e mudanças dos cromossomos sexuais. Outra questão a ser considerada, acrescenta Geraldo Caldeira, ginecologista e obstetra membro da Federação Brasileira das Associações de Ginecologia e Obstetrícia (FEBRASGO), é a chamada ovopatia, ou seja, quando o óvulo estava alterado geneticamente, o que causou uma malformação no feto e, por consequência, o abortamento espontâneo.
- Anatomia: Alterações uterinas como as anomalias congênitas – útero bicorno, septado, didelfo e unicorno -, pólipos endometriais, sinéquias uterinas (cicatrizes) e miomas submucosos que comprometem o espaço da cavidade uterina podem ser outras causas do aborto de repetição. Normalmente, eles podem ser diagnosticados mediante exames como a ultrassonografia transvaginal, histerossalpingografia, a histeroscopia e ressonância magnética. “Um diagnóstico anatômico relacionado às perdas tardias que também deve ser levado em consideração é a incompetência cervical, pela qual ocorre a falha no sistema oclusivo do útero favorecendo abortos tardios e partos prematuros”, diz a ginecologista.
- Trombofilia: O obstetra Geraldo ressalta também o diagnóstico da trombofilia, condição de hipercoagulabilidade sanguínea. Em outras palavras, é como se a grávida ficasse com o sangue mais espesso, problema que, quando não tratado (mediante medicação), pode levar a complicações sérias para a gestante e para o feto – incluindo o abortamento. De acordo com o Colégio Americano de Ginecologia e Obstetrícia, trombofilias devem ser investigadas apenas em casos de pacientes com histórico pessoal ou familiar de tromboembolismo.
- Endometrite: Trata-se da presença de uma bactéria no endométrio, responsável por causar uma espécie de processo inflamatório no útero. “Toda paciente que já sofreu uma perda gestacional deve, também, pesquisar sobre a endometrite, já que ela é mais uma das principais causas do aborto de repetição”, afirma.
- Fatores imunológicos: A presença da chamada Síndrome antifosfolípide (SAF), menciona Grazielly, apresenta uma taxa de 15 a 20% nos abortos de repetição, e é um dos principais fatores imunológicos relacionados ao problema. Por ser uma doença autoimune, acredita-se que os autoanticorpos de quem possui a SAF interfiram no desenvolvimento embrionário por uma série de mecanismos, como fenômenos inflamatórios locais e a trombose dos vasos da placenta.
- Fatores endocrinológicos: O hipotireoidismo quando não tratado, o mau controle da glicemia em casos de diabetes, a Síndrome dos Ovários Policísticos (SOP), a Hiperprolactinemia (anomalia causada pela produção elevada de prolactina) e a insuficiência lútea (onde ocorre a incapacidade do corpo lúteo produzir progesterona para a manutenção da gestação) são outras condições capazes de contribuir para perdas gestacionais recorrentes.
- Estilo de vida: Manter hábitos considerados não saudáveis durante a gravidez, como má alimentação, tabagismo e consumo de álcool podem contribuir igualmente para a ocorrência dos abortos de repetição, que também podem estar ligados à obesidade.
Será que dá para prevenir?
“Tudo está baseado no diagnóstico. Este é o passo número um e, baseado nele, a gente propõe o tratamento correto para minimizar o risco de um outro aborto”, pontua Geraldo, que completa ao dizer que, apesar de o aborto de repetição ser diagnosticado a partir de três perdas gestacionais, é sempre indicado pelos médicos que o estudo genético do material de aborto seja feito desde a primeira perda gestacional. “Recomendamos a histeroscopia e a pesquisa de trombofilia. Não vamos esperar que a paciente passe por mais duas perdas, por exemplo, para entender que aquilo deveria ter sido pesquisado antes”.
Após o diagnóstico da causa do aborto de repetição, é recomendado realizar o tratamento precoce antes mesmo de uma nova programação gestacional. Por outro lado, a médica diz que metade dos casos de abortamento de repetição podem não apresentar uma explicação conclusiva, mesmo quando o casal passa por múltiplos exames laboratoriais com resultados considerados normais.
“A princípio devemos orientar a paciente a manter um bom estilo de vida, suspendendo o tabagismo, diminuindo o consumo de álcool e cafeína, praticando exercícios físicos e mantendo o peso em equilíbrio. Em alguns casos podemos suplementar com ácido fólico e progesterona, na intenção de evitar malformações do tubo neural e de ocorrer a perda precoce por insuficiência do corpo lúteo”, destaca a médica.
Pensando em alternativas viáveis
Quando o tratamento é feito e o novo embrião é saudável, explicam os especialistas, na maioria dos casos a gestação tem um bom desfecho. Porém, caso as perdas gestacionais continuem acontecendo, mesmo diante da chamada regularidade clínica, a causa genética deve ser considerada como o principal fator de risco.
“Uma das fontes alternativas mais utilizadas nos casos de histórico de abortamento de repetição, são as reproduções assistidas, com técnicas que selecionam embriões morfologicamente viáveis podendo reduzir o risco de um novo abortamento de repetição em uma próxima gestação”, endossa Grazielly.
Considerada uma das técnicas com resultados mais expressivos atualmente, a fertilização in vitro apresenta números significativos de gestações viáveis por ciclo de realização, e é uma das melhores opções para quem passou pelos abortamentos de repetição, mas quer continuar tentando a gravidez. Antes de recorrer à FIV, na qual são realizadas biópsias dos embriões para descobrir quais são viáveis, porém, é recomendado que o casal passe por uma investigação médica completa.
É preciso olhar para a saúde mental dos pais
Muitas vezes, quem enfrenta o aborto de repetição deve, ainda, recorrer a um tratamento psicológico adequado, já que esta é uma jornada extremamente desgastante também do ponto de vista emocional, com repercussões que muitas vezes atravessam aspectos da vida pessoal, profissional e familiar da paciente.
Nesse sentido, Grazielly destaca os sentimentos como os de solidão, ansiedade, culpa, medo de falar, de ser punida, de ser humilhada e sensação de incapacidade de engravidar novamente, que devem ser respeitados e validados.
“A principal abordagem aqui, por parte da equipe (médica e psicológica), é de um tratamento digno, visando sempre respeitar a dor, o desejo e a privacidade da paciente. A psicoterapia, que começa já na internação hospitalar, é um dos fatores de grande ajuda e resolutividade da assistência imediata. Esta mulher deve ser acolhida pela equipe hospitalar e pelos seus familiares, sem pré-julgamentos e imposição de valores”, ressalta a médica.