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“Quem é a mãe?”: Casal homoafetivo relata o que não aguenta mais escutar

Reeducar o pensamento, repensar falas e ouvir o que a comunidade LGBTQIA+ tem a dizer são as melhores formas de lutar contra a homofobia na prática.

Por Ketlyn Araujo
Atualizado em 28 jun 2021, 07h55 - Publicado em 27 jun 2021, 14h00

Foi apenas em 2013 que o casamento entre pessoas do mesmo sexo foi regulamentado no Brasil, dois anos após o reconhecimento da união estável entre casais homoafetivos, que aconteceu em 2011. Os avanços sociais por aqui caminham de forma lenta, e apesar de notarmos algumas mudanças significativas nas últimas décadas, o Brasil permanece sendo um dos países que mais matam e discriminam pessoas LGBTQIA+ no mundo todo, de acordo com um levantamento feito pelo Grupo Gay da Bahia (GGB), em 2019.

Para que a transformação seja efetiva, porém, não cabe apenas a implementação de medidas e políticas afirmativas por órgãos públicos, mas também uma virada no pensamento homofóbico ainda recorrente e enraizado por parte da sociedade. Educar crianças a favor da diversidade desde cedo, dar apoio e acolhimento a adolescentes que se descobrem não-heterossexuais e, principalmente, reeducar o pensamento de adultos que cresceram em ambientes homofóbicos é essencial.

“A medida mais sólida para acabar com o preconceito, seja ele qual for, é a educação. O conhecimento e o diálogo transformam e, mais do que isso, mudam paradigmas”, diz a psicóloga cognitivo-comportamental Rosana Cibok, que reforça o fato de a questão da identidade de gênero ser algo particular e ligado à liberdade em escolher pelo nosso bem-estar e felicidade.

Um dos primeiros passos para isso é eliminar do vocabulário falas e comentários que, a princípio, parecem inofensivos, mas na verdade são, sim, homofóbicos. Assim como acontece com as famílias heteronormativas, casais homoafetivos que decidem pela paternidade ou maternidade conjunta precisam ser ouvidos e respeitados.

“Quem é a mãe?”

Apesar de sempre terem tido o apoio da família, a bancária Renata Geromel e a fisioterapeuta Larissa Geromel, casadas desde 2016 e mães dos gêmeos Giovana e João, de 2 anos e 10 meses, falam que o preconceito contra um casal LGBTQIA+, muitas vezes, é velado e naturalizado.

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“O preconceito nem sempre é explícito, e com a gente chegava em forma de olhares quando passeávamos juntas por algum lugar, de mãos dadas ou abraçadas, como de costume, na época em que a Larissa estava grávida”, fala Renata.

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Logo depois que as crianças nasceram, conta o casal, era bastante comum que alguém elogiasse os gêmeos e, na sequência, perguntasse “quem é a mãe?”.

“Quando isso acontece, sempre respondemos: ‘as duas, somos um casal’, e algumas vezes recebemos olhares perplexos de volta. A pergunta não tem cabimento e é ofensiva, porque quem a faz pretende validar a maternidade daquela que gerou a criança, como se ela fosse a ‘mãe de verdade’”, falam ambas.

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Rosana reforça essa necessidade de que pessoas heterossexuais usem do bom senso e da empatia antes de se dirigirem a um casal homoafetivo, principalmente quando não existe uma relação de intimidade entre os envolvidos. Isso porque, conforme explica a profissional, agentes externos são os mais diversos, e acabam interferindo de uma maneira bem agressiva e discriminatória na identidade de gênero do outro. Na dúvida, não julgar e optar pelo silêncio é o melhor caminho.

Reforçar papéis de gênero, como ao perguntar para uma família formada por dois pais ‘quem é o pai e quem é a mãe das crianças’, usar da máxima ‘não tenho nada contra gays, tenho vários amigos homossexuais’, e questionar a maneira que pessoas LGBTQIA+ escolhem se vestir, reforça a especialista, no fim das contas é tão homofóbico quanto usar de um xingamento ‘padrão’.

“De quem foram os óvulos?”

Renata e Larissa sempre quiseram ser mães, e após tentarem sem sucesso a adoção, que culminou em um processo perdido e muita desinformação por parte do fórum local, decidiram recorrer à fertilização in vitro (FIV), responsável pelo nascimento dos gêmeos. Por conta disso, outro comentário recorrente na vida das duas é o questionamento sobre de quem foram os óvulos usados para a FIV, como se isso também validasse a maternidade de cada uma delas.

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“Essa também é uma pergunta frequentemente direcionada a casais de lésbicas, no mesmo objetivo de saber quem é a ‘mãe de verdade’. A questão é que muitos casais heterossexuais, seja por problemas genéticos ou de saúde, não podem usar os próprios óvulos ou sêmen, recorrendo ao banco de doadores, mas ninguém pergunta para um casal hétero que faz tratamento de fertilidade de quem eram os óvulos ou o sêmen”, desabafam. Para completar, há quem, ao ouvir a história das duas, fale sobre o doador de sêmen como “pai da criança”, o que é igualmente desrespeitoso e ofensivo.

“Família é pai e mãe, e não mãe e mãe”

Outra situação que pode acontecer, conforme aponta Rosana, é quando a criança que é filha de um casal homoafetivo sofre preconceito dentro do ambiente escolar, por parte de colegas ou até de outros pais de alunos. Nesse caso, ou seja, se o pequeno relatar à família que vem sendo vítima de comentários homofóbicos, o melhor a fazer é recorrer à direção da escola, de forma honesta e pedindo por mudanças, e promover à criança respaldo psicológico e apoio familiar.

“Na minha opinião, as escolas deveriam ter um estatuto que prevê o acolhimento de casais homoafetivos, pois enquanto não se tem esse entendimento completo da questão por parte da sociedade, algumas medidas são necessárias. Entendemos que para muita gente esse assunto ainda é tabu, mas ele pode ser quebrado ainda na educação básica, seja por meio de reuniões com os pais e o corpo docente, a fim de maior interação, ou recorrendo às técnicas da psicoeducação”, sugere ela.

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“Nome do pai?”

Além das ofensas que chegam por meio de comentários homofóbicos, o preconceito sofrido por uma família LGBTQIA+ também pode ser notado graças a um despreparo de algumas instituições na hora de lidarem com a diversidade sexual. Aqui, a homofobia é reconhecida nos detalhes.

Larissa e Renata contam, por exemplo, que mesmo tendo escolhido um bom hospital para o nascimento dos gêmeos, as duas notaram que o ambiente em si não possuía alguns recursos necessários na hora de acolher um casal formado por duas mulheres.

“Em todos os formulários do hospital constava ‘nome do pai e nome da mãe’. Além disso, a Renata não pôde amamentar os filhos, embora estivesse em tratamento para a produção de leite (foi Larissa quem gestou as crianças), porque o hospital alegava que ela não era a genitora, embora também fosse mãe. Ela já tinha todos os exames em mãos, feitos uma semana antes em laboratório, mas precisou refazer todos eles no hospital e, só dois dias depois, a autorizaram a amamentar”, declaram.

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Para elas, é urgente, ainda, que a dupla maternidade ou paternidade seja reconhecida por órgãos públicos e privados, inclusive resolvendo essa questão dos nomes dos responsáveis pelas crianças. Essas atitudes, na opinião das duas, mostram que o conceito de família é diverso, mutável e não deve permitir um único padrão.

Acolhimento familiar e apoio 

Rosana aponta, por fim, que o acolhimento da população LGBTQIA+ dentro do próprio núcleo familiar faz toda a diferença para que casais homoafetivos também sigam em frente na decisão de formarem suas próprias famílias. É um efeito dominó: se a família não banaliza o assunto, fala sobre ele, entende e aceita a orientação sexual de cada um de seus membros, qualquer escolha que resulte disso também acaba virando algo aceito e acolhido sem grandes esforços.

Já se o preconceito é notado dentro de casa, mas sem abertura para o diálogo, o melhor é que o casal busque apoio psicológico, em benefício próprio e, consequentemente, da criança. Grupos frequentados por outros casais homoafetivos em situação semelhante, organizações não-governamentais, projetos que trabalhem em prol da comunidade LGBTQIA+ e até comunidades virtuais voltadas para famílias formadas por dois pais ou duas mães também podem ajudar bastante.

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