Por que algumas mães sentem culpa quando saem para se divertir sem filho?
Tensão, sobrecarga e julgamento: esta é a receita para que mulheres sintam que não deveriam ter prazer em momentos longe da prole. Acontece com você?
Uma cervejinha no bar com as amigas, uma massagem relaxante, uma tarde dedicando-se a um prazer pessoal. Para muitas mulheres mães, o que poderia – e deveria – ser um momento simples de diversão, se torna mais uma preocupação. Nó na garganta, aperto no peito, ansiedade, preocupação e um emaranhado de sentimentos surgem nas situações de lazer individual em que se está longe dos filhos. Mas, afinal, por que a gente não consegue só relaxar?
Quem relata o mix de emoções é a psicóloga clínica Triana Portal, que há mais de 20 anos realiza a psicoterapia focada na orientação de pais. Para ela, é o sentimento de culpa o grande responsável por não permitir que a pessoa consiga curtir algum prazer sem a família.
“Além da questão emocional, existe a razão que deixa a mãe em alerta, como se ela tivesse abandonado o filho e o colocado em perigo, o que está ligado à ideia de proteção da prole, ao medo de que algo aconteça. Há também o aspecto cultural, mesmo que velado, de que quando a mulher se torna mãe ela deve dedicar-se somente à maternidade”, complementa Triana.
Mas primeiro, vamos entender de onde vem a culpa…
Adriana Drulla, mestre em Psicologia Positiva pela Universidade da Pensilvânia e pesquisadora em Parentalidade e Autocompaixão, conta que há diversas pesquisas acadêmicas que enxergam a culpa como um sentimento que atinge as mães quase que de forma universal. Para ela, trata-se de uma emoção desconfortável, que surge ao percebermos que o nosso comportamento causou algum tipo de prejuízo à outra pessoa – logo, a capacidade de se colocar no lugar do outro, de sentir empatia, é um pré-requisito para a culpa.
“Por isso, nos relacionamentos mais próximos a culpa está mais presente, já que estamos mais atentos ao bem-estar do outro. Embora a culpa seja desconfortável, ela cumpre uma função importante para o funcionamento humano: quando prejudicamos alguém e sentimos isso, esse desconforto nos motiva a reparar o dano e, mais do que isso, ele nos leva a escolher melhores comportamentos, mais alinhados com as nossas expectativas e valores, da próxima vez”, explica a profissional.
Adriana ressalta, ainda, que o problema da culpa materna não é o sentimento em si, mas sim a maneira como ele é prevalente e crônico. Ou seja, se, de maneira geral, a culpa ocorre na intenção de motivar uma maior coerência entre nossas ações, expectativas e valores, no caso da culpa materna é mais complicado, porque tentamos nos adequar a um padrão de perfeição que não existe, então é como se essas expectativas fossem inatingíveis, e os valores incoerentes – logo, é impossível que essa mãe consiga se adequar.
“O paradigma vigente da maternidade diz que a boa mãe é aquela que se doa completamente em termos físicos, emocionais, psicológicos e intelectuais. A expectativa da mãe perfeita, o julgamento social a respeito da maternidade alheia, o excesso de informações, conselhos e ‘boas práticas’ aprisionam as mulheres a padrões impossíveis que geram culpa, frustração, exaustão e raiva”, explica a psicóloga.
Ainda segundo ela, pesquisas mostram que cada vez mais nos sentimos piores enquanto mães. “Temos sentido mais medo, estamos mais confusas e nos sentimos inferiores. Essa sensação de ineficácia afeta nosso bem-estar físico, nossa saúde mental e a nossa capacidade de sermos boas o suficiente no nosso papel de mãe”, diz.
O julgamento alheio, sempre ele!
Ligada à culpa materna está, também, o julgamento por parte da sociedade – manifestado, muitas vezes, em pessoas próximas. É como se, por ter se tornado mãe, a mulher não tenha mais o direito de se divertir longe dos filhos.
Para Triana, este é um conceito arraigado e internalizado e, mesmo que de maneira não tão explícita, ele existe e é difícil de mudar. Para ela, porém, o julgamento social vem se transformando, já que hoje em dia é mais aceita e até mesmo incentivada a ideia de que a mulher pode exercer diversos papéis, e que ela não deixa de ser uma boa mãe por se permitir ter momentos de prazer e diversão.
Adriana acrescenta a isso o romantismo que envolve a dedicação materna, como se a exaustão das mães funcionasse como um troféu e a capacidade de suportar o estresse fosse um sinal de força perante a sociedade.
Socializar é preciso…
Mesmo com o julgamento e a culpa existindo, é essencial que esta mãe reconheça a importância de socializar e se permitir desfrutar de alguns momentos prazerosos longe dos filhos. Mesmo que isso leve tempo e precise ser trabalhado internamente e aos poucos, quando as práticas sociais acontecem de acordo com as vontades e respeitando as fases da vida, os benefícios são inegáveis.
“Pesquisas demonstram que, para sermos felizes, precisamos atender às nossas necessidades básicas. De acordo com Edward L. Deci e Richard M. Ryan, psicólogos conhecidos por formularem a teoria da autodeterminação, três necessidades psicológicas desempenham um papel fundamental no nosso bem-estar, e a primeira delas é o vínculo social – seres humanos precisam sentir que têm laços de amor, confiança e amizade”, informa Adriana.
De acordo com a psicóloga, porém, as coisas ficam mais complexas quando a socialização se dá na maternidade: como as exigências do ser mãe são somadas a tantas outras, o tempo e energia necessários para a construção e manutenção de laços afetivos acaba sendo subtraído. Isso explica, também, porque muitas vezes a satisfação com o relacionamento do casal diminui após a chegada dos filhos. Com menos tempo para o lazer e, muitas vezes, a falta de apoio necessário para ampliar as vidas para além das nossas casas, podem surgir, ainda, sentimentos ligados à solidão.
A maternidade romantizada é irreal, envolve muito trabalho e desgasta o indivíduo física e mentalmente, corrobora Triana, ao destacar o aumento no número de casos de exaustão ou burnout parental nos últimos anos. É mais do que importante para a saúde mental da mãe, portanto, que ela mantenha uma vida social (dentro do possível):
“Conversar com amigos, sair para se cuidar, seja no cabeleireiro, na terapia ou durante a prática de exercícios físicos e, claro, reservar um tempo para o parceiro/a, em forma de jantar ou de uma noite a sós”, diz ela, são alguns exemplos do que pode ser feito – lembrando sempre de que cada pessoa tem seu próprio tempo, ritmo e desejos.
“Algumas mães são mais apegadas e preocupadas, e mergulham de cabeça no papel da maternidade, se esquecendo dos demais. Há, ainda, quem não tenha uma rede de apoio para deixar a criança, e para essas pessoas é natural que elas acabam passando mais tempo concentradas apenas na vida com os filhos. Mas todas elas podem fazer o exercício, independentemente do estilo e condição, de confiar a criança aos cuidados de outra pessoa para que ela possa retomar a vida social e ter momentos para si”, salienta.
…mas respeitar as próprias vontades e limites, também
Mesmo conscientes sobre a importância da socialização, é natural que muitas mães acabem se enxergando em uma realidade e fase da vida totalmente novas com a maternidade, e para algumas delas certos programas que antes faziam sentido podem não ser mais tão importantes assim.
“Os interesses mudam, a disposição muda e a tendência é de buscarmos por pessoas que estão passando pela mesma fase que a nossa, que tenham mais afinidade. Por conta disso pode, naturalmente, ocorrer um afastamento de amigos que estão em outro momento da vida – alguns programas e tipos de diversão realmente não farão mais sentido, pelo menos por um tempo”, reflete Triana.
Para saber diferenciar esses sentimentos, ou seja, entender se você realmente quer sair ou se o está fazendo apenas pela pressão dos amigos, Adriana recomenda a reflexão:
“Acolha o seu desconforto entendendo que o fato de ele existir não significa que tenha algo errado com você. Depois, comunique as suas vontades e os seus limites. Pode não ser o que o outro espera em um primeiro momento, mas no longo prazo é o único caminho para amizades saudáveis em que todas partes podem ser autênticas”.
Triana Portal, psicóloga clínica
“Em primeiro lugar, repense sobre o que você escolheria fazer se não houvesse a pressão alheia. Em outras palavras, se você tivesse certeza absoluta de que os outros te apoiariam na sua decisão, o que você faria? Se a resposta for sair, saia, mas for ficar em casa, está tudo bem. É importante ter consciência de que é natural sentir desconforto quando escolhemos não ceder à pressão dos amigos. Somos seres sociais, a expectativa do outro nos mobiliza, mas é impossível agradar a todos”, diz ela, sugerindo que a mãe expresse seus sentimentos e vontades de forma assertiva, não reativa ou defensiva.
O papel das (verdadeiras) amizades
Se antigamente vivíamos em tribos cuja responsabilidade de cuidar das crianças era coletiva, na modernidade essa tarefa, na maioria das vezes, se resume aos pais. Mas considerando a dinâmica de diversos casais heterossexuais e o cenário do Brasil, inclusive, frequentemente é a mãe a grande responsável pela criação dos filhos.
“Mais de 5 milhões de estudantes brasileiros não têm o nome do pai na certidão de nascimento, e 45% dos nossos lares são chefiados por mulheres. Mesmo quando o casal vive junto, a mulher assume uma proporção maior do trabalho da casa e relacionado aos filhos, independentemente se ambos trabalham. A sobrecarga dificulta que as mães consigam satisfazer a segunda necessidade psicológica humana, que é a competência pessoal”, elucida.
O papel dos verdadeiros amigos frente a essa mãe que está retomando a socialização, portanto, deve ser de validar e entender o momento pelo qual ela está passando, assim como os desafios desta nova fase da vida. Sem usar de pressão psicológica e de qualquer tipo de julgamento, as amizades devem funcionar como rede de apoio capaz de dar o suporte que ela precisa – só assim será possível que volte ao convívio social e tenha momentos de lazer.
“Os amigos devem incluir, convidar para que essa mulher não se sinta esquecida, mas sem insistir, pressionar, criticar. Acredito que eles devem respeitar as escolhas dela, pois não há nada mais desagradável para uma mãe do que pessoas opinando em sua vida e em como cuidar do próprio filho – faz muito mal para a mãe e para a amizade. É necessária uma intervenção apenas se for percebido que a mulher está com um comportamento obsessivo, uma superproteção e afastamento exagerado das pessoas”, conclui Triana.
Como trabalhar a culpa, afinal de contas
Por mais complicado que possa parecer, trabalhar a culpa materna quando o assunto é a retomada da socialização é possível e, para Adriana, passa pelo desenvolvimento da autocompaixão.
A especialista explica que, o ato de acolhermos as nossas imperfeições e dificuldades com gentileza é o primeiro passo para a autocompaixão. Segundo ela, isso envolve reconhecer que seus erros e dificuldades significam que você é humana e não inferior. Na autocompaixão, explica, o respeito que sentimos por nós mesmas vem do reconhecimento de que estamos fazendo o nosso melhor para lidar com dificuldades que não escolhemos, e que na maioria das vezes não controlamos.
Ela fala, ainda, que mães que desenvolvem a autocompaixão lidam melhor com os próprios erros, aprendem com as dificuldades, se recuperam mais rápido das falhas e, no longo prazo, se tornam melhores frente à maternidade. Além disso, para a expert, a autocompaixão nos dá resiliência emocional, com a qual conseguimos ser apoio para nós mesmas em vez de nos cobrarmos sempre mais.
“Quando honramos a nossa humanidade, inspiramos nossos filhos a fazerem o mesmo. Se existe um superpoder na maternidade, ele é a autocompaixão”, corrobora.
Para Triana, driblar a culpa materna pode ser mais ou menos desafiador, dependendo do temperamento da mãe em questão. “Trabalhar a culpa é possível tendo em mente que por amor sempre fazemos o melhor que podemos, que ninguém é perfeito, infalível, onipresente. A mãe deve constantemente cuidar da sua saúde emocional, trocar experiências com outras mães, perdoar-se, aprender com seus erros e falhas, tentar fazer o seu melhor sem ficar presa à culpa e dor pelo que já aconteceu. Se a carga for muito grande ou ela sentir que está sofrendo além da conta, é interessante procurar ajuda profissional. Um psicólogo pode acolher e orientar, olhando de fora, de forma neutra e sem julgamento”, recomenda.
De forma prática, a mãe pode começar por distribuir as responsabilidades que assumiu sozinha, listando aquilo que pode ser feito por outras pessoas que fazem parte da sua rede de apoio. Estipular regras para si própria, como não trabalhar depois do jantar ou sair para correr duas vezes por semana, por exemplo, bem como conversar, sempre que possível, com aqueles que podem dar apoio efetivo e firmar compromissos com esses indivíduos.
Tudo isso, entretanto, deve ser feito com calma e cautela, já que é um processo e exige tempo para se acostumar às mudanças no dia a dia. Começar a agir, porém, é essencial, mesmo que de maneira mais lenta, mas sempre respeitando quem você é.