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Ser um bom pai ou mãe é possível mesmo quando se teve uma infância difícil

Olhar para si com compaixão, reconhecer erros e trabalhar o autoconhecimento rumo à mudança são a chave para construir relações familiares mais saudáveis.

Por Ketlyn Araujo
4 fev 2022, 19h00
Mãe e bebê com ilustrações de chuva e guarda-chuva
 (AleksandarNakic/Getty Images)
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Não é por acaso que tantos especialistas em psicologia e parentalidade positiva insistem para que os pais e mães de hoje invistam em uma educação pautada por mais diálogo e menos punição, mais limites saudáveis e menos desejos de perfeição. Afinal, boa parte dos comportamentos tóxicos ou agressivos que nós, adultos, reproduzimos, foram aprendidos ainda na infância.

O tema se torna ainda mais complexo quando o adulto de agora foi uma criança que cresceu com pais extremamente rígidos, autoritários, abusivos e/ou tóxicos. É comum que esses adultos, ao experienciarem a parentalidade, tenham dificuldades em não reproduzir com os próprios filhos esses padrões absorvidos ainda nos primeiros anos de vida.

“A maior dificuldade que pais e mães que vivenciaram uma infância complicada têm quando eles mesmos exercem a parentalidade está muito ligada ao medo de falhar, ao reconhecimento e gerenciamento das emoções. A partir daí, vem também a dificuldade de estabelecer limites saudáveis na criação dos filhos, e essas pessoas acabam oscilando entre tipos superprotetores ou flexíveis em demasia, errando por excesso ou escassez de cuidados”, explica o psicólogo especialista em comportamento infantil Damião Silva.

Uma vez que não querem cometer os mesmos erros aos quais foram expostos, acrescenta o profissional, esses pais ou mães acabam sofrendo com o processo educacional dos filhos. A boa notícia é que muitos deles, graças ao grande acesso à informação que temos na atualidade, têm buscado ajuda especializada, a fim de exercerem a paternidade e maternidade de forma mais saudável.

Lala Fonseca, psicóloga especializada em terapia cognitivo comportamental, segue a mesma linha de raciocínio, e diz ainda, que o maior desafio quando se foi vítima de uma infância abusiva ou traumática é enxergar a vida por meio de uma outra perspectiva. Isso porque, fala a especialista, é difícil perceber que as coisas poderiam ter sido diferentes.

“Quando vivemos uma infância complicada, precisamos entender que nem todas as infâncias precisam ser assim”.

Lala Fonseca, psicóloga
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“É muito comum a gente simplesmente transferir para os nossos filhos hábitos que não são saudáveis, comportamentos que foram aprendidos, por serem um ‘costume’. O principal ponto é romper com essas crenças que vêm da criação, o que é uma grande dificuldade, mas é possível”, reforça.

O que fazer, então, para não repetir padrões?

Para Beatriz Gomes Benicio da Fonseca, psiquiatra infantil da Clínica Revitalis, a principal ferramenta para não repetir padrões do passado é investir em autoconhecimento, seja através de terapia ou de outro método eficaz. Ela diz, porém, que o caminho da não-reprodução é longo, não segue uma linha e costuma ser complicado mesmo após tratamentos psicológicos: nós, humanos, temos uma tendência natural a trilhar aquilo que é conhecido, inclusive quando sabemos que os resultados podem não ser os melhores.

A vivência de um relacionamento tóxico, pontua Lala, nos habitua a sermos tóxicos, mas precisamos entender que, se na nossa família existe algo com o qual não estamos de acordo, talvez seja o momento de reavaliar e mudar alguns padrões que podem causar mal para o outro.

Para não reproduzir um padrão do passado, continua a psicóloga, é importante saber agir frente às situações, em vez de reagir. “São dois comportamentos completamente diferentes. Reagir é, por exemplo, colocar a mão no fogão quente e tirá-la de lá imediatamente, como um instinto. Nas relações é preciso agir, ou seja, parar para pensar, refletir e analisar como vou me comportar naquela situação”, exemplifica.

O investimento em autoconhecimento servirá, também, para compreender de onde vêm essas dificuldades na educação dos filhos, pois os impactos variam de pessoa para pessoa e de situação para situação, diz Damião. Somente após a compreensão do que foi vivido, é que conhecemos a ideia de um relacionamento saudável e com afetos positivos.

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Ser um bom pai ou mãe é possível mesmo quando se teve uma infância difícil
(Ippei Naoi/Getty Images)

Como trabalhar os traumas

Antes mesmo de buscar por ajuda profissional, explicam os especialistas, o primeiro passo para curar traumas de uma infância complicada é querer – e ter a coragem e disposição necessárias para – lidar com situações e lembranças que nos causaram sofrimento, com disposição para a superação e a mudança.

Já o caminho de “esquecer e seguir em frente”, fala Beatriz, geralmente não funciona, pois os acontecimentos traumáticos já fazem parte da história daquele sujeito e, dificilmente, serão esquecidos. O ideal, então, corrobora a expert, é que ocorra a conscientização de que estes traumas fizeram parte do caminho daquela pessoa, mas sem paralisá-la, de modo que ela continue em busca de realizações.

Em um mundo ideal, diz Lala, a melhor maneira de trabalhar um trauma é no momento em que ele está acontecendo. Ou seja, se o acompanhamento psicológico de quem experienciou algum tipo de relacionamento familiar tóxico na infância ou adolescência fosse feito exatamente nestas fases, as chances dos acontecimentos se tornarem traumas seriam muito menores.

Como isso dificilmente é possível, perceber o desconforto do trauma e aceitá-lo é o ponto de partida para que as mudanças aconteçam. “Quando a gente passa a se conhecer melhor, olhamos para os nossos pais como seres humanos, e não como entidades detentoras do saber. Aí, percebemos que existiram falhas, erros, e que não os repetir não significa perder o amor desses pais – significa poder fazer diferente e tentar, na minha família, ser um ser humano melhor do que os meus pais foram pra mim”.

É preciso avaliar como gostaríamos de nos relacionar conosco e com as outras pessoas. Isso também nos ajuda a identificar se aquele valor que estamos dando para um fato é realmente importante, ou se é apenas um modelo aprendido que vem sendo repetido. Notar e reconhecer, neste processo, os erros que estamos cometendo com os nossos filhos é essencial, diz ela, e talvez isso possa ser percebido ao deixar o orgulho de lado e ser capaz de pedir desculpas aos pequenos.

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Após reconhecer e identificar a existência desse desconforto nas relações familiares, complementa Damião, o próximo passo é estabelecer cuidados mais adequados, seguros e saudáveis entre pais e filhos. Após compreender o cenário e notar que não existem recursos emocionais suficientes para lidar com essas demandas, entretanto, o recomendado é recorrer à ajuda profissional.

Em busca de acolhimento

Pai e mãe abraçando criança
(Ketut Subiyanto/Pexels)

Como já mencionamos, para alguém que teve uma infância complicada, mas deseja virar o jogo na criação dos próprios filhos, buscar ajuda especializada é altamente recomendado. É por meio da psicoterapia que essa pessoa será capaz de entender a origem dos traumas, sintomas e dificuldades e, com auxílio profissional, receber as intervenções e orientações mais recomendadas.

Grupos de apoio também podem ajudar na superação dos traumas, já que encontramos conforto e acolhimento ao nos aproximarmos de pessoas com vivências similares às nossas. Porém, é primordial que isso seja feito em conjunto com o auxílio psicológico.

Aceite os fatos

Perdoar ou não quem te fez mal (principalmente se essa pessoa é seu pai ou sua mãe), dizem os especialistas, é bastante relativo. Na opinião de Damião, ninguém é obrigado a conviver com o outro apenas por conta dos laços de sangue, mas é importante que as emoções sejam reconhecidas e que decisões sejam tomadas em prol da própria saúde mental – viver a vida culpado, diz ele, não é um bom sinal, e motivo suficiente para buscar por ajuda.

Para Beatriz, mais difícil do que perdoar o outro acaba sendo perdoar a si mesmo, seja pela própria raiva diante do ocorrido, pelas pequenas vinganças planejadas (sejam elas executadas ou não), seja pela raiva por conta da própria passividade e/ou ‘incompetência’ em lidar com a situação.

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Já Lala acredita ser importante não perdoar, mas aceitar o que os seus pais fizeram para você. “Isso não significa que você precisa conviver com essas pessoas, mas aceitar que aquilo aconteceu é importante, é o que vai fazer você entender que não precisa repetir esse padrão, que você não é e não precisa ser idêntico a eles. Que pode ser um ser humano diferente, avaliando as faltas que você teve e tentando supri-las de uma outra maneira na criação dos seus filhos. É muito importante a gente entender que, como ser humano, mudar provoca um grande desconforto”, expressa.

Para quem está no caminho da mudança, arremata ela, ouvir os filhos não significa aceitar todos os comportamentos deles, mas entender exatamente o que eles falam, pois eles se expressam de várias formas.

“Abra a sua mente, os seus ouvidos e o seu coração, para tentar entender o que está acontecendo com o seu filho e, a partir disso, ter a flexibilidade de fazer ajustes e adaptações em você mesmo. Isso não significa deixar de dar limites, não educar e não criar, mas lidar com aquele ser humano como ele precisa que você lide com ele, dar os limites de uma forma que ele possa compreendê-los. É uma via de mão dupla, você tem que ouvir o que ele te diz, e você vai entender como dar orientação e ensinar o seu filho para que ele absorva aquilo”.

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