Como trabalhar o trauma de acidentes em crianças pequenas

Paciência, apoio de profissionais qualificados e respeito ao processo individual da criança ajudam a superar a situação traumática e prevenir danos futuros.

Por Ketlyn Araujo
Atualizado em 27 set 2022, 10h54 - Publicado em 21 fev 2022, 15h11
Menina pintando parede
 (Carlo Prearo / EyeEm/Getty Images)
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Em janeiro de 2022 houve um deslizamento de pedras na região turística de Capitólio, Minas Gerais, que deixou ao menos dez mortos, pessoas feridas e desaparecidos. No mesmo mês, a temporada de chuvas de verão também causou deslizamentos de terra, além de alagamentos, enchentes e mortes no estado de São Paulo. E em fevereiro, a combinação entre fenômenos da natureza e falta de infraestrutura afetou gravemente a cidade histórica de Petrópolis, no Rio de Janeiro, ocasionando danos na cidade, mais de 170 mortos (até o fechamento desta matéria) e 110 desaparecidos.

Como muito do que existe na vida, desastres naturais também fogem ao nosso controle, ainda mais com as mudanças climáticas cada vez mais presentes e, muitas vezes, descaso de autoridades frente a pessoas em situação vulnerável. Para quem foi vítima de uma situação desse tipo, porém, muitas vezes fica o trauma do evento, e o medo de passar por algo similar em um futuro próximo – ainda mais quando as vítimas são crianças pequenas.

Mas saiba que é possível evitar que um acidente vire trauma para uma criança e a afete no futuro, basta recorrer aos profissionais de saúde mental adequados, bem como trabalhar na construção de um ambiente familiar seguro e sem julgamentos. A fim de discriminar, na prática, o que deve ser feito, consultamos Marli Cunha, psicóloga, e Mariana Casagrande, neuropsicopedagoga, neuropsicóloga e diretora da Clínica Casagrande.

Lidar com o trauma é fundamental – para o presente e para o futuro

Crianças, jovens e adolescentes, assim como acontece com os adultos, naturalmente vivenciam diferentes situações capazes de causar emoções intensas: enquanto muitas delas são boas e prazerosas, diz Mariana, outras, às vezes, podem se tornar vivências traumáticas.

Quando essa emoção não é bem tratada, complementa a profissional, a criança pode projetar esse sofrimento em diversas áreas da vida, o que é capaz de comprometer seu convívio social, no ambiente escolar e familiar. Já quando pensamos no futuro, caso um trauma seja ignorado e não receba a atenção necessária, quadros de problemas de saúde mental ligados à ansiedade, depressão, medos, pânico e outras reações psíquicas (que, inclusive, chegam a refletir no corpo físico) também podem surgir.

Marli fala, ainda, sobre o quanto a negligência de um evento dessa magnitude pode desencadear o chamado Transtorno de Estresse Pós-Traumático (ou TEPT), quando é percebida a continuidade ou um reviver da situação, como um trauma que perdura por meses ou, muitas vezes, por anos.

Não julgue a dor da criança, e conte com auxílio especializado

Na opinião de Mariana, os pais ou tutores têm o papel mais relevante dentro do processo de superação traumática pelos pequenos, pois são eles a figura de maior afeto, segurança e exemplo que uma criança pode ter. Por isso, crianças que vivenciam situações capazes de deixar marcas profundas precisam ser compreendidas, acolhidas e amparadas pelos seus familiares, que devem evitar qualquer tipo de julgamento ou desvalorização dos sentimentos da criança.

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O mais importante neste processo, reforça a neuropsicopedagoga, é a aceitação do que ocorreu, compreensão e busca de auxílio profissional frente ao menor sinal de necessidade – sem preconceitos ou julgamentos precipitados.

“Quando os pais conseguem lidar com essa situação de forma leve, tranquila e racional, motivando a superação, com certeza a criança terá maior sucesso no processo. Porém, quando seus familiares potencializam a dor, sofrem junto, provocam medo e até apavoram os filhos, a superação se torna muito mais complexa, difícil e sofrida para todos”, evidencia a neuropsicóloga, ao repetir, ainda, que nestes casos outros problemas podem ser somados ao trauma, o que o torna muito maior e pior.

Menina sentada na cama cobrindo o rosto
(ozgurcankaya/Getty Images)

Além do apoio da família, é imprescindível que crianças que passaram por uma situação traumática sejam encaminhadas ao serviço de psicologia, para que seja feita uma avaliação mais completa e detalhada sobre os impactos causados pelo evento. É mediante orientação profissional que a criança irá contar com técnicas e intervenções terapêuticas adequadas, na intenção de aliviar e superar a dor emocional.

Em muitos casos, acresce Mariana, também se faz necessário o acompanhamento com um médico psiquiatra infantil, que poderá avaliar a necessidade ou não de tratamento medicamentoso. Geralmente isso se dá quando a criança apresenta sintomas intensos, frequentes e que refletem no corpo físico.

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Atente-se aos detalhes

Observar e demonstrar atenção aos mínimos detalhes ligados ao sofrimento ocasionado pelo trauma, opina Marli, é igualmente significativo. “Já acompanhei crianças que sofreram com a invasão de água em suas casas, vítimas de enchentes, que tiveram, depois, medo de chuvas e trovões e, por vezes, medo de um volume maior de água. Nesse exemplo, e quando elas acabam fixando o medo e todo o trauma relacionado à água, devemos buscar o contato lúdico com a chuva, por exemplo e, com muita cautela, ressignificar a situação e/ou a experiência. Podemos, ainda, utilizar de recursos como a reencenação do trauma através de brincadeiras – mas sempre com auxílio profissional”, ilustra a psicóloga.

A melhor maneira de lidar com os nossos traumas sempre será pelo enfrentamento gradual da ocorrência, de forma que a pessoa seja capaz de restabelecer o contato com a situação (ou parte dela) como algo vivido e que faz parte do passado, com um sentimento de superação. Cada profissional e, em paralelo, os pais, devem identificar os limites a serem avançados pela criança conforme for possível: ou seja, como falar do assunto e como visualizar mentalmente o trauma vivenciado é algo que varia de criança para criança. É importante, portanto, que as etapas de avanços sejam respeitadas, sem pressa, e com o objetivo maior da recuperação do equilíbrio psíquico.

No mais, o acompanhamento psicológico e/ou psiquiátrico é indicado também para os pais, caso eles tenham passado pelo trauma junto da criança ou, se não, caso tenham desenvolvido um medo de perdê-la após o evento em questão.

Amor e acolhimento devem ser parte do processo

Mãe-acolhendo-a-filha-na-cozinha-de-casa
(Maskot/Getty Images)

Para além do tratamento psicológico e psiquiátrico, altas doses de amor e respeito por parte dos pais para com a criança são essenciais, e sem elas não há superação da dor psíquica, diz Mariana.

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Técnicas profissionais pensadas para aliviar sensações incômodas e controlar as emoções, bem como terapias holísticas, meditação e prática regular de esportes, seja para crianças ou adultos, tendem a ajudar e complementar o auxílio médico e psíquico – lembrando que nada disso substitui o processo médico regular.

Olhos e coração em alerta

Como já pontuamos, pais e responsáveis devem estar atentos ao comportamento da criança após ela ter passado por uma situação potencialmente traumática, já que, como enfatiza Mariana, todo sofrimento infantil deve ser olhado com amor, cuidado e carinhonão é normal uma criança sofrer e viver com medo, muito menos “frescura” ou “coisa da idade”:

“Nunca devemos menosprezar a dor do outro, muito menos de uma criança que está em fase de formação, na qual traumas podem deixar registros que comprometem toda uma vida. O normal é termos filhos que se desenvolvam bem e felizes, e tudo o que fugir desta situação deve receber um olhar cauteloso e generoso”.

Mariana Casagrande, neuropsicopedagoga

Comportamentos como maior isolamento, problemas de memória, transtornos alimentares e de sono, perda de habilidades e interesses, lista Marli, são sinais de alerta, e merecem atenção de um profissional capacitado, que saberá conduzir o tratamento e, se necessário, encaminhar a outros especialistas.

Infelizmente, em muitos momentos da vida, não podemos evitar que os nossos filhos sofram, já que existem situações que vão além do nosso controle e possibilidades como pais. “Porém, como superar, quando, de que forma, se será leve ou um fardo, se passará ou deixará imensas marcas… Nisso, sim, nós, pais, podemos agir e auxiliar, fazer a diferença. Posso ver uma pedra no caminho e decidir sofrer e chorar durante a minha vida toda, ou posso ensinar o meu filho a contornar a pedra e seguir sua caminhada, feliz – isso é uma opção, que irá refletir 100% na forma como os nossos filhos agem” considera a neuropsicóloga. 

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