Como explicar o abandono paterno para crianças
Honestidade, acolhimento e muita conversa são capazes de tornar o luto do abandono um processo menos complicado.
Triste realidade não só no Brasil, mas em escala global, o abandono paterno é uma questão que atinge famílias e, se não trabalhado, pode despertar sobrecarga e sentimentos de culpa na mãe que se torna solo – são 12 milhões de mulheres nesta situação no país, segundo dados do Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE) -, e na criança, que pode sentir impactos da ausência do pai inclusive na vida adulta.
É importante salientar, porém, que crianças são diferentes, complexas e frente a uma situação de abandono paterno podem agir de múltiplas formas – considerando, principalmente, a faixa etária e a compreensão que ela é capaz de ter da situação. O ambiente familiar e escolar no qual estão inseridos também influenciam a reação dos pequenos, bem como o apoio (ou ausência dele) dos demais membros da família e amigos próximos.
Meliane Gomes Lima, psicóloga da Vibe Saúde, explica que, geralmente, a partir dos seis anos de idade as crianças começam a ter maior extensão do vocabulário, o que por consequência contribui para o conhecimento diante de algumas situações mais complexas. Ela ressalta que a idade para entender uma situação da dimensão do abandono paterno vai variar de criança para criança, e está ligada diretamente ao desenvolvimento cognitivo. Identificar o momento para falar com ela sobre o abandono, então, é responsabilidade do tutor da criança, junto com a equipe profissional que a acompanha.
Já Eloize Franco, psicóloga e coordenadora da clínica multidisciplinar Arte Psico, diz que a partir dos dois a três anos de idade a criança já é capaz de compreender o meio em que vive e, portanto, é possível orientá-la sobre o abandono, desde que a família atue de acordo com as limitações que ela naturalmente apresenta.
Cuidado para não transferir a culpa para a criança
Com a questão da idade em mente, explicar para a criança sobre o abandono paterno, de maneira honesta, é fundamental para que ela possa começar a compreender a realidade dentro dela. As especialistas orientam a importância de, neste caso, sinalizar para a criança que a culpa não é dela.
“Fazer uso de palavras claras para a fase na qual a criança está inserida será de extrema importância. É comum que elas já verbalizem sentimentos de rejeição, mesmo que de maneira infantilizada, ao apresentar ciúmes excessivo, insegurança, instabilidade de humor e carência intensa – tudo de acordo com a faixa etária”, exemplifica Meliane, ao recomendar, ainda, que, quando conversar com o pequeno sobre o abandono, a pessoa responsável explique que, apesar da tristeza e dor que vêm com os fatos, há também outras fontes de amor e carinho dentro do próprio ambiente familiar.
Eloize sugere um diálogo pautado pela honestidade, explicando de maneira clara ao pequeno sobre o contexto no qual ele está inserido e que a relação que ele tinha com o pai não será mais a mesma, mas que isso não precisa, necessariamente, ser algo ruim.
Não alimente fantasias ou falsas promessas
Crianças, naturalmente, tendem a fantasiar situações, como de que o pai irá voltar. Apesar de ser difícil, nestes casos, é essencial que a mãe sinalize os acontecimentos reais de sua vida e sempre responda a todas as dúvidas do pequeno com sinceridade e sem necessidade de crueldade ou fantasia.
Evite falar que o pai viajou, que foi embora por motivos de trabalho ou que ele “já volta”, por exemplo. Tudo isso, frisa Meliane, tende a criar expectativas vazias na criança, o que contribui para um aumento da ansiedade e das frustrações, já que o retorno não vai acontecer. O caminho, então, é intervir de forma calma e acolhedora, mencionando que a pessoa escolheu ir.
“Não manter o contato direto poderá ser uma alternativa que vai amenizar o sofrimento e a ansiedade contínuos. Claro, tal ‘regra’ sempre vai variar de pessoa para pessoa e, por esse motivo, é válido ter o acompanhamento de um profissional de saúde mental para viabilizar a maneira a qual será feita essa comunicação”, complementa.
Os demais membros da família são igualmente importantes no processo
Para que a criança não sofra ainda mais, familiares e amigos próximos da família, além da mãe, devem atuar no processo do abandono promovendo acolhimento, escuta, respondendo dúvidas – desde que todos na família digam a verdade e com falas similares – e, principalmente, respeitando os sentimentos da criança, instrui Eloize.
“Eles também podem ajudar a criança criando oportunidades para que ela possa socializar, isto é, por exemplo, ao levá-la para passeios nos quais ela possa interagir com outras crianças. A família deve, ainda, ser uma rede de apoio para as mães, auxiliando nos cuidados e no desenvolvimento do pequeno”, diz a psicóloga, ao enfatizar, igualmente, o papel de bastante importância dos demais homens da família: pode ser que a criança tenha identificação com tios avós, irmãos ou primos e, por conta disso, eles devem ser bons exemplos.
Ser um bom ouvinte e, obviamente, não fazer bullying ou piadas que contribuam para o trauma da criança frente ao abandono paterno, fala Meliane, é extremamente significativo. O papel da família será importante para que essa criança perceba que o ambiente familiar é seguro, e que ela está rodeada de proteção, amor e compreensão.
“A partir destas ações essa criança irá visualizar uma família participativa, e vai entender que ela poderá ter confiança em seus familiares diante de diversas situações as quais, inconscientemente, poderá ser exigida a figura paterna, que estará ausente”, explica.
Observe possíveis mudanças de comportamento
Como já dito, cada criança é de um jeito, ou seja, elas podem apresentar reações variadas diante do abandono paterno. Algumas, diz Eloize, podem simplesmente não apresentar problemas comportamentais, enquanto outras podem se tornar mais agressivas, perguntar de forma insistente sobre o pai, fantasiar com a figura paterna, apresentar problemas como isolamento, dificuldades na escola, baixa autoestima, medos excessivos, inseguranças e, ainda, falta de confiança em outras pessoas.
É comum que as mudanças de comportamento sejam detectadas, a princípio, no ambiente escolar, o que pode desencadear, também, perda de foco nas aulas e baixo rendimento. Crises de ansiedade, irritabilidade e perda do apetite, enumera Meliane, são aspectos preocupantes.
Busque ajuda profissional
Ao notar qualquer um dos sinais apresentados acima, dizem as psicólogas, o adulto responsável pela criança deve procurar ajuda profissional. Caso ela frequente a escola, é importante que a família pergunte à coordenação se alguma mudança ou alteração de comportamento foi observada desde que o abandono aconteceu.
Porém, exatamente por não ser possível prever qual será a reação da criança ao passar pelo abandono paterno, é recomendado que o auxílio psicológico seja buscado assim que a situação ocorrer. Quanto antes a criança tiver o amparo de um especialista adequado e começar a trabalha as emoções de maneira correta, opina Meliane, menor será o prejuízo para ela diante das consequências do abandono, muitas vezes inevitáveis. Reforçamos, aqui, a importância de um profissional especializado em crianças.
Além do auxílio psicológico para a criança, muitas vezes é crucial que a mãe também procure por ajuda, principalmente na intenção de trabalhar a culpa materna e a sobrecarga após o abandono. Para Meliane, a culpa é um sentimento que passa a ser alimentado de acordo com o contexto de vida de cada pessoa, e ter uma visão clara do que ocorreu, com acompanhamento profissional, será fundamental diante do processo de luto.
“É importante que as mães, em um primeiro momento, reconheçam que a culpa não é delas, mas sim da figura paterna em questão. Para isso, uma rede de apoio que a mãe confia e que vai auxiliar no desenvolvimento da criança é de extrema importância, mas se o sentimento persistir é preciso procurar ajuda psicológica”, complementa Eloize.
O foco é na criança!
Para além da terapia, propõe Meliane, estabelecer uma forte comunicação familiar, além de respeitar o luto do abandono que a criança está vivendo é importante, assim como reforçar seu convívio social com familiares e amigos, deixando que ela adquira confiança, que deve ser fortalecida sempre que possível. É normal que esta seja uma época de autodescobertas e de enfrentamento, e mostrar apoio emocional é essencial – caso precise de ajuda para tal, recorra ao terapeuta para alinhar, junto com ele, possíveis meios de lidar com a situação para a criança, de acordo com a cognição dela.
As mães podem passar segurança e limites aos filhos, diz Eloize, e isso é possível ao dar bons exemplos e reforçar comportamentos positivos: fale sobre as qualidades da criança e suas habilidades, e mostra que existem outras pessoas na família – tios, avós, irmãos, primos – que também a amam muito. Nessas horas o foco atencional deve ser todo na criança.
Por fim, do mesmo modo, livros didáticos e que tragam histórias sobre separação, desenhos e brincadeiras lúdicas com o tema familiar, desde que sempre trazendo contextos reais, conversas claras e objetivas, são recursos ricos.