Prematuridade: “Tudo o que é difícil de viver é bonito de contar”
Liz nasceu com 28 semanas de gestação e passou os 61 primeiros dias de vida internada. Veja o relato da mãe, Carolina, sobre este período emocionante
Quando estava grávida de Liz, Carolina não fazia ideia do que era, verdadeiramente, a prematuridade. É aquele famoso “não vai acontecer comigo”. Só que aconteceu. Com apenas 27 semanas de gestação, ela notou um corrimento estranho, somado a uma dor insistente no pé da barriga. Ao pesquisar sobre o assunto, viu que aquele corrimento poderia ser a perda do tampão mucoso, secreção gelatinosa que forma uma barreira entre o útero e o canal vaginal ao longo da gravidez. Geralmente, ele é expelido depois de 37 semanas e pode ser um indício de que o trabalho de parto se aproxima. O de Carolina, no entanto, parecia estar sendo eliminado bem antes do previsto.
Foi durante suas buscas que a então gestante se deparou com o termo prematuridade. “Ainda assim, não sabia o que era, de fato. Achei que o bebê nascia antes do tempo, mas podia ir para casa, sem maiores problemas”, lembra. Em alguns casos, isso até acontece. Porém não em todos… No fim, Liz realmente chegou “apressada” e, para ganhar peso e se desenvolver adequadamente, precisou de dois meses de internação hospitalar, além de duas cirurgias – uma delas com apenas 3 dias de vida.
De acordo com dados do Ministério da Saúde, 12% dos bebês nascem antes das 37 semanas de gravidez no Brasil. Este mês, conhecido como Novembro Roxo, chama a atenção para a questão da prematuridade e de suas consequências para a saúde e o desenvolvimento de bebês como Liz (e também para as famílias, que enfrentam um verdadeiro turbilhão de medo e insegurança).
Em um depoimento exclusivo ao Bebê.com, Carolina Gonçalves Dobner, de Campinas (SP), detalha a trajetória que viveu durante o final antecipado da gravidez e os primeiros dias de vida da filha.
“Minha gestação foi tranquila, no início. Tive enjoos, como a maioria das grávidas, depois comecei a sentir bastante dor no pé da barriga. Eu fazia acompanhamento com o médico e sempre perguntava se aquilo era normal. Ele dizia que sim. Cheguei a ter um leve sangramento, fui para o hospital para ver o que era, mas logo parou e não tive mais nada. Estava com 15 semanas.
Então, com 26 para 27 semanas, comecei a ter um corrimento. Li uma reportagem na internet falando sobre tampão mucoso. Vi algumas histórias de outras mães que haviam tido bebês antes da hora. Foi a primeira vez que me deparei com o assunto prematuridade. Até então, nunca nem tinha ouvido falar, não tinha noção nenhuma. Era bem falta de informação da minha parte, porque eu estava grávida, mas achava que estava tudo bem. Pensava que ela viria para casa assim que nascesse, independentemente do tempo. Não foi o caso. Só fui ter essa noção de verdade lá, na hora.
Depois de ler sobre o tampão, fiquei meio encafifada, porque, pelos relatos, parecia mesmo que o corrimento era isso. Eu já tinha consulta marcada para a semana seguinte e imaginei que dava para esperar. No entanto, tive um sangramento e fui ao pronto-socorro. Era um domingo. Fui examinada, falaram que estava tudo bem, que o colo do útero estava fechado e que eu apresentava apenas um dedo de dilatação, o que era normal. Continuava com dor no pé da barriga. Como eu tinha médico na segunda-feira, não me preocupei tanto. Na consulta, ele também falou que estava tudo bem e apenas indicou uma pomada para a infecção, por causa do corrimento.
Só que, naquela mesma noite, saí para jantar e a bolsa estourou. Corremos para o hospital. Fiquei de repouso absoluto para tentar adiar o parto e recebi a injeção de corticoide [que ajuda a desenvolver os pulmões do bebê]. Passei a tomar muito líquido e bastante soro na veia, e conseguimos segurar por dois dias. A bolsa estourou com 27 semanas e 6 dias, e a Liz nasceu com 28 semanas e 1 dia.
Também comecei a ter descolamento de placenta, que era uma condição perigosa. Tivemos que correr para o centro cirúrgico, eu sentia muita dor. Era como uma contração constante, que não parava nunca. Comecei a vomitar. Estava em um nível em que não via mais nada na minha frente. Após uma hora do início das dores, foi muito rápido. Ela nasceu de cesárea, com 1,2kg e 34cm.
Naquele momento, Liz não precisou ser entubada. Apesar de se tratar de uma prematura extrema, segundo os médicos, o Apgar [uma espécie de nota dada ao recém-nascido depois de uma análise clínica inicial] estava bom. Ela foi direto para a incubadora, na UTI neonatal. Eu não tinha ideia de como funcionava. Para mim, o bebê nascia e já vinha para os meus braços. No entanto, só a vi passando da minha barriga para a balança, tudo muito rápido. Nem ouvi o choro, porque é muito baixinho quando o bebê é pequenininho. Só pude vê-la depois de me recuperar da cesárea, no dia seguinte.
Na hora em que minha filha nasceu, parecia que aquilo era um sonho, não parecia real. Eu não estava nem muito emotiva. Primeiro, porque senti bastante dor. Tive o descolamento da placenta e foi assustador. Segundo, porque não conseguia pensar direito no que estava acontecendo.
A princípio, acho até que me saí bem com o sentimento de não ter tido aquele primeiro momento com minha filha, aquele primeiro contato no nascimento, aquela foto que todo mundo tem com o bebê, com o pai… Não tive nada disso e não me preocupava tanto com isso. Só queria que ela estivesse bem.
Quando subi para o quarto, após o parto, queria muito vê-la. Não deixaram. Insisti e a moça falou que, se eu conseguisse andar, eles me levariam até ela. Lembro que foi uma dor insuportável, mas eu disse que iria. Fui andando até a UTI neonatal. Depois, descobri que nem poderia ter caminhado tanto, entretanto eu queria muito ver minha filha e saber o que estava acontecendo.
Só entendi na hora em que eu a vi. Desabei, porque não podia pegá-la no colo. Eu queria colocar a mão na minha filha e não podia. A enfermeira explicou que as primeiras 24 horas eram cruciais. Ao mesmo tempo em que queria tanto tocá-la, senti medo, pois ela era muito pequena, a pele era muito fina… Você via as veias! A incubadora estava toda embaçada, porque eles colocam bastante aquecimento. Apesar de tudo isso, era emocionante saber que ela estava viva. Mesmo que ela não estivesse nos meus braços ainda, eu sabia que uma hora ela viria.
É difícil explicar a sensação de ir sozinha para casa, sem o bebê. Eu estava tão impactada por tudo, que não conseguia parar para refletir sobre meus sentimentos. A adrenalina estava bem alta. Eu só tinha fé de que não ia acontecer nada, de que ela não morreria. Ao mesmo tempo, não conseguia parar para ficar pensando. Se eu fizesse isso, batia o desespero, porque o que vinha à minha mente era: ‘Nossa, ela pode não viver’. Mas, em geral, só tinha fé de que a Liz sairia dali logo.
No hospital, os médicos não dão previsão. A única coisa que falam é que o bebê recebe alta com 2 quilos, se todo o resto estiver bem também. Até então, eu achava que ela sairia com 15 dias. Lembro que uma das primeiras mães que conheci na UTI já estava com o bebê para receber alta, com duas semanas. Na minha cabeça, o mesmo aconteceria com a gente.
Apesar de tentar não parar para pensar, às vezes, acontecia, principalmente quando eu chegava na UTI e a via na incubadora. Eu estava no puerpério e desabava. Tinha que tentar tirar o leite, ainda era o colostro. Eu não conseguia. Olhava para ela e chorava. Eu acreditava muito que ela ia sair logo, mas, ao mesmo tempo, esse ‘logo’ demorava demais. Dois meses passam voando para outras coisas – uma viagem, por exemplo. Só que, quando se trata do seu bebê na UTI, cada segundo conta. Eu entrava para vê-la de três em três horas. Ficava meia hora, tentava tirar o leite e saía. Esse tempo era sempre demorado, não passava.
A alimentação era só parenteral [pela veia]. Eu não podia dar meu leite. Até tentei fazer a extração, mas esse período é tão sofrido! Só quem é mãe de UTI sabe. Você tira o leite para colocar em uma seringa. Em casa, não consegue tirar, porque a cabeça fica no seu filho. Você não sabe quando o bebê vai sair de lá ou SE vai sair de lá. Eu tentava, mas vinha muito pouco leite. Depois de um período, desisti. Na verdade, acho que fui desistindo aos poucos. Tirava 1ml, 2ml de leite, e via que ela já estava tomando 20, 30ml. É bem difícil, mas era o que dava.
Chegou uma hora em que ficou desgastante até para a relação com meu marido. Eu chorava em casa, ficava mal por não conseguir tirar o leite, me sentia insuficiente para ela, por não conseguir dar o básico para minha filha. Trabalhei muito isso na minha cabeça, muito mais do que a parte física.
Depois de quatro dias, eu estava em casa quando a médica ligou e disse que precisava falar comigo. Fiquei desesperada. Já tinha ido embora sem minha filha, achei que ela tinha morrido. Lá, explicaram que haviam percebido uma elevação no abdômen dela e que seria necessário fazer uma cirurgia. Não sabiam se era no estômago, por conta da sonda, ou em algum outro lugar. Então, os médicos a operaram e viram que ela tinha um furinho no intestino, de malformação mesmo. Depois disso, teve uso de antibiótico, transfusão de sangue, anemia…
Essa cirurgia foi o maior baque para mim e para o meu marido, em toda a estadia na UTI. Ligaram do hospital e não adiantaram nada pelo telefone. Só falaram para irmos até lá. Fomos calados. Eu chorava muito no caminho, pois realmente achava que tinha acontecido algo com ela. Só pensava no que faria sem a Liz, que já era parte da nossa vida. Eu não conseguia imaginar a possibilidade de viver sem minha filha.
Com 10 dias, ela começou a vomitar. Fizeram raio-x, tentaram identificar o que era, porém não conseguiram. Então, disseram que teriam de abri-la de novo. Desta vez, após o susto da primeira ligação, eu já estava mais preparada. Quando o telefone tocou, perguntei se minha filha estava bem e a moça falou: ‘Está bem, sim, mãe. Ela está aqui’. Então, fiquei mais calma, fui para o hospital mais tranquila e foi bem mais fácil.
Centro cirúrgico de novo. Um dos pontos da cirurgia anterior tinha aberto. Liz, então, precisou ser entubada. Depois de três semanas tentaram extubá-la, mas não conseguiram, porque ela teve uma atelectasia [colapso do tecido pulmonar, com perda de volume, que pode causar complicações como insuficiência respiratória e até pneumonia]. Então, tiveram que entubá-la mais uma vez.
A extubação só aconteceu quando ela completou um mês de vida. Foi um presente. Depois disso, houve um dia em que eu estava chorando e comentei com meu marido: ‘Será que nunca vou poder segurá-la? Ninguém nunca vai deixar?’. Então, ele chamou o médico que estava no plantão e perguntou se tinha uma previsão de quando eu poderia pegá-la. O médico olhou e disse: ‘Você nunca pegou?’. Quando eu respondi que não, ele falou: ‘Ah, não! É para já’. E aí, nossa, ela tinha 33 dias de vida.
Nunca vou esquecer. Acho que é uma das partes mais bonitas, porque toda mãe sonha em pegar o bebê na hora em que nasce e eu, depois de 33 dias, poderia segurar minha filha pela primeira vez. Daí em diante, consegui segurá-la todos os dias. Fazia o método canguru [contato pele a pele], a Liz dormia várias vezes no meu colo… Lembro que ela acordava, pegava no sono, olhava para mim, parecia que sentia mesmo que era eu. É muito emocionante a ligação que o bebê tem com a voz da mãe. Nem sei se isso realmente existe, mas quando você percebe, pensa: ‘Ela está me entendendo, ela está me vendo, ela sabe que eu sou a mãe’. E eu só estava segurando minha filha no colo, algo que todas as outras mães podem fazer diariamente. No entanto, para mim, era uma vitória. Eu sabia que, dali para frente, ela só ia melhorar. Logo estaríamos em casa e tudo ficaria bem.
Fomos caminhando, com o objetivo de que Liz chegasse aos 2 quilos, que era o peso necessário para a alta. Ela nasceu com 1,2kg, mas chegou a 920 gramas. Só que o ganho de peso, para um bebê, é bem lento. Ela ganhava 30 gramas, às vezes 15 por dia. Às vezes, não ganhava nada e até perdia um pouquinho.
Durante todo esse período, meu maior apoio foi do meu marido. Ele foi meu porto-seguro. Estávamos juntos há pouco tempo quando engravidei. Nos conhecemos e criamos uma conexão muito forte com o nascimento da Liz. Mais até do que na gravidez. Na gestação, ele já cuidava muito bem de mim. Era um superpai. Porém, com o nascimento, pude ver que ele era o melhor homem para mim e o melhor pai para nossa filha. Ele me apoiava psicologicamente, tentava me mostrar que eu tinha que estar bem para quando a Liz saísse do hospital.
Eu mesma também me ajudei, de certa forma, junto com as outras mães que encontrava na UTI. Conforme elas chegavam, via o desespero e pensava: ‘Nossa, eu estava assim’. Então, enquanto tentava colocá-las para cima, acabava me colocando para cima também, porque as minhas palavras eram repetidas para mim. Eu dizia: ‘Olha, está tudo bem, ele (ou ela) vai sair logo’. Tentava encontrar forças nas minhas próprias palavras. Acabávamos sendo o suporte umas das outras.
Quando recebi a notícia de que tentaram extubar a Liz e não conseguiram, depois da segunda cirurgia, e ela teve de ser entubada de novo, por exemplo, desabei ali, na frente das outras mulheres, e elas foram meu apoio. Criamos uma amizade. Agora, sei bastante sobre prematuridade, por conta da vivência e da troca de experiência com elas. A Liz foi um caso, mas conheci mães de bebês que ficaram internados por cinco meses.
Ao todo, foram 61 dias de hospital, 56 na UTI e 5 no quarto, antes de ir para casa. Liz saiu com 1.950 gramas. A médica liberou um pouquinho antes dos 2 quilos, pois ela estava evoluindo, ganhando peso todos os dias. No meio disso tudo, aconteceram duas cirurgias, anemia, transfusões de sangue, entubação… Mas valeu a pena.
Hoje ela está aqui, com 7 meses, e me emociona. Em casa, parece que é tudo na base da dificuldade, no entanto penso que o que é difícil de viver é bonito de contar. É assim que eu vejo a história da Liz”.