Preocupação com a própria saúde e do bebê, rede de apoio mais distante, medo da exposição em exames e consultas… Coloque esses e outros itens em um pacotinho e teremos um pequeno vislumbre da experiência desafiadora que é gestar em tempos de coronavírus.
Com mais de um ano desde a chegada da covid-19 ao Brasil, a ciência e os médicos conseguem responder algumas das inseguranças que passam na cabeça da mulher durante os nove meses. Mas o mesmo não se pode dizer para quem conviveu com a doença bem no comecinho, quando quase não tínhamos informação sobre transmissão, cuidados e tudo mais.
Simone de Fátima Oliveira foi uma dessas pessoas. Mãe de Joaquim, agora com oito anos, e dos pequenos Heitor e Heloisa, que completaram o primeiro aniversário, a farmacêutica de 38 anos foi diagnosticada com o novo coronavírus quando nem mesmo o uso de máscaras era obrigatório no país e viveu a agonia do teste positivo enquanto estava grávida de gêmeos.
Entre uma cesárea de emergência e dias duros de recuperação na UTI, a mãe, que vive em São Paulo, viu sua vida ficar por um fio – e, neste momento, pensar em seu filho mais velho era ao mesmo tempo o que a dava forças para continuar e o que a deixava mais angustiada, por temer o seu desamparo. Ela ainda falou sobre como foi o reencontro com a família e de que forma enxergam a covid-19 hoje, depois de tantos meses desde o ocorrido.
Confira o relato na íntegra:
Quando tudo começou
“Logo no início da pandemia, eu já estava de repouso em casa, porque tive uma complicação na minha gravidez gemelar, que era de risco. No dia 15 de março, um dia antes do governo determinar o fechamento das escolas, o meu marido foi a um chá de bebê. Como estava bem no início da doença, não tinha tanto essa preocupação, mas mesmo assim perguntei se ele realmente gostaria de ir.
Ele falou que daria uma passada apenas para deixar o presente. Ficou um pouco e, quando voltou para a casa, comentou que a esposa de um amigo estava com sintomas de gripe. Logo fiquei em alerta, porque o marido dela trabalha em hospital. Apesar da preocupação, não tínhamos certeza de nada.
–Uma semana depois, meu marido começou a ter um princípio gripal e, depois de cinco dias, eu passei a ter os sintomas. Não dei muita importância, achei que era só gripe, até que comecei a sentir muito cansaço, dor de cabeça, estado febril.
Resolvi ir ao hospital para tirar a dúvida e medir o oxigênio. Chegando lá, só estavam fazendo os testes para quem estivesse internado na UTI. Considerando o risco da minha gravidez, fui para a UTI e tive o resultado positivo depois de três dias.
Nisso, os bebês já estavam com o líquido amniótico diminuído e as minhas plaquetas estavam baixíssimas. O mínimo era 150 mil, e as minhas estavam em 29 mil. E isso traz um risco muito grande de hemorragia e morte no parto. Então os médicos resolveram fazer uma cesárea com anestesia geral.
Como estava muito no começo da covid-19, não tínhamos tanta ideia da gravidade. Vi na UTI muitas pessoas por volta dos 50 anos em uma situação bem deplorável, entubadas, a família sem notícias… E isso me assustava.
Mas meu medo maior era da cirurgia, porque sou farmacêutica e sabia que aquele cenário não era nada bom. Sabia que podia ter uma hemorragia incontrolável e que, em algum momento, poderia não estar mais ali. Então o medo era mais da complicação da covid.
Realmente, foi tudo mundo difícil. Os bebês nasceram de 35 semanas e depois da cesárea eu não estava estabilizando, tive uma hemorragia bem importante durante o parto, e a médica comentou que não sabia mais o que fazer, até que tentou uma última manobra que deu certo.
Para meu marido, também foi extremamente sofrido, porque ele ficou sozinho no hospital durante minha cirurgia, já que não podia ter acompanhante. Então ele não pôde estar na sala de parto e foi uma cirurgia bem demorada. Assim como eu, ele estava com muito medo.”
O período na UTI
“Depois disso, eu fui pra UTI. Eu ainda não estava estabilizando, apresentava uma anemia muito forte e tive que tomar quatro bolsas de sangue entre a cirurgia e o período da internação. Apesar do quadro preocupante, não tive que ficar entubada. Os médicos liberaram que eu ficasse com o celular na UTI, então conseguia fazer chamada de vídeo e de voz com minha família.
Nesse período, eu estava tendo muitos desmaios, então às vezes estava falando com eles e ‘apagava’ e quando eu voltava lembrava que estava no telefone. Mas não fiquei em nenhum momento sem contato com meu filho. Finalmente, após quatro dias na UTI, eu tive alta, mas ainda não conhecia os bebês, só fui vê-los na terça-feira depois do parto.
Pensamento na família
“Todos esses dias foram muito difíceis, tanto para o psicológico quanto para o físico. Foi um momento em que eu tinha certeza que eu não iria estar aqui agora. E minha família inteira também estava sofrendo demais, porque ninguém sabia nada da doença, estava todo mundo assustado.
Durante todo esse tempo, meu filho mais velho ficou em isolamento na casa da minha irmã, no interior, e só pude ver ele 15 dias depois do parto. E foi uma emoção muito grande para mim, porque naquele momento em que o médico disse que eu estava em risco, eu só pensava no meu filho, falava que ele era tudo para mim. Sabia que os cuidados de uma mãe são insubstituíveis. Ele foi minha inspiração e minha força para passar por tudo.
Na minha cabeça, tinha certeza que iria morrer e deixar meu filho desamparado. A única coisa que falava para todos os médicos e enfermeiros é que eles precisavam fazer o possível, porque eu não poderia deixar meu filho aqui, que ele era extremamente apegado a mim.”
Alívio do reencontro, desgaste do puerpério
“Reencontrar minha família foi só alegria. Meu filho chegou com uma carinha muito animada, querendo conhecer os irmãos e pegá-los no colo. Até hoje ele é apegado aos bebês, e desde o primeiro momento ficou encantado.
Mas eu ainda estava bem debilitada em casa, precisei de cuidados médicos por conta da anemia e, como qualquer puerpério, foi cheio de altos e baixos. Em algumas horas estava me amando e em outras me odiando. Tive a ajuda da minha mãe depois de 15 dias, quando terminei o isolamento. Minha rede de apoio era ela, meu marido e uma pessoa que ajuda com a casa, e não sei o que teria sido de mim sem isso.
Embora eu tivesse ajuda com as coisas operacionais, da casa e do bebê, na maior parte do tempo era eu que tinha que organizar tudo, escolher que roupinha os bebês iriam vestir, decidir que horas dar banho, qual seria o cardápio do almoço e da janta… Então fiquei bem esgotada psicologicamente.”
A visão de um mundo com covid-19
“Mesmo depois de me curar da doença, continuamos nos protegendo com todos os cuidados necessários. Meus bebês quando veem alguém diferente choram, porque não têm contato com pessoas de fora. Eu precisei de um pouco de terapia para digerir tudo. Recentemente tive que parar, mas acredito que me faria bem até hoje, porque ainda tenho alguns traumas para resolver.
Meu filho mais velho conseguiu assimilar o que aconteceu. Sabe exatamente o que é o vírus, conversamos muito com ele a respeito da proteção. Ele fica com raiva do coronavírus, fala que não aguenta mais, questiona ‘poxa vida, isso não vai acabar?’.
Ele sabia na época que eu estava com covid, e por isso ficou com tanta raiva depois. Quando cheguei em casa, não conseguia dar tanta atenção para ele, pela minha situação e por conta do puerpério, então ele associou a doença a minha ausência também.
Fico muito triste de ver o quanto as pessoas estão minimizando o problema. Tenho amigos muito queridos que não estão se cuidando, que estão tratando como se fosse uma ‘gripezinha’. Me entristece, porque sou uma pessoa próxima a eles. Isso não é sensacionalismo da mídia, e eles não aprenderam nada com o que eu passei.”