Como identificar sinais que uma criança dá quando sofre abuso ou violência
Não há regras ao falarmos sobre vítimas de abuso ou violência na infância, mas pais e responsáveis devem ficar atentos aos indícios de que algo não vai bem.
O caso do garoto Henry Borel, que aos 4 anos de idade foi encontrado morto no apartamento da mãe, Monique Medeiros, e do padrasto, Jairo Souza Santos Júnior, conhecido como vereador Dr. Jairinho, reacendeu o debate frente ao tema dos maus tratos e abusos – de cunho físico, psicológico ou sexual – que crianças podem sofrer dentro e fora de casa. Apesar da morte de Henry ainda estar sob investigação, o laudo emitido pelo Instituto Médico Legal (IML) aponta que o menino sofreu lesões em diferentes partes do corpo, descartando a hipótese de acidente doméstico, e colocando Monique e Jairinho como os principais suspeitos do crime.
Para que pais, professores e outros cuidadores possam proteger suas crianças de um possível agressor e, ainda, não deixar que a situação atinja níveis extremos, como o que aconteceu com Henry, é importante que os responsáveis saibam identificar que algo não vai bem por meio de mudanças de comportamento, bruscas ou graduais, e alguns indícios que o pequeno dá.
Esses sinais que a criança pode ou não demonstrar, explica Gabriela Luxo, psicóloga, mestre e doutora em Distúrbios do Desenvolvimento pela Universidade Presbiteriana Mackenzie, costumam variar de acordo com a idade.
“Crianças um pouco maiores, geralmente as alfabetizadas e com idade entre 6 e 7 anos, têm mais maturidade e capacidade de expressão, o que faz com que elas passem a verbalizar algumas situações de maneira um pouco mais clara. Já as menores possuem mais dificuldade de entender os fatos, nem sempre têm noção do tempo, e isso faz com que elas apenas soltem comentários pontuais”, diz a profissional.
Deborah Moss, neuropsicóloga mestre em Psicologia do Desenvolvimento pela Universidade de São Paulo (USP), completa ao apontar que, muitas vezes, por conta dessa dificuldade em verbalizar o que está vivendo, e dependendo do tipo de agressão ao qual está exposta (um abuso sexual, por exemplo), a criança não é capaz de entender que aquilo é, de fato, uma violência. Ela pode confundir com uma manifestação de carinho, por não ter maturidade para entender que está sendo abusada.
É preciso atenção
Gabriela ressalta que nem sempre essa criança vai apresentar sinais claros de que algo não vai bem, exatamente pela questão da falta de maturidade para verbalizar os fatos. A psicóloga exemplifica ao dizer que, muitas vezes, o pequeno passa a chorar mais, ficar mais irritadiço, começa a ir mal na escola, fica desanimado e sem energia para fazer coisas que antes gostava. Todos esses sinais merecem atenção, diz ela, mas é preciso saber se essas dificuldades são algo natural ou se têm a ver com questões emocionais.
Mudanças mais bruscas no comportamento da criança também podem ocorrer, conforme explica Deborah. Agressividade, sintomas físicos que indicam ansiedade, medo constante de que algo vá acontecer com ela e apatia são outras emoções que precisam ser investigadas, bem como se ela passa a fazer coisas que causem estranhamento nos adultos.
“Pode ser que a criança tente reproduzir o que fizeram com ela nos brinquedos ou com outras crianças, ou que ela fique mais retraída, temerosa e assustada. Muitas vezes ela sofre o abuso ou a violência por meio de alguém que a ameaça e pede por segredo – e tende a ficar mais acuada, o que também pode ser um sinal caso ela se mostre mais insegura do que costumava ser”, diz a especialista.
Efeitos da pandemia
Conforme mostra um estudo realizado pelo Fundo das Nações Unidas para a Infância (UNICEF), Instituto Sou da Paz e o Ministério Público do Estado de São Paulo, crianças e adolescentes ficaram ainda mais vulneráveis à violência durante a pandemia de Covid, consequência do fechamento das escolas e outros ambientes importantes para a socialização infantil. Com a redução de denúncias pelo isolamento social, sabe-se que muitos casos foram subnotificados.
Com as crianças em casa e sob cuidados de pessoas que fazem parte da rede de apoio, há também uma possibilidade maior no aumento de casos de abusos variados e maus-tratos – é por isso que pais e responsáveis também devem analisar o comportamento e sofrimento tomando como base o cenário da pandemia.
“Uma criança ficar em casa um ano inteiro não é bom para ela, com ou sem pandemia. Há a importância da socialização, de estar em contato com outras e da escola, que desenvolve muito mais do que a parte cognitiva, assume Deborah.
“Se a criança está passando por algum tipo de abuso, ela também vai demonstrar isso por meio da mudança de comportamento – e aí deve ser analisado tudo o que está em sua volta: perda de algum parente, pais preocupados ou ansiosos em excesso, rotina desorganizada… não necessariamente a criança demonstrar algum problema representa sinal de abuso ou agressão, é preciso um olhar atento e cuidadoso”.
O papel da escola
Por conta da pandemia também, muitas crianças estão em ensino remoto e desta maneira, perde-se o convívio da sala de aula e do olhar de professores e coordenadores. Em muitos casos, são eles que conseguem perceber que algo não vá bem.
Em um cenário presencial, a escola possui um papel fundamental na hora de identificar alterações no comportamento de crianças, e é por isso que professores e demais educadores devem estar atentos aos alunos que apresentem sinais de tristeza, agressividade, que evitem socializar com os amiguinhos, mostrem alterações no desempenho e no semblante. É papel do professor, ainda, alertar pais e demais responsáveis sobre essas mudanças, de preferência em uma conversa franca e em particular.
O ambiente escolar deve ser um local de acolhimento, de cuidado, um canal aberto para a comunicação com os alunos. Temas como o abuso e a violência podem tanto ser abordados em aulas, de maneira mais direta, quanto nas reuniões de pais, em eventos e usando recursos práticos, como histórias, representações, literatura e teatro – falar sobre tudo isso também pode funcionar como ferramenta para que a criança se sinta segura para pedir ajuda.
Escuta ativa, diálogo e validação da fala infantil – sem julgamentos
Gabriela menciona o fato de que nem sempre os pais, educadores ou professores dão crédito ao que a criança fala, e isso está errado. É importante escutar o que ela tem a dizer, perguntar sobre coisas do dia a dia e deixá-la livre para que se expresse e conquiste a sua confiança. Em situações de abuso, maus tratos e violência, os responsáveis precisam também buscar informações com terceiros, entender se aquela pessoa presenciou ou está sabendo de algo, para assim entender e diferenciar o que é fantasia e o que é realidade.
“A melhor abordagem é a de ouvir a criança e nunca colocar palavras na boca dela. Nós temos uma tendência de nos assustarmos com o conteúdo de algumas conversas, e de tentar terminar as frases pela criança, ou já mostrar um grande impulso baseado no que ela falou. Quando isso acontece, a criança se assusta e entende que há algo errado, ou que ela não pode falar aquilo. A conversa, assim, acaba não fluindo, e ela pode se fechar para o diálogo”, reforça a psicóloga.
Para Deborah é importante, ainda, recorrer a diferentes abordagens com base na idade de cada criança. Dessa forma, para pequenos que já têm o domínio da fala, é ideal que o adulto mostre que está preocupado, pergunte se a criança quer contar alguma coisa para ele, abra para o diálogo. Outra maneira de atingir crianças menores, por sua vez, é usar recursos lúdicos, como brincadeiras, livros, filmes e desenhos que a instiguem a se abrir de maneira mais natural.
Busca por ajuda é essencial
Como já pontuamos, é essencial ao identificar algum tipo de sinal ou até mesmo reconhecer um abuso, que diferentes versões da história sejam investigadas. Professores, cuidadores e todos os responsáveis devem ser ouvidos, mas isso não descarta a necessidade de buscar ajuda profissional para tratar do problema da criança – não tem como a família resolver tudo de forma independente. De qualquer jeito, ao identificar o abusador é urgente o afastamento da criança dessa pessoa, bem como o acolhimento e conforto.
“Às vezes os pais se isolam, tiram a criança do contato com o agressor ou abusador, mas não resolvem a situação. Isso acaba gerando problemas futuros para a criança, por ter sido diagnosticada mas não tratada”, reforça Gabriela.
Médicos, psicólogos e outros especialistas em saúde mental poderão ouvir a criança e analisar a situação de maneira mais neutra, ausente de vínculos emocionais ou laços afetivos. Isso é importante, fala a especialista, para ajudar a criança a se abrir sem medo de ser julgada e trabalhar a questão da culpa que também pode surgir.
Já nos casos mais graves, inclusive nos quais os pais são os próprios agressores, deve-se acionar a justiça, que vai trabalhar de maneira multidisciplinar para ajudar a criança. Nessas situações, o objetivo é, também, de inserir os profissionais dentro da história.
Seja qual for o cenário, finaliza Deborah, amparo e a compreensão são fundamentais:
“Crie uma relação de proximidade com a criança, de que tudo o que acontece com ela é do seu interesse, que está lá para protegê-la e cuidar dela. Não importa se não há provas sobre o que ela diz, é muito importante que aquilo seja validado. Muitas vezes, se o que ela falou não foi realmente o que aconteceu, o que vale é que aquela foi a forma encontrada por ela para transmitir uma mensagem”.