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Tocofobia: quando o medo de engravidar se torna um transtorno psiquiátrico

A apreensão, que toma dimensões irracionais, pode ou não ter origem em traumas e afeta a vida de muitas mulheres. Entenda!

Por Da Redação
16 nov 2023, 20h01

Andrea*, de 31 anos, sentia o bebê mexer em sua barriga várias vezes ao dia. Em alguns momentos, conseguia até visualizar o volume no abdômen. Para muitas mulheres, essa é uma sensação incrível, esperada, sonhada. Não para ela. E não porque a gestação não tivesse sido planejada ou desejada, e sim porque não havia nenhuma criança ali dentro.

Embora soubesse disso, Andrea não conseguia dormir sem fazer um teste de farmácia, só para ter certeza. Era a mesma coisa todos os dias. “Meu corpo e minha mente me enganavam. Os sintomas eram muito reais”, conta. O pavor de engravidar era extremo. O que ela estava sentindo tem nome. Trata-se de um transtorno psiquiátrico conhecido como tocofobia.

“A tocofobia, na realidade, é um medo irracional, persistente, incapacitante, muitas vezes paralisante de engravidar ou um medo do trabalho de parto, explica o psiquiatra Joel Rennó, professor e diretor do Programa de Saúde Mental da Mulher do Instituto de Psiquiatria da Universidade de São Paulo (USP) e coordenador da Comissão de Saúde Mental da Mulher da Associação Brasileira de Psiquiatria (ABP).

De acordo com o especialista, as pacientes “perdem alguma razão e ganham um grau elevado de ansiedade”. Em diversos casos, ainda que não estejam grávidas, acabam tendo sintomas como náuseas e vômitos. “O médico pede um teste de sangue, um ultrassom, e não vem nada. Elas repetem os exames, questionam e não confiam nos métodos contraceptivos, mesmo quando explicamos que a chance de falha de alguns deles é mínima”, descreve.

“Eu não dormia. Tinha medo de transar, porque, para mim, isso era sinônimo de engravidar.”

Andrea*, paciente diagnosticada com tocofobia

Os vários exames de Andrea apresentavam sempre resultado negativo para uma gestação. “Por semanas, as pessoas tentavam me acalmar, mas, para mim, eu estava grávida”, lembra. E era desesperador, pois, se ela contava com uma certeza na vida, era a de que não queria ter mais filhos.

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“Mais”, no caso, porque Andrea já tinha uma filha. “Fui mãe muito cedo, engravidei com 21 anos”, explica. Embora se considere uma pessoa com todos os privilégios, em comparação à maioria das brasileiras, já que o pai assumiu a criança e ela tinha estabilidade financeira, não foi nada fácil. “Precisei abdicar de muitos sonhos”, conta. 

A jovem estava começando a vida profissional, havia mudado de cidade, fazia estágio… Com a gravidez, no entanto, tudo foi suspenso. “O mercado de trabalho fecha as portas”, afirma. 

No parto, ela sofreu violência obstétrica. Os primeiros anos de maternidade foram solitários. Enquanto isso, via a carreira com que tanto sonhava – e da qual estava tão perto – ficar cada vez mais distante: “Desde então, decidi que minha filha seria filha única. Costumo dizer que sou apaixonada por ela, mas odeio a maternidade. Odeio ter tido que abdicar da minha vida.” 

A decisão era tão firme, que Andrea engravidou novamente e abortou. “Nunca foi uma dúvida, sabe? Nunca pensei: ‘Ah, vou fazer um aborto e vou viver arrependida’. Não. Fui atrás de procedimentos clandestinos”, lembra. Logo em seguida, teve uma crise de pancreatite (inflamação no pâncreas), com várias complicações, e precisou ficar internada por um mês. 

Quando se recuperou, a pandemia havia acabado de começar. Então, ela desenvolveu síndrome do pânico e, junto, a tocofobia.

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Ilustração da mulher branca, de pele clara, vestindo camiseta branca de manga comprida, cabelo castanho liso e médio. Há uma nuvem de rabiscos em cima de sua cabeça e ela está com as mãos direcionadas às têmporas. Está com feição triste e preocupada. Fundo roxo.
(Mikhail Seleznev/Getty Images)

Mais comum do que se imagina

Embora seja um transtorno sobre o qual pouco se fala, Andrea não estava sozinha. Pelo contrário. Um estudo norte-americano publicado na revista científica Evolution, Medicine and Public Health mostrou que a tocofobia afeta 6 em cada 10 mulheres. “O trabalho foi feito durante o auge da pandemia e, nesse período, houve uma prevalência aumentada por conta do risco de infecção, de como isso repercutiria no desenvolvimento do bebê, entre outras questões”, explica Joel Rennó. 

Segundo o psiquiatra, entre 2020 e 2021, era bastante comum ouvir relatos também aqui no Brasil sobre o medo de não ter suporte após o nascimento do filho, em função do isolamento social. Fora que grávidas eram um dos grupos de risco mais afetados, a mortalidade materna cresceu e pouco se sabia sobre o efeito do vírus em crianças. Engravidar já requer coragem em um contexto qualquer. Naquele, era um mergulho ainda mais profundo no desconhecido.

A relação com traumas anteriores, como no caso de Andrea, ou com cenários de risco aumentado, como o da pandemia, não são os únicos fatores que podem levar à condição. É possível que o problema aconteça por outros motivos.

“A tocofobia pode estar associada a sérias intercorrências durante a gestação, mas é importante nos atentarmos ao fato de que ela, geralmente, está relacionada a outras fobias, a outras ansiedades, a inseguranças.”

Wimer Bottura, psiquiatra e psicoterapeuta membro da ABP e presidente do Comitê de Adolescência da Associação Paulista de Medicina (APM)

De acordo com o especialista, o trauma não precisa sequer ter ocorrido com a própria mulher. “Pode estar ligado a experiências indiretas, que tenham acontecido com pessoas próximas”, aponta. “A tocofobia se enquadra dentro dos transtornos chamados fóbico-ansiosos”, detalha Rennó. 

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Quero ser mãe, mas…

Silvia Mendes, de 32 anos, não tem filhos e gostaria de ter, porém lida com um medo intenso desde a adolescência. Assim como Andrea, também não sabia que isso era um transtorno. “Tenho pesadelos em que estou grávida e são sempre relacionados ao parto”, diz. 

Um ponto sobre a própria saúde tornou o pavor de engravidar ainda mais forte. Em 2015, Silvia descobriu uma mutação genética que coagula o sangue em excesso. “Tive trombose e serei dependente de anticoagulantes para o resto da vida. O agravante para a tocofobia é que uma gestação, na minha condição de trombofilia, preocupa mais. Seria uma gravidez de risco, eu teria de usar anticoagulante injetável, é um tratamento dolorido e sem muitas garantias”, conta.

“Sou maternal, gosto de crianças, tenho muito jeito com elas, mas relatos de parto ou pensar em cesariana e no pós-parto me dão uma agonia inexplicável”, diz Silvia. E, sim, ela reforça o desejo de se tornar mãe: “Mas não quero parir”, explica.

Ilustração de duas mulheres, uma chorando, mais baixa, que parece ser mais jovem, sendo amparada por uma mais alta. Ambas têm pele clara e estão com blusas de manga comprida. A mais baixa usa blusa branca, tem cabelo castanho e comprido e está chorando. A mais alta usa blusa rosa, tem cabelo ruivo preso em um coque e não está chorando.
(Mikhail Seleznev/Getty Images)

Cuidar é fundamental

Procurar ajuda especializada precocemente é essencial, tanto para que o transtorno deixe de afetar a vida da mulher o quanto antes, como para evitar que o quadro se agrave. “Quando a tocofobia não é tratada, a pessoa pode evoluir para transtornos de ansiedade ou de humor, como depressão”, alerta Rennó.

O médico ressalta que os quadros acima descritos são severos e, além da psicoterapia, podem requerer tratamento medicamentoso, com antidepressivos e ansiolíticos, por exemplo.

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Será que tenho tocofobia?

Está na dúvida se o que você sente em relação à gravidez ou ao parto é um transtorno ou uma apreensão comum? Avalie o quanto isso atrapalha sua vida na prática. 

Se o medo de engravidar ou de parir estiver gerando neuroses, impedindo ou atrapalhando seus relacionamentos, fazendo com que você deixe de realizar atividades de que gostava ou de buscar seus sonhos por receio, ou simplesmente se ele fizer com que você se sinta ansiosa quando o assunto é maternidade, gravidez ou parto, procure um psiquiatra de sua confiança.

Segundo Joel Rennó, o diagnóstico da tocofobia é feito por meio de uma anamnese psiquiátrica, que é uma conversa estabelecida a partir de perguntas do profissional de saúde, para entender o histórico de vida pessoal e familiar, os aspectos biológicos, psicossociais e ambientais. “Também envolve o exame psíquico. Às vezes, ele não tem alterações, mas os sintomas ansiosos indicam a condição”, explica.

Como lidar com o medo de engravidar

De acordo com o médico, o tratamento engloba trabalhos psicoeducativos e psicoterapia, principalmente comportamental e cognitiva. Wimer Bottura acrescenta que, em alguns casos, recomenda-se a terapia familiar, no sentido de tirar a sobrecarga que é colocada na mãe durante a gestação. “São trabalhos importantes, mudando a representação da gravidez e do trabalho de parto sobre a pessoa”, diz. 

Falar do assunto é importante para que as pacientes que convivem com essas sensações saibam que não estão sozinhas e que, muitas vezes, também não conseguirão sair da situação sozinhas. Compreender o problema, como aconteceu com Andrea e Silvia, livrar-se da culpa e poder contar com apoio emocional e profissional são pontos fundamentais para saber como lidar com esses conflitos, como cuidar da saúde mental e para engravidar sem sofrimento, caso seja o desejo da mulher.

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*O nome verdadeiro foi mantido em sigilo.

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