“Não doeu nada!” , “isso não é motivo para chorar”, “você precisa terminar de comer porque está com fome, sim”. Reconhece essas frases? Comuns, são repetidas com recorrência por pais no mundo inteiro. E o que será que isso tem a ver com o gaslighting, aquele termo usado para descrever situações, em relacionamentos adultos, em que um usa de artifícios para fazer o outro acreditar que está maluco ou imaginando coisas? A gente explica.
Em uma peça de teatro inglesa, de 1938, chamada “Gas Light”, de autoria do romancista e dramaturgo Patrick Hamilton, um marido tenta fazer com que a mulher ache que enlouqueceu, por meio de várias trapaças. Uma delas, a que dá nome à peça, é a diminuição do gás que fornecia luz à casa deles. Todos os dias, ele reduzia aos pouquinhos, a partir de certo horário, a iluminação. Ao relatar que isso acontecia, a mulher ouvia dele que não era verdade, que ela estava imaginando tudo. O homem usava de pequenos truques para fazer a moça achar que estava louca, que estava esquecida, deixando-a insegura, sem acreditar em si mesma, no que via, no que sentia, no que pensava.
Infelizmente, o artifício não é só um roteiro de teatro ou de cinema. Tanto, que o termo gaslighting, inspirado mesmo na peça, passou a ser usado para descrever essa manobra, que acontece, geralmente, em relacionamentos adultos. “É um termo que ficou bem conhecido e significa uma forma sutil de violência em que os homens manipulam as mulheres, de forma a fazê-las duvidarem de sua própria percepção acerca de si e do que acontece nas relações. É o clássico: ‘você está louca, está exagerando, está imaginando tudo isso’”, explica a psicóloga e psicanalista Elisa Motta Lungano, especialista em crianças e famílias, em São Paulo (SP).
E o que isso tem a ver com as crianças?
Bem, muito. “Dá para fazer um paralelo com a maneira com que, muitas vezes, elas são tratadas. E é ainda mais delicado, porque estão formando a visão de mundo através dos adultos e dependem deles para perceber o que acontece”, relata a especialista. “Isso ocorre em situações inocentes. Por exemplo, a criança se machuca, cai no chão e você fala: “Não foi nada”. Mas foi. Para a criança, pode ter sido grave, mesmo que não tenha saído sangue, está doendo. E, aí, ela fica confusa, porque está sentindo dor, está sofrendo, está chorando, mas o adulto está dizendo que não é nada. A palavra, principalmente de um adulto de confiança, tem um poder muito grande. Ela pensa: ‘Se meu pai, se minha mãe, estão dizendo que não aconteceu nada, então, não deve ter sido, mas eu estou sentindo dor’”, exemplifica. Complicado, né?
A situação descrita acima é corriqueira e, na maioria dos casos, claro, não há a intenção de prejudicar o filho, como acontece no gaslighting entre adultos. Mas há casos mais sérios e problemáticos, como, por exemplo, quando o pai ou a mãe bate na criança e depois fala: “Olha o que você me obrigou a fazer”. “Não foi a criança que fez algo ou pediu para ser agredida. O que aconteceu foi que esse adulto perdeu a paciência, se descontrolou e a criança não tem responsabilidade pelos atos dele. Mesmo assim, diante dessa fala e desse mecanismo, ela se sente responsável, passa a duvidar das próprias percepções, porque o adulto vai projetando nela outras versões da realidade que ele mesmo vê e que são completamente diferentes daquilo que a criança sente”, explica Elisa.
A psicóloga Nanda Perim, criadora do método PsiMama e autora do livro Educar sem pirar (Editora Bestseller), descreve ainda outras situações sérias em que os adultos usam o mecanismo do gaslighting com crianças – talvez sem a intenção, mas, ainda assim, de maneira prejudicial. “Morreu um ente querido na família e ninguém conta para a criança. Então, ficam fingindo que está tudo bem, que está tudo normal, que ninguém está sofrendo. A criança acha que ela está enlouquecendo, porque está vivendo uma realidade emocional, percebendo toda uma mudança de hábitos e sentimentos nos adultos em volta dela, mas todos dizem a ela que nada aconteceu”, detalha.
São situações, algumas mais graves e outras mais leves, mas que vão minando a confiança do seu filho nele mesmo e podem deixá-lo confuso. Para Elisa, o problema é que é comum as crianças serem desacreditadas, desde o nascimento, das percepções delas sobre o mundo, diferente do que acontece em outras relações.
“Se você tem uma amiga, por exemplo, que está contando que está chateada com algum problema que você acha pequeno, você não fala: ‘ai, amiga, isso não é nada’. Você pode até falar que vai passar, que ela vai conseguir resolver”, compara. “Quando estamos vendo a situação de fora – seja um arranhão no parque ou a amiga que está com uma questão qualquer da vida – conseguimos enxergar que a pessoa que está no olho do furacão realmente acha que aquilo é um problema muito maior do que é, mas confiamos que vai passar, que a pessoa vai dar conta de superar”, analisa. O ponto é: quais palavras e qual maneira de agir você escolhe para tentar mostrar isso àquela pessoa, valorizando a experiência dela, sem invalidar suas emoções?
Mas por que os adultos fazem isso?
Se você ficou preocupado agora, concluindo que, ‘meu deus, eu faço gaslighting com meu filho e nem me dava conta disso’, calma. Na verdade, é preciso entender por que os adultos usam esse artifício e existem, sim, algumas explicações. Não dá para, como dizem, “passar pano”, mas é importante compreender a raiz dos problemas para, então, começar a resolvê-los.
“Muitas vezes, os adultos fazem isso na intenção de controlar o comportamento da criança, de querer dizer como ela deve agir ou se sentir porque a educação tradicional coloca esse adulto num lugar de poder”
Nanda Perim, psicóloga
“Os adultos definitivamente acreditam que eles podem decidir como a criança deve ou não se sentir. O exemplo mais claro disso é a frase comum: ‘Você não precisa chorar por causa disso’. O adulto está constantemente invalidando as emoções dessa criança e dizendo que aquilo não é motivo suficiente para chorar, quando é. Tanto é que a criança está chorando. Então, você está diminuindo o gás, está escurecendo o ambiente e está dizendo: ‘Não, não, o ambiente está claro’, voltando à referência do filme que ajudou a cunhar o termo gaslighting”, compara a psicóloga.
Segundo Nanda, às vezes, os pais querem evitar entrar em contato com as emoções dos filhos porque é muito doloroso vê-los sofrendo. “Pode ser também por uma ferida emocional desse próprio adulto que, quando criança, também não teve seu choro acolhido”, diz ela. “A educação tradicional nos ensina que estamos constantemente em um cabo de guerra com a criança, que se a gente não bater, a criança bate na gente, que se a gente não controlar, a criança fica tirana, que quem tem que mandar na sua casa é você, caso contrário, a criança começa a te manipular. Então, o adulto usa o gaslighting para disputar com a criança e mostrar a ela quem manda”, afirma.
A técnica também é frequentemente usada até na intenção de proteger a criança, mas de uma maneira que não resolve o problema. Na verdade, pode até torná-lo pior, como reflete Elisa. “Às vezes, a criança percebe algo que você não queria que ela tivesse visto ou ouve alguma história, percebe algum conflito na família e é difícil para o adulto ter a coragem de dizer que é isso mesmo, que ela está certa, que quando ela crescer, ele explica melhor. Então, a saída é falar: ‘Não, não aconteceu nada, imagina. Eu não estava brigando’. É mais fácil fazer com que a criança acredite que o que ela viu não estava certo, inventando outra versão. Afinal, é criança, não sabe o que está dizendo”, aponta a psicanalista.
E os efeitos aparecem ao longo da vida…
E qual é o grande problema de fazer as crianças passarem por situações assim? Alguns adultos podem até lançar mão do clássico: “Eu passei por isso e estou aqui, vivo!”. Mas será que estamos bem, mesmo? Segundo a psicóloga Nanda, um dos maiores efeitos dessa prática, a longo prazo, é que, nós, adultos, ficamos extremamente desconectados das nossas emoções e percepções. “Um exemplo muito claro está na alimentação. Quantas pessoas têm dificuldade de parar de comer, mesmo satisfeitas? Desaprendemos a escutar nosso corpo”, aponta ela. Pode ser um efeito de tanto ouvir que você precisa comer, sim, está com fome, sim, ainda que, claramente, seu estômago estivesse repleto.
E pode ir muito além. “As pessoas têm crises de burnout, de estresse, não entram em contato com a própria tristeza e isso acaba virando uma úlcera… Essa desconexão entre o que você sente, suas percepções emocionais e corporais, com a consciência e o acolhimento delas, é a principal consequência. Você acredita muito mais se qualquer outra pessoa disser que você está errado de estar pensando ou se sentindo de certa forma. Você tem vergonha de chorar, de sentir medo, de sentir raiva, porque foi desconectado desse direito”, continua. Segundo ela, muita gente não se lembra de partes da própria infância e isso, talvez, esteja ligado a essa desconexão. “Causa um buraco interno, que não conseguimos preencher. E muitas vezes tentamos com bebida, comida, drogas, sexo…”, sugere.
Elisa lembra também que essa necessidade de outra pessoa para validar o que você diz, pensa ou sente pode, aos poucos, se cristalizar e virar um traço da personalidade. “São pessoas que, na vida adulta, não conseguem ter uma visão própria e sempre precisam se apoiar no outro”, aponta. Um efeito ainda mais óbvio é a continuidade desse modus operandi com as crianças, de geração em geração. Quem passou por isso e foi educado assim tem grandes chances de fazer o mesmo com os filhos no futuro. “E assim vai se perpetuando essa visão sobre a infância, como se as crianças não soubessem de si. Virou um traço da nossa cultura”, complementa.
Mas nem tudo é gaslighting!
Como todas as palavras e acusações, principalmente aquelas ligadas à violência e ao abuso, como é o caso do gaslighting, é preciso tomar um certo cuidado. “Não podemos banalizar o termo. Nem tudo é gaslighting”, destaca a psicanalista Elisa. “Há momentos em que nos enganamos ou falamos algo querendo que seja diferente. E as crianças se recuperam um tanto também dessas nossas falhas”, explica.
Não é que qualquer coisa vai causar um transtorno seríssimo ao seu filho. É apenas um cuidado que precisamos tomar para validar as sensações e as falas, sem negar”
Elisa Motta Lungano, psicóloga e psicanalista
O papel dos pais é também traduzir o mundo para a criança, que acabou de chegar e que muitas vezes não entende algumas situações. Então, para usar o mesmo exemplo, se o seu filho cai e se machuca, também é sua função acalmá-lo e mostrar para ele que aquilo, com o tempo, vai cricatrizar e parar de doer.
“Às vezes, você demonstra isso com o corpo, com um abraço, com um olhar. Às vezes, é o simples fato de lavar o machucado, de mostrar que você entende, reconhece. Não precisa negar o que aconteceu. Quando o adulto tem a intenção de ser verdadeiro, transparente, fica mais fácil”, resume Elisa. A ideia é não invalidar o sofrimento ou a percepção da criança, mas ajudá-la a passar por aquilo, com a maior honestidade possível – e, claro, de uma forma que seja adequada e compreensível para a idade dela.
O poder da reparação
Se, mesmo sem saber o termo, você se dá conta de que, em alguns casos, acaba agindo dessa forma para tentar acalmar seu filho ou tentar contornar situações difíceis, dá tempo de prestar atenção aos momentos em que isso acontece no cotidiano e mudar. E isso independe da idade, viu?
Para Nanda, além de mudar a forma de agir, você pode conversar com seu filho e mostrar para ele que você estava errado. Isso é humano também. “Independente de achar que a criança entende ou não, sente-se com ela e diga: ‘Acabei de perceber que eu disse para você que não doía, mas eu sei que dói, sim. Eu disse que era bobeira chorar, mas podia ser bobeira para mim e não para você’. Acho importante porque isso também ajuda a validar a realidade”, analisa.
A grande mudança está mesmo em viver os momentos com seu filho por inteiro. Assim, fica mais fácil sair do piloto automático e não agir de certa maneira porque é comum, porque todos os adultos fazem, porque sempre fizeram assim com você também. Prestar atenção e estar presente ajuda a questionar e a ensinar seu filho a lidar com os próprios sentimentos – sem precisar diminuir o gás.