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6 comportamentos que cobramos das crianças mas não dos adultos

Não deixar comida no prato, emprestar objetos para desconhecidos... Ser obrigado a fazer algo que os pais não são pode gerar prejuízos ao pequeno. Entenda!

Por Flávia Antunes
Atualizado em 25 abr 2022, 13h27 - Publicado em 5 fev 2021, 18h34

Imagine a seguinte situação: você chega em uma confraternização em que conhece pouca gente e é forçado a interagir com um grupo de pessoas – contra a sua vontade – só por terem idades parecidas. Desconfortável, né? Ou então comparece a um jantar com pouca fome e, depois de te servirem um prato farto, recebe reclamações por deixar sobrar um pouquinho de comida.

As cenas descritas parecem esquisitas quando os participantes são adultos, mas transpondo para o universo infantil percebemos que elas são, na realidade, bastante frequentes. Sim, você provavelmente já repreendeu seu filho por não querer abraçar um desconhecido, não comer tudo ou por não querer emprestar um objeto especial quando, em seu lugar, teria a mesma reação.

Pensando nisso, conversamos com psicólogos para listar 6 atitudes que cobramos das crianças e não dos adultos. Claro que a maioria das ações que tomamos são nas melhores das intenções, mas nem sempre os pequenos têm esse entendimento e podem acabar estranhando seus pais serem autorizados a fazerem tantas coisas que eles não são. Veja só alguns exemplos:

1. Emprestar objetos para desconhecidos

De acordo com Bárbara Calmeto, neuropsicóloga do Autonomia Instituto, as famílias costumam se queixar bastante de quando os menores se recusam a emprestar algum brinquedo para um colega ou até alguém que não conhecem. “Será que você gostaria de compartilhar suas coisas no dia a dia, principalmente com quem você não tem contato? Então é preciso respeitar que seu filho também não gosta, principalmente quando está engajado na brincadeira”, pontua ela.

A especialista ainda lembra que muito do que entendemos como um comportamento educado ainda não está consolidado para o pequeno. “Os pais muitas vezes não compreendem que o cérebro da criança ainda está em evolução, essas noções de habilidades sociais e empatia estão muito rudimentares e vão se desenvolvendo no decorrer dos anos”, explica.

Claro que é importante ensinar valores como altruísmo e a sociabilidade – e estimular que seu filho compartilhe os pertences é uma forma de fazer isso. Mas o cuidado deve ser de respeitar os limites da criança, dando um passo atrás caso ela demonstre estar desconfortável com a situação.

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2. Comer tudo que está no prato

Como já ilustramos lá em cima, é como se apenas os adultos tivessem o direito de não terminarem a comida por não terem gostado do alimento ou por já estarem saciados. A neuropsicóloga lembra que crianças com alguma dificuldade nutricional ou com problemas alimentares merecem um olhar diferente mas, no geral, forçar as refeições só traz malefícios.

Inclusive, existem provas de que o comportamento de mandar o filho “limpar o prato” pode prejudicar a relação com a comida no futuro e até conduzi-lo à obesidade infantil e na vida adulta.

3. Mudar as atividades de uma hora para outra

Outra situação nada interessante é obrigar a criança a parar o que está fazendo para realizar outra atividade. “Por exemplo, se ela está vendo desenho e um dos pais chega a desliga a televisão. Não percebemos muitas vezes, mas comportamentos como esse são extremamente invasivos”, alerta Bárbara.

Segundo ela, uma boa estratégia neste caso seria dialogar, dizendo que o tempo na telinha está se esgotando e que, daqui 10 minutos, vão encerrar o eletrônico para fazer outra coisa. Dê tempo para a criança se desconectar do que está fazendo.

4. Interagir com quem não conhece

Uma tendência natural, mas também problemática, é considerarmos que nossos filhos estão sempre dispostos a fazer amizades, ainda mais quando se trata de um grupo com idade parecida. “O pai pode chegar numa pracinha com outras crianças e orientar: ‘vá brincar com seus amiguinhos’. Sim, são crianças, mas não necessariamente amigas”, explica o psicanalista e consultor do Laboratório Inteligência de Vida, Raul Spitz.

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Desta forma, o adulto acaba prejudicando uma possibilidade de vínculo do pequeno em relação ao que ele está experimentando no momento. “Vamos tentando moldar as relações baseados no que entendemos como educação, simpatia e tudo mais que abastece a gente, sem pensar que se trata de um sujeito diferente de nós”, afirma o psicanalista.

5. Ser abraçado ou tocado pelos outros

Pior ainda é quando essa relação forçada envolve o contato físico, por meio de abraços, beijos e até mesmo apertões na bochecha. “Ensinamos para a criança que não converse com estranhos, mas nem sempre respeitamos quando ela se sente incomodada com alguma interação. Ela precisa ser educada, mas não necessariamente precisa ficar abraçando e beijando todo mundo, principalmente quem ela não conhece”, comenta Bárbara.

6. Não sentir medo ou frustração

Além dos exemplos mais rotineiros, não podemos deixar de lembrar as situações mais sensíveis, como quando deslegitimamos os temores ou frustrações das crianças, dizendo “não foi nada” ou “não tenha medo!”. “Não falamos isso quando é um adulto que está chorando ou em pânico”, compara Raul.

O mesmo vale quando tentamos mascarar algum tipo de acontecimento doloroso, para evitar que o pequeno vivencie o sentimento. “Se alguém da família morre, por exemplo, é natural tentarmos preservar o filho. Mas fazendo isso, estamos dispensando ele de um processo de elaboração de luto importantíssimo, que passamos desde os primeiros anos de vida”, diz o psicanalista.“É importante falarmos sobre o tema, desde que seja uma forma compreensível para ela”, acrescenta. 

Os efeitos dessa cobrança desproporcional…

Birra ou chateação são só algumas das reações possíveis para quando a criança percebe que está sendo cobrada de algo que seus pais não reproduzem. “Ela pode ainda desenvolver comportamentos agressivos diante da repressão, e se tornar uma pessoa insegura por não saber exatamente como se posicionar, além de se sentir desrespeitada”, lista.

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Além disso, situações como mandar que a criança pare de usar o tablet enquanto você não sai do celular, são capazes de criar enigmas de difícil compreensão para os pequenos, como indica Raul. “Ela observa a desigualdade e isso pode ser prejudicial às relações futuras e à sua construção de sujeito”, completa.

Isso não quer dizer que tudo que adulto pode, criança também pode!

Depois dessa lista de exemplos, você pode estar se perguntando: “então devo autorizar o meu filho a fazer tudo o que faço? Como vou educá-lo sem cobrar certos comportamentos?”. Ambos os profissionais respondem que não é bem assim – e um exemplo bem didático é o da hora de dormir.

“A questão do sono é uma que faz diferença a cobrança. Porque a criança precisa de um tempo de sono diferente do adulto, tanto para a saúde física quanto mental. Uma criança que dorme pouco pode ir acumulando prejuízos – fica mais irritada, come pouco, rende menos na escola… É importante ter uma rotina de horário e de preparação para esse sono”, recomenda a psicóloga.

Para esse tipo de situação, em que não é possível comparar a demanda dos mais velhos com a da criança – a palavra-chave é diálogo. “Se seu filho questionar, diga que os adultos não precisam de tanto tempo de sono assim. ‘Você é criança, está na fase de desenvolvimento e precisa de mais’. Algumas crianças vão entender esse discurso e outras não, mas independente disso, é importante explicar, porque assim aos pouco vai absorvendo a rotina da casa”, enfatiza Bárbara.

Isso sem falar que, para além das diferentes necessidades fisiológicas, os adultos têm bagagens, níveis de desenvolvimento e experiências de vida que a criança ainda não possui, o que implica em maior discernimento e liberdade para eleger desde decisões básicas da rotina – como o horário de dormir – até escolhas mais complexas.

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Como saber dosar, então?

Cada família tem a sua própria dinâmica e claro que não existe um manual de instruções para o que é aceitável ou não na hora de criar o pequeno, mas a dica preciosíssima do psicanalista – e que demanda tempo e esforço para ser colocada em prática – é entender que o filho não é uma extensão do nosso corpo.

“Ele é dotado de necessidades, possibilidades e desejos diferentes dos nossos. Quando temos esse excesso de aconselhamento – mesmo que nas melhores das intenções – vale lembrar que existe um outro sujeito precisando ser respeitado em suas experiências”, diz Raul.

Assim, o esforço deve ser de entender se a atitude que você está cobrando da criança – mas que você em sua vida pessoal não faz o mesmo – possui fundamento e se é realmente necessária para o seu desenvolvimento. “No geral, aquilo que não envolve um risco ou ameaça para a integridade psicológica ou física da criança, precisamos viabilizar o entendimento por ela mesma –  e isso dá margem para que ela amplifique seus recursos”, aconselha o especialista.

E na hora de colocar em prática as regrinhas, vale o respeito pelo outro e o cuidado de comunicá-las de forma clara, mostrando o porquê de serem importantes. “Regras, quando bem dadas e bem executadas, são entendidas pelas crianças como proteção, como algo implicado no desenvolvimento”, pontua.

“Estar afinado com o dizemos, sentimos e demandamos dos nossos filhos cria uma simetria maior entre as partes e faz com que os vínculos fiquem ainda mais estreitos”, conclui ele.

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