Confessionário: “A maternidade é muito mais ampla do que exibir a barriga”

Após passar por nove gestações e cinco perdas gestacionais e neonatais, Gisele Becker hoje usa de sua história para ajudar outras mulheres.

Por Ketlyn Araujo
18 mar 2022, 16h04
Confessionário: Gisele Becker
 (Gisele Becker/Arquivo Pessoal)
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Quem hoje em dia vê a administradora Gisele Becker Dias Ramos da Costa usando seu Instagram (@_giselebecker) como plataforma para auxiliar outras mulheres que são ou desejam ser mães, não imagina que, de suas nove gestações até aqui, cinco delas resultaram em perdas gestacionais ou neonatais.

“Se falar de morte já é um assunto difícil, falar da morte em um momento que é de vida, no qual um novo ser deveria estar se desenvolvendo, é algo completamente paradoxal. A perda gestacional ou neonatal é um dos lutos mais complexos e menos validados, e só quem vive essa dor sabe o tamanho que ela tem”, reflete ela, ao dividir, com honestidade, um pouco de sua trajetória emocionante neste relato.

Na verdade, desde sua primeira gravidez até a mais recente, sentimentos como culpa, medo e, claro, a dor do luto recorrente estiveram presentes, até que ela decidiu ressignificar tudo o que havia vivenciado. “Não amar por medo de sentir novamente a dor é o mesmo que viver com medo porque um dia irá morrer, e com medo e sofrimento podemos estar nos fechando para grandes alegrias”, opina ela.

A seguir, Gisele, que se define como uma mulher movida por coragem, fé e esperança, fala sobre os aprendizados, as partes mais complexas e bonitas do ser mãe. “A maternidade é algo muito mais amplo do que exibir uma barriga, é cuidar e acolher cada pessoa que está precisando de ajuda e que passa pelo nosso caminho”, diz. 

Veja o relato completo:

“Não posso dizer que sempre tive o sonho de ser mãe, porque na minha adolescência cheguei a pensar, inclusive, em seguir vocação religiosa. Mas, com o passar dos anos, percebi que, na verdade, o que eu sentia era medo de não conseguir ser uma boa mãe.

Quando conheci meu esposo, mesmo na época do nosso namoro, já tínhamos o desejo de constituir uma grande família juntos. Meu marido, Bernardo, é carioca, eu sou gaúcha, e na época que nos casamos, em 2007, fomos morar em Santa Catarina, porque eu tinha passado em um concurso público. Com nove meses de casados, descobrimos que estávamos à espera do nosso primeiro filho, o Miguel. Morávamos em um estado sem nenhum parente por perto, o Bernardo estava estudando para concurso, e apenas a minha renda sustentava as contas da casa. Junto com a alegria de me descobrir mãe veio também, o medo por ter de dar conta daquela responsabilidade.

Mas tudo foi se ajeitando e, quando o Miguel chegou, meu marido já havia passado em dois concursos, e meus sogros haviam se mudado para nos ajudar com o bebê. Um ano depois, os pais do Bernardo precisaram voltar para a cidade deles, e nós seguimos o nosso caminho: ambos trabalhando, concluindo a faculdade e com um filho para amar e educar.

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Dois anos e meio se passaram, eu fui transferida para a sede da minha empresa e o Bernardo conseguiu uma nova proposta de trabalho – por conta disso, nos mudamos de estado. Em junho de 2013 nasceu a Helena, nossa primeira princesinha. Na época, eu desejava muito poder parar de trabalhar para me dedicar exclusivamente aos cuidados com os pequenos, mas, financeiramente, isso não era possível. Entendi que aquela era a minha realidade, e que eu precisava fazer o meu melhor onde estava – ao retornar ao trabalho, recebi a minha primeira função gerencial”.

Entre o medo e a culpa

“Em 2014, fui surpreendida com uma nova gestação. O meu medo, agora, era de não dar conta, de estar novamente sem nenhum apoio familiar, de ser destituída da função na empresa, de não ter dinheiro para sustentar três crianças, de estar com a Helena, de apenas um ano… só sentia medo no meu coração, chorava, não me achava preparada para uma nova gravidez.

À medida que foi avançando, as coisas foram se acalmando, e descobrimos que estávamos à espera de mais uma menina, a Clara. Em um ultrassom de rotina, com 20 semanas, descobrimos que o coração da pequena já não batia mais, ela tinha ido brilhar no céu. Nossa, como eu me culpei, como eu queria poder voltar no tempo e ter amado mais e melhor a minha filha.

Fizemos todos os exames possíveis – inclusive genéticos – nela, mas nada foi descoberto, não havia nenhuma causa médica para o falecimento. Foi preciso fazer a indução do parto, e apesar de toda a dor para trazer o corpinho da minha filha sem vida ao mundo, quis fazer isso para poder tê-la íntegra, e poder dar um sepultamento digno para nossa filha, nossa pequena Clarinha.

Com a crise do petróleo, em 2016, meu esposo foi desligado do emprego e, novamente, apenas a minha renda sustentava a casa, sem parentes para ajudar e com dois filhos pequenos para criar. Dessa vez, porém, eu já não tinha medo, não desejava mais ter desculpas para não nos abrirmos a mais uma vida, e concebemos a Teresa, com muito amor”.

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A dor de mais perdas

“Novamente, com 12 semanas de gestação, descobrimos, em um ultrassom de rotina, que o coraçãozinho da Teresa já não batia mais. Fiz a indução de parto de novo e, apesar da pouca idade gestacional, conseguimos o atestado de natimorto e realizamos o sepultamento dela junto da irmã. Uma fatalidade era compreensível, mas duas?

Investigamos muito e descobrimos a trombofilia, eu tenho três alterações genéticas que propiciam uma tendência à coagulação sanguínea, principalmente nas gestações. Como tivemos o Miguel e a Helena sem saber disso e sem nenhuma intercorrência, nenhum médico sabia, ao certo, explicar o que havia acontecido. Fato era que, agora, para manter as próximas gestações, eu precisaria fazer uso de uma medicação específica, além de anticoagulante oral, dieta rica em proteínas e atividades físicas regulares – assim, em 2017, concebemos o Vicente.

Estava com todo o aparato e uma médica especialista, entrei de licença-médica na empresa e descansava o tempo todo, afinal essa era uma gestação de alto risco, e tudo precisava estar sob controle. Mas, com 13 semanas, no ultrassom, percebemos que o coração do bebê estava muito acelerado – era Páscoa, e a médica pediu para repetir o exame depois do feriado.

Três dias depois, no exame, percebemos que o Vicente já tinha feito a sua Páscoa, sua passagem. Que dor! Estava tudo sob controle, o que eu tinha feito de errado agora?

Refizemos todos os exames, estava tudo normal, a não ser um deles. Eu havia testado positivo para o Zika vírus. Não tinha apresentado nenhum sintoma, não saía de casa, morávamos em um apartamento no 19° andar, não tinha mosquito! Caí em uma grande depressão”.

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Sobre ressignificar o luto

“Não que eu sentisse raiva, mas não conseguia entender. Tantas mulheres não queriam ter filhos, e nós queríamos, mas não o tínhamos mais. Nada, para mim, fazia sentido.

Muitas pessoas, julgo, com boa intenção, me falavam para parar de ‘tentar ter filhos’, mas o que elas não entendiam (e, confesso, eu também ainda estava me aprofundando nessa visão) é que nós não estávamos tentando. Nós tínhamos filhos, eles só não estavam mais aqui. A Clara, a Teresa e o Vicente saíram da inexistência para a existência, e mesmo que eles nunca tivessem estado nos meus braços de mãe, eles existiam. Isso mudava tudo.

Já com essa visão, em março de 2019, concebemos o João. Na verdade, não sabemos ao certo se o bebê era menino ou menina, porque na época estávamos viajando ao exterior e, quando eu descobri a gravidez, logo iniciei a medicação. Mas com 5 semanas tive meu primeiro aborto espontâneo, e sem entender uma palavra do que os médicos falavam naquele hospital.

Em maio do mesmo ano fomos presenteados com mais um filho, que apesar do tratamento parou de se desenvolver com cerca de 9 semanas. A este bebê demos o nome de Pedro, a pedido da nossa filha Helena.

Sem fazer nenhum procedimento de limpeza, já no mês seguinte a minha menstruação não veio, e descobrimos que mais uma vida pulsava em meu ventre. Essa gravidez, que teoricamente tinha tudo para não evoluir, foi seguindo com completa normalidade, e em fevereiro de 2020 recebi em meus braços, com muita gratidão e emoção, um menino lindo e bochechudo. Demos o nome de Theo, pois agradecíamos a Deus pela sua vinda para a nossa família.

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Confessionário: Gisele Becker

Quando Theo estava com 9 meses, novamente tivemos a graça de conceber mais uma vida, Isabela Maria estava a caminho. Ela nasceu de uma cesárea de emergência, após um prolapso do cordão, mas veio linda e cheia de saúde!”.

É preciso falar do luto

“Muitas pessoas preferem não tocar no assunto, ou acabam falando coisas que machucam ainda mais essa mãe que está enlutada. Diante da perda de um filho, quando o ciclo natural da vida acaba sendo rompido, a efemeridade acaba ficando escancarada, e com toda essa contradição de sentimentos (alegria na concepção, frustração pela perda, raiva, depressão, vergonha, medo, fuga…) percebemos inúmeras mães e famílias sendo negligenciadas em suas dores”.

“Se falar de morte já é um assunto difícil, falar da morte em um momento que é de vida, no qual um novo ser deveria estar se desenvolvendo, é algo completamente paradoxal. A perda gestacional ou neonatal é um dos lutos mais complexos e menos validados, e só quem vive essa dor sabe o tamanho que ela tem.

O meu marido foi o meu chão em cada uma das perdas. Longe de todos os familiares, foi a mão dele que eu segurei nos momentos em que perdemos cada um dos nossos filhos, e o apoio dele foi incondicional para que eu superasse a dor, para retomar a minha autoestima como mulher, para o amadurecimento e crescimento de toda a família.

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É por isso que muitas vezes esse luto é vivido no isolamento, podendo gerar impacto na autoestima, na vida conjugal e familiar e na saúde mental. É urgente falar sobre isso, abrir um espaço para o acolhimento dessas mães e para reflexão”.

Confessionário: Gisele Becker

O sentido da vida é deixar rastro

“A ideia de abrir o Instagram não foi minha, mas me pediram. Eu já ajudava muitas mulheres que chegavam até mim por indicação de amigos e conhecidos que estavam vivendo situações semelhantes, tanto sobre a perda de filhos quanto sobre o desafio de conciliar maternidade e trabalho. Sempre conversava com essas pessoas com muito carinho, acredito que o sentido da vida é fazer sentido para outras vidas, ser útil, deixar rastro.

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A melhor parte de se comunicar pela internet é poder alcançar pessoas em lugares distantes. Tenho seguidoras de diversas partes do país, da América Latina, até dos Estados Unidos. É fantástico poder ajudar essas mulheres a ressignificar a dor.

Para quem passa pelo mesmo que eu, diria, primeiro, que essa vida aqui é muito breve, portanto, nunca devemos ter medo de amar. Se eu e meu esposo tivéssemos decidido nos fecharmos após as cinco perdas, hoje não teríamos o Theo e a Isabela, não seríamos pais de nove filhos.

Não amar por medo de sentir novamente a dor é o mesmo que viver com medo porque um dia irá morrer, e com medo e sofrimento podemos estar nos fechando para grandes alegrias. A maternidade é algo muito mais amplo do que exibir uma barriga, é cuidar e acolher cada pessoa que está precisando de ajuda e que passa pelo nosso caminho – você pode tornar a sua vida profundamente fecunda, independentemente de quando os filhos virão”.

Em busca de equilíbrio

“Além das perdas dos nossos cinco filhos, uma preocupação muito grande para mim é de não perder o desenvolvimento dos meus filhos por causa da minha profissão. Hoje trabalho como gestora em uma grande empresa, com mais de 100 pessoas sob gestão, e é interessante que, a cada filho que nasceu, eu recebi uma nova proposta de crescimento profissional.

Posso garantir que o equilíbrio é possível, dá para ser uma mãe realmente presente – e falo isso com 4 filhos em idades completamente distintas – e uma dedicada e reconhecida profissional. Busco ser inteiramente presente onde estou naquele momento”.

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