Se formos calcular o número de horas que gastamos em cada tarefa dos pequenos, vamos perceber que uma das que mais demanda tempo é a alimentação. É mamada pra cá, mamadeira pra lá, introdução das comidinhas sólidas, preparação da lancheira e por aí vai.
Por serem atividades naturais na rotina, nem sempre pensamos no impacto que elas podem ter no desenvolvimento da criança. E nem estamos falando só do aspecto nutricional, viu? A forma com que os mais novos se relacionam com o alimento e o que sentem antes e durante as refeições podem ser indícios de que algo não vai bem e até mesmo sinalizar o começo de um transtorno alimentar.
Mas sem alarde, papais! A ideia aqui não é apavorar, mas listar alguns sinais do comportamento infantil que merecem atenção, para que (se necessário) a família pense em novas possibilidades para ajudar a desenvolver, desde cedo, uma relação saudável com a comida. Antes de tudo, vamos a alguns entendimentos:
Transtorno ou dificuldade alimentar?
A confusão é normal. Talvez por influência do que vemos na mídia, pensar em transtornos alimentares logo nos traz à mente quadros mais graves, como a anorexia, a bulimia nervosa e a compulsão alimentar.
“Mas na realidade, eles costumam ter início a partir da pré-adolescência, e a compulsão ainda mais tarde – apesar de hoje já percebermos crianças que começam a apresentar alguns sintomas”, explica Flávia Teixeira, psicóloga e especialista em Transtornos Alimentares pela USP.
O que mais se observa entre os pequenos são as chamadas alterações ou dificuldades alimentares. Elas trazem impactos negativos à vida daquela pessoa, mas não são consideradas como doenças pelas definições dos manuais psiquiátricos.
“Existem crianças que têm um nível intermediário, às vezes o início de um quadro. Por isso fazemos as intervenções cada vez mais cedo, buscando impedir que evolua para um transtorno“, pontua Mireille Almeida, psiquiatra do Núcleo de Atenção aos Transtornos Alimentares (PROATA), do Departamento de Psiquiatria da Escola Paulista de Medicina (UNIFESP).
No mesmo sentido, a psiquiatra da infância e adolescência que também atua na UNIFESP, Danielle Admoni, define o que são esses comportamentos prejudiciais. “A dificuldade alimentar na primeira infância é caracterizada por qualquer prejuízo na ingestão oral, que não é adequada para aquela idade, para aquela condição familiar ou social, e que interfere na habilidade de se alimentar, na esfera psicossocial ou nutricional”, conceitua.
Em outras palavras, tudo aquilo que foge do esperado para o desenvolvimento da criança, e que gera um estresse familiar, um incômodo social ou um prejuízo nutricional e emocional, pode ser considerado uma questão alimentar na infância.
Além disso, para que seja diagnosticado como um problema mais grave, ele deve durar pelo menos duas semanas e vir acompanhado de mudanças físicas, como a desnutrição, alteração pulmonar e cardiovascular ou dependência exclusiva de algum tipo de alimentação.
Transtorno Alimentar Restritivo Evitativo (TARE)
Sim, quase não usamos a palavrinha “transtorno” quando falamos da alimentação na infância – mas um caso específico foge à regra: o Transtorno Alimentar Restritivo Evitativo (ou TARE, como é mais conhecido). Esse sim é considerado uma doença pelos especialistas da área, principalmente pela dimensão de seu impacto na criança.
“O quadro é caracterizado por uma recusa alimentar, acompanhada de sinais de prejuízos na saúde, como uma perda de peso significativa, deficiência nutricional ou a percepção de que a curva de crescimento do filho não está como deveria”, esclarece a PhD em Nutrição e pesquisadora em neurociência do comportamento alimentar, Sophie Deram.
As crianças com TARE costumam demonstrar insatisfação e incômodo na hora da refeição ou até um pouco antes dela, como complementa Flávia. “O momento começa a ser muito difícil para ela e pode até influenciar no seu contato social – evitando as festinhas ou almoçar na casa de algum amiguinho, por exemplo”, diz.
A maior diferença da seletividade alimentar é o grau de aversão que o pequeno tem pelo alimento (seja por sua textura, gosto ou cheiro). Segundo a psicóloga, incluir determinada comida no cardápio se torna insuportável para a pessoa – que em casos mais graves pode até reagir com vômito – e dificilmente alguma estratégia dos pais se mostra efetiva.
Sinais para ficar atento
O TARE é um dos quadros mais preocupantes na infância, mas nem todos os comportamentos alimentares que estranhamos em nossos filhos indicam algo sério – e por vezes são apenas reflexo da fase de desenvolvimento do pequeno, como a diminuição de apetite que acontece a partir do primeiro ano de vida.
“Muitos pais assustam que, de repente, o filho está com menos fome. O mesmo vale para a idade dos dois anos, quando a criança está mais autônoma e pode entrar na chamada ‘neofobia’, em que percebe ter influência sobre seus pais e começa a recusar alguns alimentos”, lembra a nutricionista.
De todo o modo, vale prestar atenção em alguns sinais relacionados à alimentação da criança, para que não evoluam para uma dificuldade mais acentuada ou até um transtorno em outras fases da vida. Mireille lista alguns deles: “a própria seletividade e recusa de alguns alimentos; dificuldade em se alimentar com outras crianças ou com a família; apresentar muitos rituais na hora da alimentação e certa inflexibilidade na mudança deles”.
A forma com que o pequeno age diante da mesa também merece um olhar atento, como se come de maneira apressada; se leva à boca uma grande quantidade de comida de uma vez só ou se termina a refeição e já quer repeti-la, como se nunca estivesse satisfeito.
Ter o acompanhamento próximo de um pediatra e fazer exames com frequência é interessante nestes casos, para verificar se a criança não está tendo perda de peso ou se está ganhando conforme o esperado e se sua curva de crescimento está adequada para a idade.
A influência do comportamento alimentar dos pais
Não estamos de maneira alguma querendo dizer que se você fizer isto ou aquilo, seu filho terá algum problema mais para frente. Até porque, como explica Flávia, todo transtorno alimentar tem origem multifatorial. “Ele pode surgir a partir de questões sociais, psicológicas, familiares, fisiológicas… É um somatório de fatores que vai ser responsável por desencadear naquele indivíduo que tem a predisposição”, afirma.
No entanto, como os pais são os primeiros – e mais importantes – modelos neste começo de vida, é natural que a forma como agem influencie no pequeno e em como ele encara o alimento. “Pais, por exemplo, que tiveram alguma restrição alimentar ao longo da vida, podem insistir em um excesso de comida, mesmo se a criança já está satisfeita”, ilustra Danielle.
E o contrário também acontece, como pais com questões de peso que restringem a alimentação dos filhos ou que transmitem desde cedo um padrão de imagem corporal que deve ser seguido.
Chantagens, barganhas e pressão durante as refeições (como o clássico “limpe seu prato, se não…”) também podem afetar negativamente a relação da criança com o que come. Essas atitudes impositivas estão, inclusive, dentro das causas do aumento das taxas de obesidade infantil nos últimos anos.
Como proceder se notar algo de errado
O primeiro passo, de acordo com a psicóloga, é conversar com o médico pediatra para descartar outras possibilidades. “Crianças com autismo, por exemplo, podem ser mais seletivas com os alimentos. Às vezes, o comportamento alimentar pode estar associado a costumes familiares, culturais ou religiosos”, pontua.
Caso seja necessária a atuação de outros profissionais, o tratamento geralmente é feito com psicólogo, nutricionista e psiquiatra, mas em alguns casos pode envolver também especialidades como a do nutrólogo ou gastroenterologista.
Construa uma boa relação com a comida
Para começar já a mudança dentro de casa, vale a pena investir em ações simples, que vão ajudar a reverter alguma questão alimentar ou prevenir que ela apareça. “Antes de tudo, não brigar com a criança. A pressão pode deixá-la com certa dificuldade para comer, pois o momento da mesa fica um momento de tensão. Evitar ficar insistindo, brigando, fazer chantagem ou tentar enganar a criança“, recomenda Sophie.
Para ela, investir na conversa sincera e no acolhimento são estratégias bem melhores. Nisso, entra o comer juntos, para que as refeições se tornem períodos de partilha, estimular a criança a interagir com os alimentos e, dependendo da idade, chamá-la para ajudar na cozinha. Veja mais dicas para ampliar o paladar do seu filho e construir uma relação positiva com a comida.