Entre os princípios básicos da chamada parentalidade positiva, abordagem educacional baseada no respeito mútuo entre pais e filhos, está a possibilidade de permitir que crianças tenham um pouco mais de autonomia dentro de casa, participando, inclusive, da tomada de algumas decisões. Para quem não está familiarizado com esta forma de educar, uma dúvida costuma rondar: será que, com tanta abertura, a criança não se torna mais mimada?
Muitos pais e responsáveis podem mesmo apresentar dificuldades em saber diferenciar o que seria um comportamento infantil natural e esperado, daquele que pode ser considerado um problema, seja a curto ou longo prazo. A linha que difere uma criança mimada daquela que é apenas bem cuidada pelos pais é tênue e discutível, mas especialistas na área podem auxiliar na hora de identificar alguns sinais de atenção.
“A criança, principalmente nos primeiros anos de vida, ainda está aprendendo a lidar com o tempo. Muitas vezes ela vai pedir algo e o pedido não poderá ser satisfeito naquela hora: aí vem a ‘birra’, que vai deixá-la um pouco triste e desgostosa, mas neste momento é tudo muito normal”, explica Guilherme Nogueira, psicólogo, psicoterapeuta infantil e professor de Psicologia da UNIALFA.
O importante, corrobora o especialista, é perceber o quanto esse dissabor vai durar e como a criança vai se manifestar diante deste ‘não’. Ficar triste quando não se consegue algo é esperado, o problema é o excesso de persistência, que pode ser um comportamento prejudicial.
Birra, intolerância, manipulação: de olhos nos sinais de alerta!
Maura Barcelos, neuropsicopedagoga e pós-graduada em psicomotricidade, ressalta que, apesar de existirem diferentes métodos para educar crianças, nenhum deles configura uma forma 100% eficaz de fazê-lo: afinal, crianças são complexas e possuem suas particularidades tanto quanto os adultos.
Não se deve confundir, porém, o educar crianças com mais liberdade com mimá-las – no segundo caso, os pequenos acabam perdendo a capacidade de lidar com as próprias frustrações quando as coisas não ocorrem da forma que pensavam.
Crianças que apresentam comportamento permanente de birra, são intolerantes de maneira excessiva, possuem dificuldades de interação e comunicação com outras, para a profissional, se enquadram ao que costumamos chamar de crianças mimadas.
Os pais devem se atentar a alguns sinais, que geralmente se apresentam de forma gradual (e não brusca): resistência em seguir regras, manipulação, dificuldade e sofrimento ao precisar dividir (sejam alimentos, sejam brinquedos) são indícios de que a criança possivelmente precisa de ajuda – em alguns casos, profissional.
“Quando a criança demonstra de forma muito enfática a insatisfação com a realização de seus desejos, temos que prestar atenção. Se ela está muito explosiva, se prioriza suas vontades acima de tudo, se chora e grita por períodos muito longos, temos de ficar de olho”, fala Guilherme.
Christiane Valle, psicóloga membro da rede de atendimento psicológico Zero Barreiras, fala, ainda, que a diferença entre uma criança bem cuidada e uma mimada é que a primeira sabe, mesmo que mediante questionamentos, que existem alguns limites que não podem ser ultrapassados dentro e fora de casa. “A criança bem cuidada entende que ‘não é não’, mesmo que ela questione isso. Ela compreende a razão da negativa, já que o motivo é apresentado, e enxerga o embate como parte do processo de crescimento”, exemplifica.
Crianças mimadas, adultos frustrados
Caso pais e responsáveis não se atentem ou não procurem por ajuda, quando necessária, para lidar com o comportamento da criança mimada, maiores são as chances de que ela cresça como um adolescente e até adulto com dificuldades de relacionamento e incapaz de lidar com as próprias frustrações.
“Quando acontece algo que foge do esperado, em vez de lidar com tranquilidade, a criança fica impaciente, apresentando pequenas crises explosivas. Dessa forma, uma criança mimada pode se tornar um adulto arrogante, egoísta e que quer tudo do jeito dele, o que influencia completamente suas relações sociais e afetivas”, reforça Guilherme.
A consistência do discurso e dos combinados é fundamental!
Mirar em uma educação mais positiva, porém realista e pensada de acordo com o contexto na qual a criança está inserida, evita que ela se torne mimada. Para Guilherme, é preciso sempre encontrar o equilíbrio ao lidar com as ações dos pequenos, mostrando o lado bom daquilo que a criança faz quando é cabível, mas sem deixar de pontuar, também, se existe algo de errado.
“Um fator que pode fazer com que a criança fique mimada é a falta de padronização dos discursos dos pais. Por exemplo, quando o pai fala uma coisa e a mãe diz outra, a criança fica sem saber organizar as ideias”, pontua ele.
É preciso, ainda, que pais e responsáveis estejam completamente confortáveis sobre o que podem ou não oferecer para os pequenos: às vezes adultos acham que podem recompensar as crianças por trabalharem demais, por exemplo, mas há dias em que essas recompensas não poderão ser oferecidas, pelos mais diferentes motivos. O problema decorrente disso é que, geralmente, crianças não possuem nem maturidade, nem discernimento suficientes para compreender esses limites e diferenças.
Na prática, sugere Maura, é importante não ceder às chantagens vez ou outras apresentadas pelos pequenos, e evitar castigar, punir ou gritar com os filhos. Isso, no entanto, não quer dizer deixá-los fazer o que bem entenderem. A chave é a consistência: criar uma rotina, estabelecer limites e regras claras, assim como respeitar os sentimentos deles e incentivá-los a conhecerem suas emoções – inclusive, as negativas-, aprendendo a lidar com elas. Isso, como muitos julgam, não é excesso de zelo, mas atenção ao indivíduo que é seu filho.
“Dessa forma contribui-se para que haja independência e autonomia, mas deve-se dar o exemplo de que a conversa é sempre a melhor saída: ao explicar sempre que possível o motivo do ‘não’, bem como estabelecer regras sólidas e firmes, e não ser vulnerável ao choro e às birras”, diz ela.
Percebi que meu filho é mimado: e agora?
Segundo os profissionais, ao perceber os sinais de que a criança está sendo mimada e vem apresentando esse comportamento de maneira mais permanente, além de procuraram por ajuda especializada (quando acharem necessário), pais e responsáveis devem conversar entre si para buscar uma padronização na educação.
Diálogo e comunicação devem ser uma constante dentro do ambiente familiar tanto entre os responsáveis, quanto com as crianças. Assim, é possível criar uma nova abordagem educativa mais assertiva, baseada no respeito e, principalmente, com limites mais claros, que não sejam apenas impositivos, mas que a criança compreenda o porquê. De maneira simplificada, aprender a hora de dizer “não” e manter a palavra.
“Limite é o maior ato de carinho que um pai ou uma mãe pode oferecer ao seu filho, e aqueles que são privados dessa experiência durante a infância terão que aprender da maneira mais difícil: que é ao longo da vida e, muitas vezes, sem ter por perto o amparo dos pais”, diz Christiane, que finaliza: “Não tenha medo de dizer ‘não’ para o seu filho. Por mais difícil que pareça, esse é o primeiro passo para auxiliá-lo a ter uma educação de qualidade”.