Que ano foi esse? Os memes mostrando pessoas tropeçando pelo caminho de março a dezembro tomaram conta das redes sociais e a verdade é que todo mundo ri deles, porque se reconhece. Sou capaz de apostar que nenhuma mãe no Brasil todinho vai conseguir dizer que não teve a sensação que esse ano durou bem mais do que os tradicionais 12 meses.
Eu entrei em 2020 com muito otimismo, uma característica forte da minha personalidade e que muitos amigos amam e outros consideram um absoluto delírio. Sempre amei espalhar otimismo pelo mundo, mas esse ano até eu me irritei com ele. Chegou uma hora que tive que desenterrar de dentro de mim um lado desconhecido: o de encarar a realidade. E vamos combinar que a realidade é uma coisa chata para caramba, ainda mais se você é uma pisciana com ascendente em câncer!
Agora veja bem, manter o otimismo inabalado em 2020 foi uma missão impossível. Passei a maior parte do ano trancada no meu apartamento de 52m² no centro da Lapa (em São Paulo), ao lado de dois filhos de 9 e 5 anos e do meu companheiro. Todos existindo no mesmo espaço 24h por dia.
Eu confesso que, em muitos momentos, o otimismo pulou da janela do 16º andar e caiu duro em frente a loja da esquina, onde desde a reabertura do comércio, um homem com um microfone na mão anuncia ofertas a cada 5 minutos, plugado em um amplificador e termina todas as frases dizendo: “Aqui seu real vale mais!”.
Quem não deu pelo menos uma surtadinha esse ano pode se considerar a fada sensata da década e investir em montar um programa de atenção plena que será campeão de vendas e irá ajudar milhares ao redor de todo o mundo.
Com o Natal batendo na porta eu só consigo pensar que esse ano não veio para nos ajudar a conquistar as metas que planejamos no final de 2019, mas para nos fazer olhar para tudo que temos e agradecer.
E, mesmo assim uma parte de mim pensa que 2020 foi um ano de luto, denso, louco, intenso, cruel, um ano de muita luta, onde não tive praticamente nenhum controle nas mãos e só me restou viver um dia de cada vez.
Não tenho controle, mas tenho fé… E coragem!
Quando eu estava grávida do meu segundo filho, Heitor, eu decidi por um parto domiciliar e 2 semanas antes do seu nascimento, eu tive um dos sonhos mais reveladores da minha vida.
Sonhei que andava grávida por uma estrada de pista simples com mata dos dois lados. Caminhava no acostamento em um dos lados da estrada, ora pisando na grama que iniciava a mata e ora pisando no asfalto. Um sonho escuro do começo ao fim. Tinha que apertar os olhos para ver com clareza. Olhava pra baixo e via minha barriga enorme e meus pés molhados. Chovia forte, mas ainda podia ver adiante com algum esforço. Eu não sabia para onde estava indo, mas sabia que deveria continuar caminhando naquela direção. E enquanto caminhava, limpava a água do meu rosto, acariciava minha barriga e olhava para os meus pés.
Então, a chuva começou a ficar mais e mais forte e eu não conseguia ver mais nada a frente. Sentia medo, mas algo me dizia que eu não podia parar e precisava seguir adiante. Do nada, vi na estrada um fusca que andava devagar acompanhando meus passos. Nesse momento, o motorista se esticava para abrir a janela do lado do passageiro e começava a gritar, mas a chuva era forte e tive que me aproximar para ver o rosto e escutar algumas coisas.
Era um homem idoso, de cabelos todos brancos e uma barba por fazer, com um olhar sério, mas confiável. Respirei fundo e entrei no carro. Toda molhada, me sentindo apertada no banco do passageiro, devido ao tamanho da barriga. Eu olhava para o motorista que dirigia devagar e tentava respirar e me acalmar. A chuva era tão forte e caia tão intensamente no para-brisas do carro que já não era possível enxergar nem a parte da frente do veículo.
O senhor reduziu a velocidade ainda mais, mas não parou. Respirei fundo e perguntei ao homem: “O que o senhor acha que está acontecendo? Que tipo de chuva é essa? Estou sentindo uma sensação horrível de não saber o que está na nossa frente, não saber o que vai acontecer. Isso está me deixando com medo”.
O homem então me olhou e respondeu: “É minha filha, a vida é misteriosa. Às vezes, precisamos cruzar caminhos que são inimagináveis e onde não temos controle de nada. Quando isso acontece, a nossa única opção é confiar, colocar o medo de lado, não nos deixar paralisar e usar nossa coragem. Nós podemos ainda, com muito esforço, tentar controlar aquilo que se passa dentro da gente, mas nada além disso”.
Não sei se o sonho parou por aí, mas é só até aí que me lembrei ao acordar. Foi um sonho tão forte que não pude parar de pensar nele por dias e lembro dele com detalhes até hoje.
Viver 2020 foi parecido com a sensação deste sonho: não conseguir ter controle de absolutamente nada e ainda assim, ser demandada por confiança e coragem.
O aumento do trabalho colocou em foco as tarefas de casa
A parada das escolas transferiu de uma hora para outra a responsabilidade do cuidado integral das crianças para as famílias, em especial para as mães. Não era um cuidado conhecido do dia a dia, mas que trouxe também o envolvimento direto dos pais com a educação formal que as crianças recebem na escola.
Provavelmente, nem mesmo a mãe mais dedicada em compreender o que os filhos aprendem de fato em sala de aula, tinha vivido antes tão de perto a rotina que o aprendizado diário exige. Além disso, não foi uma rotina normal como aquela que as crianças vivem na escola, mas algo novo, com a necessidade de interação e aprendizado acontecendo de maneira virtual.
Para as famílias com filhos em escolas particulares, a adaptação para o ensino remoto pareceu ser rápida demais e um grande desafio tanto para as crianças quanto para os adultos, muito pouco familiarizados tanto com a parte tecnológica, quanto com o conteúdo pedagógico.
Para a maioria esmagadora das famílias brasileiras que tem os filhos matriculados nas escolas públicas, essa adaptação para o online aconteceu de uma forma mais lenta, trazendo um desafio ainda maior, o de prover equipamentos e espaço para o estudo das crianças. A verdade é que muitas famílias não conseguiram ter condições financeiras para oferecer aos seus filhos um ambiente favorável para esta forma de aprendizado.
Tiveram ainda muitas famílias que sem acesso à internet, receberam kits das escolas com atividades para as crianças. E junto com estas lições, a responsabilidade de ensinar.
Passados mais de 200 dias sem aula, hoje temos a certeza de que um cansaço tomou conta de praticamente todas as mães no Brasil. Afinal somos as principais cuidadoras e responsáveis pelo trabalho doméstico, e esse ano também nos tornamos auxiliares das professoras.
Mais ainda, estamos lidando com o sentimento desolador de ver crianças sofrendo com a quebra da rotina, com a dificuldade de encontrar momentos de socialização com os amigos. Para as famílias em condição social desfavorecida outras preocupações como a alimentação de seus filhos pesaram e ainda estão pesando.
Quando a economia foi retomada, com a abertura dos estabelecimentos comerciais, esperava-se também uma abertura gradativa das escolas, o que não aconteceu, ficando evidente para todos o quanto a educação ainda não é uma prioridade no nosso país e como as crianças, pilares do futuro, são colocadas facilmente de lado pelo Estado. Educação no discurso é serviço essencial, mas na prática não foi isso que vivemos.
A sobrecarga de trabalho das mulheres mães foi sentida e conversada em todo tipo de meio virtual e rede social disponível. A pergunta “quem cuida de quem cuida? ” ganhou destaque e se tornou o foco de muitos estudos e trabalhos.
A força das mulheres salvou o mundo mais uma vez…Mas quando tudo acabar, quem vai cuidar das nossas feridas?
A realidade contraria o velho discurso de competitividade entre as mulheres. Se a pergunta “Quem cuida de quem cuida? ” ganhou destaque, a resposta também ganhou: Mulheres cuidam de mulheres.
Mesmo nesse ano incrivelmente difícil floresceram iniciativas e redes de apoio de mulheres como nunca visto antes. À frente dessas iniciativas estão, sem nenhuma surpresa, outras mulheres. Já é sabido que para mudar a disparidade de gênero só existe um caminho, o de colocar mais mulheres em posições de destaque. Mulheres líderes tendem a trazer mais mulheres para compartilhar conhecimento e liderança.
Esse ano, mais do que nunca a saúde esteve em foco e na linha de frente, em nível global, e no combate à Covid-19 estão as mulheres que representam cerca de 70% das equipes de saúde e serviço social, incluindo, além de médicas, enfermeiras, parteiras e trabalhadoras de saúde da comunidade.
Foi também nesse ano que a maior parte do peso dos trabalhos de cuidados não remunerados recaiu como nunca sobre as mulheres, em especial nas mães. A lista de atividades de cuidado e o tempo médio dedicado a elas aumentou muito.
Em pesquisas nas redes sociais da Maternativa, muitas mães afirmam que o trabalho mais do que dobrou. Cuidar dos filhos e da educação deles em tempo integral, cuidar da casa (com eles por lá!), preparar refeições, lavar, todas essas atividades tem uma conta cruel. Já falei sobre nesta outra coluna aqui!
Na Maternativa, empresa da qual sou sócia, cuidar de quem cuida foi a inspiração de todo tipo de ação que desenvolvemos ao longo de 2020. Foram “lives” com especialistas em trabalho remoto, organização da rotina, saúde mental, psicólogas, profissionais de recolocação e experts em parentalidade. Inúmeros atendimentos de apoio emocional para mulheres na comunidade e muito trabalho para divulgar os negócios de mães empreendedoras.
O portal Compre das Mães cadastrou gratuitamente mais de 1.000 mães empreendedoras de todo Brasil e tem hoje em sua vitrine mais de 3.500 opções de produtos e serviços oferecidos por elas.
Assim como a Maternativa, muitas outras iniciativas nasceram ou ampliaram sua atuação e foram através delas e no colo de outras mulheres que muitas de nós encontramos empatia e o apoio emocional necessário para continuar!
Pessoalmente, a realidade é que minhas horas de trabalho produtivo focado desapareceram. Com sorte, ao lado dos meus filhos, consegui trabalhar, no máximo, 4h por dia e mesmo assim com muitas interrupções.
As frases: “Mãe me ajuda aqui com uma coisa” ,“Mãe vem me limpar, terminei o cocô”, “Mãe, tô com fome”, “Mãe posso assistir um vídeo no Youtube” e “Mãe você está trabalhando? “ foram sem dúvida a playlist mais tocada na casa.
Enquanto trabalhei conduzindo workshops e webinars para inúmeras multinacionais que nos contrataram com o objetivo de ajudar seus colaboradores a terem ferramentas para lidar melhor com suas parentalidades, conciliando o trabalho de cuidado com seus empregos remunerados, eu enfrentei dentro da minha própria casa esses mesmos desafios.
Meus filhos tinham trocado de escola no início do ano. Na escola nova, as aulas tinham começado praticamente no final de fevereiro. Eles estavam se integrando aos professores e aos colegas quando a pandemia começou em março e tudo parou.
Com meu filho mais velho, de nove anos, tivemos que enfrentar o desafio de compreender todas as novas ferramentas tecnológicas que a escola oferecia para garantir a continuidade de sua educação. Ele se adaptou, mas mesmo assim, por dias e dias e até hoje, segue ansioso para retomar sua rotina de antes. Tem saudade dos amigos da escola antiga, tem saudade dos amigos virtuais que fez na escola nova.
Com o mais novo, de cinco anos, depois de tentarmos arduamente ajudá-lo a continuar com seus estudos de forma virtual, nós resolvemos desistir e interromper a participação dele nas aulas online no final de junho. Ele estava sofrendo, nós estávamos sofrendo e em um ano tão difícil, interromper uma parte do sofrimento, não nos pareceu uma decisão tão difícil.
Enquanto mãe, eu sei que a grande maioria compartilha desses sentimentos comigo. A gente tenta ser forte e conduzir as coisas da melhor maneira possível, mas às vezes, mesmo com todo esforço, podemos ver no olhar e no comportamento dos nossos filhos que eles estão sofrendo. O sentimento de ver a dor do filho que você não é capaz de ajudar a resolver ou interromper é devastador.
Aqui o que me restou foi abrir mão ainda mais do meu tempo para trabalhar na empresa e lógico que isso implicou em diminuição dos negócios gerados. Mas eu precisei estar mais perto, ser ainda mais carinhosa e presente para eles. Sinto uma grande dor ao pensar que na realidade social do Brasil poucas mães puderam fazer essa escolha.
Fim de ano e, ao lado de um cansaço imenso, eu me permito ter esperança
Eu comecei esse texto falando sobre meu otimismo, característica forte da minha personalidade. Pode parecer loucura que depois de tudo o que aconteceu em 2020, eu ainda seja capaz de sentir pontadas de otimismo. Mas a verdade é que quando a gente trabalha ao lado de outras mulheres, que mesmo extremamente cansadas, ainda são capazes de encontrar tempo para acolherem ainda mais a demanda de seus filhos, ainda mais a demanda de suas amigas – e até mesmo de desconhecidas-, a esperança ganha uma força gigantesca.
Ao perceber essa imensa força que brota de dentro das mulheres, o otimismo deixa de ser um devaneio e passa a estar conectado com a realidade dos fatos: As mulheres são uma obra-prima da natureza, a verdadeira face da bondade na humanidade. É na fonte dessa força tão espetacular que recarrego minhas baterias.
Faço isso olhando para minha mãe, para minhas amigas, me conectando com as histórias de mulheres desconhecidas e conhecidas, me lembro das minhas avós e de suas histórias. E aí olho diariamente para a frase da Maternativa: “As mães movem o mundo e nós acreditamos nessa força!“. E eu acredito, eu sei!
Tenho certeza que quando você parar para pensar na sua retrospectiva de 2020, nessa história vai aparecer em algum momento o apoio que você recebeu de uma outra mulher! Então coloque nas suas metas de 2021 e em todas as suas futuras metas se conectar com o maior número possível de mulheres e isso vai fazer brotar mais esperança e otimismo dentro de você.
Empatia, acolhimento, solidariedade e cuidado são todos valores femininos apontados como o principal rumo que guiará à sociedade rumo ao bem-estar.