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Cercada de estigmas, mãe que fica em casa sofre sozinha e pode até adoecer

Mesmo que por opção, a mulher que se ocupa exclusivamente dos cuidados com a casa e os filhos enfrenta desafios e preconceitos. Veja como lidar com isso.

Por Chloé Pinheiro
4 set 2020, 18h09

Apesar de exigir mais do que um emprego remunerado, só que de graça, a escolha por ficar em casa cuidando dos filhos ainda é alvo de muitos preconceitos e clichês, que podem impactar negativamente a saúde mental da mãe. 

“É comum que ela diga até com certo constrangimento que não trabalha, mas na verdade trabalha e muito, numa profissão historicamente invisível, onde até ela própria tem dificuldade de reconhecer que está 24 horas por dia ocupada”, aponta Sandra Hott, psicóloga, mestre em psicologia pela Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ).  

Fora a questão do trabalho não remunerado, há ainda a romantização da maternidade. “Se acredita que a mulher que toma essa decisão está apenas seguindo uma vocação natural, o que é muito ruim porque impede que ela esboce qualquer tipo de insatisfação”, continua Sandra.  

Tanta expectativa da própria mulher, da família e da sociedade levam a um sofrimento secreto, que pode se acumular até que surja algum problema mais sério, como ansiedade e depressão. Mais do que pouco falados, a tristeza e o sentimento de sobrecarga tendem a ser solitários. 

“Muitas vezes essas mulheres não contam com rede de apoio. Ou seja, já que estão em casa, devem dar conta de tudo”, comenta Lia Abbud, colunista do Bebê.com.br e uma das idealizadoras do Fatigatis, projeto que chama a atenção para a sobrecarga materna

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A “dona de casa” não é responsável por tudo 

O principal mito a ser desconstruído em nome da saúde mental aqui é justamente ideia de que a mulher não precisa de ajuda por estar em casa. “Nosso papel na sociedade foi atualizado,  mas em casa ainda sofremos com um modelo retrógrado, que relega ao sexo feminino todo o trabalho doméstico”, explica a psicóloga clínica Raquel Jandozza, de São Paulo (SP).  

“A mulher pode até abraçar esse discurso, deixando de confiar em outras pessoas para os cuidados com os filhos ou a casa”, destaca Raquel. O resultado disso é uma agenda lotada, que não deixa muito espaço para o autocuidado, algo fundamental para manter a saúde mental em dia. “Algumas mulheres só tem esse tempo para si na hora de dormir”, continua. 

Falta tempo não só para ter um hobby ou descansar de verdade, mas também para vivenciar outros papeis: estudante, atleta, irmã, amiga, voluntária, filha e até companheira amorosa. Claro que o adulto que fica em casa pode assumir mais responsabilidades domésticas, mas mesmo o “período integral” não é o suficiente para dar conta de tudo. 

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“A divisão de tarefas pode não ser exatamente igual nesse cenário, mas deve ser justa, e levar em conta as habilidades de cada um, lembrando que o tempo da mulher é finito”, comenta Juliana Mariz, fundadora do coletivo Co.Madre e também colunista do nosso site.

Quando o parceiro não valoriza o trabalho…

Não é raro que, ao falar sobre cansaço ou ressentimento, a mulher seja tida como reclamona, inclusive pelo próprio parceiro que trabalha fora. A questão financeira costuma ser o cerne das discussões conjugais, e acaba sendo mais um fator de sofrimento para a mãe. 

São dois cenários distintos aqui. “Quando ela fica em casa porque não há dinheiro para pagar a escolinha ou porque precisa assumir cuidados com outros familiares, o parceiro pode não reconhece o “serviço” prestado gratuitamente”, aponta Raquel. 

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O outro caso é o da família que tem recursos, mas onde a decisão da mulher não é totalmente acolhida ou compreendida. “Aí o homem passa a mostrar uma faceta desconhecida, onde a parceira tem que pedir autorização para usar o dinheiro, e não pode falar nada porque ‘não está trazendo dinheiro para casa”, continua Raquel. 

Em ambas, a autoestima degringola, e a mulher pode passar a acreditar que é tudo aquilo que é dito a ela, sem enxergar seu valor e como reagir às acusações.  

Sobrecarga na pandemia 

É nítido que elas estão mais sobrecarregadas do que os homens na pandemia, e isso se reflete nos consultórios de psiquiatras e psicólogos. “Nossas consultas aumentaram muito, e a maior procura é justamente no público feminino”, destaca Milene Rosenthal, psicóloga e fundadora da Telavita, que oferece suporte psicológico à distância. 

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Para a mãe que já dedicava à família integralmente, novos desafios, pois os filhos, que já são “trabalho dela”, agora estão em casa o dia todo, e ainda precisam fazer atividades escolares. “Isso está adicionando muito estresse à vida delas”, diz Milene. 

Além disso, as válvulas de escape sumiram. “A vida social nesse contexto geralmente acontece nas trocas sociais e afetivas com familiares, amigos e outras mulheres, uma coisa mais comunitária, que está complicada agora”, aponta Sandra. “São cinco meses de trabalho nessa ordem sem um momento de trégua, um café com as amigas, uma atividade fora desse núcleo…”

Como equilibrar as coisas 

O primeiro passo é olhar para dentro. “Se dedicar 100% à casa ou aos filhos não dá certo. É preciso manter a própria identidade, que comporta tanto a escolha por cuidar deles quanto o cuidado consigo mesma”, orienta Raquel. O cultivo da individualidade é fundamental até mesmo para o desenvolvimento emocional dos filhos – mães saudáveis, filhos saudáveis. 

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Esse processo passa necessariamente por cavar tempo para redescobrir as atividades que gostava, fazer uma atividade divertida ou apenas ficar um pouco sozinha. A própria saúde mental deve estar na lista de prioridades assim como a manutenção do lar. Só que fica muito difícil abraçar esse conceito sem uma rede de apoio, que forneça esse espaço. 

No fim das contas, o ponto é não sofrer sozinha e respeitar os próprios sentimentos negativos em relação ao assunto. “Vemos que mesmo a mulher que optou conscientemente por ficar em casa pode entrar numa espécie de penitência, de que não tem direito de sofrer por isso pois escolheu, não pode se arrepender nem voltar atrás”, diz Raquel. 

A boa notícia é que sim, ela pode, e não será menos mãe ou gostará menos do filho por isso. Se não for bem trabalhada, essa frustração e o conflito de sentimentos podem levar ao sofrimento intenso, à angústia que preenche os dias, perda de interesse por tudo, irritabilidade excessiva, alterações de sono, apetite… 

Esses são os sinais de que é hora de procurar ajuda psicológica, pois estamos falando de sintomas de que um quadro mais grave pode ter se instalado. “E há até mesmo o risco de suicídio, que não pode deixar de ser falado, já que estamos em pleno setembro amarelo, e esse tipo de pensamento pode acontecer com as mães também”, encerra Milene. 

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