Romantizar menos, acolher mais: tudo bem se a amamentação não der certo
Quando a mulher não amamenta até os seis meses, seja pelo motivo que for, culpa, baixa autoestima e até depressão podem dar as caras
Agosto Dourado é tempo não apenas de reforçar a importância do aleitamento materno, mas também de lembrar que ele não depende só da mulher para acontecer. E, quando a amamentação não dá certo, é normal que a tristeza e a frustração apareçam e abalem a saúde mental da mãe.
Tanto que, quando procuramos mulheres para conversar sobre o sofrimento do desmame precoce, os relatos pipocaram, e contamos com a ajuda de quatro mães para falar sobre este tema tão dolorido, mas tão necessário. Todas pararam de dar o peito antes do que gostariam, e suas vivências tão diferentes transmitem o mesmo recado: quando o assunto é amamentação, precisamos romantizar menos e acolher mais.
Isso porque, na medida em que a importância da amamentação cresceu (o que é ótimo), a cobrança em cima da mãe também aumentou. “Poucas gerações atrás, a mulher dava o filho para uma ama de leite, ou oferecia leite em pó e pronto”, comenta Priscila Silva Cardoso, psicóloga e professora da Anhanguera em Joinville/SC.
“Agora, se a mulher decide não amamentar ou é impedida de fazer isso, o impacto é muito grande”, completa Priscila. As mulheres concordam. “Eu me sinto até hipócrita, porque como que uma pessoa que prega tanto amamentação não consegue amamentar? Me julgo uma péssima mãe”, relata a auxiliar de escritório Mariana Pinheiro, de Santos (SP).
Como ocorre em praticamente todos os aspectos da maternidade, há a ideia de que a mulher deve ser perfeita, dar conta de tudo, especialmente quando estamos falando do leite materno, que é o melhor alimento para o bebê. “E isso é verdade, mas a partir do momento em que a amamentação envolve sofrimento da mãe ou bebê, deixa de ser benéfica”, completa Priscila.
A saúde mental da mulher
O efeito dessa construção social é principalmente a culpa – aliás, como diz a máxima, esse sentimento praticamente nasce junto com o bebê. “A mulher pode se sentir muito julgada, cobrada e até insistir mais do que pode”, aponta Marcella Sandim, psicóloga carioca especialista em saúde materna.
“Quando ela se força física e emocionalmente, acaba adoecendo”, completa a psicóloga. Não é que a dificuldade no aleitamento causará sozinha um transtorno de ansiedade e depressão, mas o início das tentativas acontece justamente num dos momentos mais delicados da vida da mulher, o puerpério.
“Os hormônios estão a mil, você não dorme bem, a demanda emocional é muito grande”, descreve a jornalista Bárbara dos Anjos Lima, que vive em São Paulo, e tentou de tudo para amamentar a filha Beatriz – parou de vez quando ela tinha quatro meses.
Se mais de 70% das mulheres desenvolverá o passageiro baby blues, uma porcentagem menor, mas ainda considerável (alguns estudos falam em 15%), terá depressão pós-parto. E a amamentação frustrada pode ser mais um fator que alimenta o surgimento do transtorno, assim como ele por si só atrapalha o aleitamento.
É o caso de Andrea Sarti, coordenadora de comunicação, que viveu junto com o diagnóstico de depressão pós-parto um turbilhão de situações estressantes: filho recém-nascido na UTI, o fim de um casamento que há tempos não ia bem e, por fim, o desmame.
“A amamentação só tornou tudo ainda mais avassalador. Quando o Bernardo começou a rejeitar meu peito, era como se ele estivesse me rejeitando, eu fiquei muito mal e tentei impor isso para nós dois”, conta Andrea. “Especialmente para a mãe solo, o processo é muito doloroso, intenso e cansativo”, destaca Marcella.
Outro ponto é a impotência em relação ao próprio corpo. “A mulher crê que falhou em algo básico, mas amamentar não é nada básico ou instintivo, e sim um processo que depende de tempo e de informação adequada, além de uma rede de apoio que a sustente durante esse período de aprendizagem”, comenta Beatriz Kesselring, enfermeira e psicanalista, idealizadora do Núcleo Cuidar.
Amamentação não é só dar o peito
“Todo esse cenário e essa expectativas trazem para a mulher a impressão de que o vínculo só se dará pelo aleitamento, além de uma obrigatoriedade que a força a continuar mesmo que ela não tenha condições para isso”, destaca Marcella.
Só que amamentação não é só dar o peito, mas sim nutrir afetivamente a criança. “O importante é o maternar, cuidar, alimentar como for, estar próxima, dar carinho”, ensina Priscila. Ou seja, há mil outras formas de se conectar com o filho que não por meio do peito. Ele é importante, claro, mas não amamentar não é o fim do mundo.
Rotina exaustiva de tentativas
Para boa parte das mulheres, o desmame ocorre depois de um processo longo (e caro) de tentativas. “Eu ficava exausta, estava sempre no processo de extrair leite, ordenhar, esterilizar tudo, dormir pouco, sendo pressionada pela família e pela pediatra por conta do peso do bebê”, relembra Isabelle Simões de Campos, mãe de um bebê prematuro.
“Foi um alívio encerrar o processo, mas também estranho, como se eu tivesse sido violada, e não sabia como falar sobre isso”, completa a farmacêutica, que vive em São Paulo.
“Chamei doula, contratei consultora de amamentação, aluguei um equipamento que prometia extrair mais leite, ficava horas sentada para produzir 30 ml, tentei dar o leite no copinho de cachaça para não ter confusão de bico, tínhamos que trocar ela de roupa seis vezes por dia por conta da sujeira que fazia, enfim…”, conta Bárbara.
As tentativas são tão extremas que levam à machucados físicos. “Tive cinco mastites, quase perdi uma mama”, desabafa Andréa. “Não tinha dinheiro pra comprar uma bombinha boa, então a minha deixava o peito muito dolorido, era quase inviável, até que ela quebrou e tive que começar a dar o complemento na mamadeira”, diz Mariana.
Mariana conseguiu um emprego quando a filha tinha quatro meses. Desde que nasceu, sentia dificuldades na amamentação, com a pega incorreta e a pediatra dizendo que a menina não ganhava o peso esperado. Mesmo assim, insistia porque sabia dos benefícios do aleitamento e sempre quis amamentar.
Com a volta ao trabalho e quebra da bombinha, a rotina se tornou insustentável. Três meses depois, veio a pandemia e o “afastamento”- entre aspas, porque ela não recebia e não chegou a ser registrada. Mas a confusão de bicos já estava estabelecida. “É uma sensação de que vendi esse tempo tão importante, tão único, para sempre”, desabafa.
Mesmo se escolher não amamentar, tudo bem!
Diversos motivos podem levar uma mulher a sequer tentar amamentar. Seja qual for, ela não deve ser julgada por isso. “Nenhuma escolha é fácil, e, mesmo que a mulher não deseje amamentar, pode haver o sentimento de culpa porque sai do escopo do que se pressupõe que seja uma boa mãe”, comenta Priscila.
A decisão deve ser respeitada, mas é bom que ela seja tomada com consciência das consequências e motivos por trás da escolha. “É bom, para a própria saúde mental dela entender porque não existe o desejo de amamentar, pois isso pode estar ligado a questões interiores a serem resolvidas, como um trauma”, pondera Beatriz.
Até a própria pressão externa pode fazer a vontade minguar. “Infelizmente, a sociedade dita muitas regras, dizendo que ela tem que fazer livre demanda, ou tem que amamentar de X em X horas, mas ninguém olha para essa mulher em sua subjetividade”, continua Marcella.
O papel da rede de apoio
Se ela é fundamental para apoiar a mulher durante a amamentação, continua superimportante no desmame. O relato da Bárbara é a prova disso. Por conta de uma cirurgia de redução de seios feita 15 anos antes do nascimento de sua filha, Beatriz, ela acabou não conseguindo amamentar como sua mãe – que lhe deu de mamar até depois dos dois anos.
“Como tinha uma rede de apoio muito forte, fui escutada, ouvida, e isso foi muito bom para minha saúde mental, porque não senti culpa”, conta. Parceiro, parceira, amigos ou familiares da mulher podem lançar mão de diversas estratégias para oferecer apoio emocional.
“Primeiro, nunca dizer o que ela tem que fazer ou comparar com outras pessoas, mesmo que a pessoa tenha mais ‘experiência’ como mãe”, diz Marcella.
Depois, oferecer um ombro amigo, fazer companhia se ela não quiser falar e se atentar às necessidades físicas e emocionais da mulher durante as tentativas ajudam a preparar o terreno e transmitir segurança para ela continuar insistindo ou desistir, se assim quiser. “Temos que evoluir muito para dar esse conforto à mulher e tornar a amamentação mais prazerosa”, conclui Priscila.