Se você tem um filho pequeno, provavelmente ele já ficou resfriado ou gripado, com o nariz congestionado e escorrendo. Em pelo menos uma das vezes em que isso aconteceu, alguém deve ter dito que o culpado do quadro era o leite, sugerindo que você experimentasse tirá-lo da dieta do pequeno “para fazer um teste”. A verdade, no entanto, é que não existem evidências científicas fortes o suficiente para comprovar que o leite colabora para o aumento da produção de muco e para o agravamento de crises alérgicas respiratórias (exceto no restrito grupo de quem, de fato, tem algum tipo de alergia a esse alimento).
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“Na grande maioria das vezes, há uma confusão, porque a criança pequena pega vários vírus em sequência e esses vírus deixam a secreção acumulada. Então, sempre se busca um culpado e o leite aparentemente é o mais fácil de culpar”, aponta o pediatra Flavio Melo, de Bananeiras (PB), autor do perfil @flaviopediatra no Instagram. “O leite e o nascimento dos dentes são sempre os vilões, mas não é bem assim”, diz ele nas redes sociais.
O conceito, difundido com força nos últimos anos, de que o leite e os lácteos são alimentos inflamatórios não tem sustentação científica. Pelo menos no caso de crianças saudáveis, que não apresentam restrições, intolerâncias ou alergias específicas. “Não é por uma minoria de crianças que têm alergia alimentar – no caso, às proteínas do leite, que têm desencadeamento de sintomas em vias aéreas (o que é raro, até dentro da Alergia à Proteína do Leite de Vaca/APLV) – que se deve retirar esses alimentos da dieta indiscriminadamente”, explica o médico. Cortar um grupo inteiro de alimentos do cardápio sem orientação pode até trazer prejuízos.
O mito de que leite dá catarro
A ideia não é nova, mas, nos últimos anos, ganhou mais força e passou a ser compartilhada efusivamente com ajuda da internet. Além de a relação entre leite e formação de muco ser difundida pela Medicina Tradicional Chinesa, no século 12, o médico judeu Moses Maimonides também escreveu sobre como a asma poderia ser exacerbada pela ingestão de leite.
“Esse mito tem várias origens”, explica Flavio, em entrevista ao Bebê: “A primeira é de que o leite de vaca entrou como elemento na dieta humana a partir do momento em que o homem começou a viver em comunidade e a domesticar os animais”. Até então, diz ele, o corpo tinha enzimas programadas para fazer a digestão da lactose (açúcar predominante no leite) até cerca de 4 ou 5 anos de idade. “Depois, o ser humano não consumia mais leite, então, essa enzima parava de ser produzida e, naturalmente, a população desenvolvia uma intolerância à lactose, ou seja, se tivesse contato com leite, não ia conseguir digerir”, afirma.
Porém, quando o homem começou a domesticar os animais e a consumir não apenas o leite, como outros alimentos a partir da agricultura, ocorreu uma série de mudanças. “Houve uma adaptação genética e boa parte da população passou a tolerar o consumo da lactose, mesmo depois da faixa etária dos 4 ou 5 anos”, conta Flavio. “É uma demonização, baseada em estudos que não comprovam as alegações antigas, que diziam que o leite era inflamatório e que essa proteína era maléfica e causava problemas”, acrescenta.
Em uma revisão que analisou estudos desde 1948, cientistas liderados pelo médico Ian Balfour-Lynn, do Departamento de Pediatria do Hospital Royal Brompton, de Londres, na Inglaterra, concluíram que a associação é um mito, provavelmente iniciado no artigo de Maimonides. A noção teria ganhado força com um médico que ficou conhecido como o guru dos cuidados com a saúde na infância, Dr. Spock.
De acordo com a análise, publicada na revista científica Archives of Disease in Childhood, do British Medical Journal (BMJ), em 2018, “embora a textura do leite possa fazer com que algumas pessoas sintam o muco e a saliva mais espessa e difícil de engolir, não há evidências que indiquem que o alimento leve à secreção excessiva de muco”.
O papel do leite na dieta
Estamos falando de uma fonte nutricional relevante na infância. “A criança está em crescimento, em desenvolvimento, e é importante que ela consuma o leite e os derivados”, diz a nutricionista clínica e materno infantil Caroline dos Santos, da Clínica Neném da Nutri (SP). “É um alimento rico em proteína, gordura, vitamina A, vitamina D e, principalmente, cálcio – é no leite que ele está mais disponível. Por isso, tirar esse grupo alimentar sem necessidade pode causar uma deficiência desse mineral”, acrescenta.
O leite é recomendado como um componente importante em uma dieta saudável para crianças pelo Guia Alimentar para a População Brasileira, elaborado pelo Ministério da Saúde. Isso, vale lembrar, desde que elas não apresentem alergias ou restrições, que tenham mais de 1 ano de idade e que não sejam mais amamentadas com leite materno.
Se você desconfia que seu filho tem alguma reação alérgica ao alimento, é essencial buscar ajuda profissional para confirmar ou descartar o diagnóstico. “Caso a criança realmente precise cortar o consumo do leite, existem opções para suprir os nutrientes, mas é fundamental fazer as alterações com orientação do pediatra e do nutricionista, para não haver prejuízos”, reforça Caroline.
Recomendação diferente para bebês de até 1 ano
Embora o leite e outros produtos lácteos sejam fontes importantes de nutrientes para a população em geral, incluindo as crianças, a orientação é diferente quando se trata de bebês. Até pelo menos 1 ano de idade, eles não devem tomar leite integral.
“O consumo precoce do leite, em substituição ao leite materno, pode levar muitas crianças a terem quadros relacionados a alergias e à própria dificuldade de tolerá-lo, porque a proteína é muito diferente da proteína do leite materno para o sistema imunológico. É uma proteína que não é de fácil digestão para um bebê”, explica o pediatra. Na impossibilidade da amamentação, uma fórmula adequada será indicada, provendo os ingredientes necessários nessa fase da vida.
Para bebês diagnosticados com APLV, as fórmulas são extensamente hidrolisadas ou, em alguns casos, de aminoácidos. “É como se a proteína já fosse pré-digerida, de fácil digestão”, diz Flavio. Existem ainda as fórmulas à base de soja, que podem ser cogitadas a partir dos 6 meses. O pediatra lembra que o leite de cabra não é substituto para crianças que têm alergia ao leite.
“As fórmulas já são adicionadas de cálcio e vitamina D, mas, caso seja necessário, o médico que acompanha a criança pode prescrever uma suplementação específica”, ressalta o especialista. “Mas, reforço: isso não deve ser feito sem a orientação de um pediatra e de um nutricionista, em conjunto, para que não haja prejuízos na aquisição de elementos importantes, como o cálcio, que tem impacto na massa óssea e no crescimento, além de uma série de outras questões”, completa.