O tratamento da criança com HIV e o papel dos pais para o sucesso dele
Conversamos com um especialista e com a mãe de uma menina soropositiva para entender como é a vida dessas famílias e quais os cuidados fundamentais
Maria Eduarda* veio ao mundo de parto normal e foi amamentada pela mãe. Até aí, tudo parece perfeito. Afinal, é este o início de vida mais saudável possível para qualquer recém-nascido, exceto por um detalhe: a mãe dela tinha HIV. Assim como a quase totalidade das crianças contaminadas com o vírus no Brasil, Maria sofreu a transmissão vertical, ou seja, ele foi passado da mãe para o bebê durante a gestação, o parto ou a amamentação.
“Por isso, falar em taxa de infecção pelo HIV em crianças implica em conhecer a taxa de infecção na gestante”, afirma o infectologista pediatra Aroldo Prohmann de Carvalho, professor de Pediatria da Universidade Federal de Santa Catarina (UFSC) e membro do Consenso de AIDS Pediátrica do Ministério da Saúde.
“De 2000 até junho de 2021, foram notificados no país 141.025 casos de gestantes infectadas com HIV, dos quais 7.814 somente no ano de 2020, com uma taxa de detecção de 2,7 a cada mil nascidos vivos”, aponta o especialista. Entre os menores de 5 anos, o índice é de 1,2 a cada 100 mil habitantes, o que representa uma queda de quase 70% em comparação a 2010, quando havia 4 casos a cada 100 mil habitantes.
Transmissão vertical: é possível prevenir?
O diagnóstico e os cuidados específicos são capazes de diminuir – e muito – o número de crianças soropositivas. A mãe biológica de Maria Eduarda sabia que tinha o vírus, mas não seguiu o protocolo adequado, que consiste em repetir os testes de HIV pelo menos três vezes (uma por trimestre) e tomar os antirretrovirais à risca, conforme recomendação médica, para inibir a multiplicação do vírus no organismo e, assim, diminuir as chances de contaminação do bebê.
O exame do terceiro trimestre ajuda a determinar a via de parto. Se o nível do vírus estiver indetectável, é possível considerar que o bebê nasça por via vaginal. Caso contrário, o ideal é optar pela cesárea – aqui, o obstetra deve fazer uma incisão delicada e tentar retirar a criança empelicada, ou seja, sem que a bolsa estoure. Assim que o bebê nasce e nas primeiras semanas de vida, ele recebe ainda uma medicação antirretroviral, como medida de prevenção. Além disso, a mãe não deve amamentar, já que o HIV pode ser transmitido pelo leite materno.
Acesso ao tratamento é fundamental
Em agosto deste ano, a Organização das Nações Unidas (ONU) divulgou números alarmantes sobre o HIV na infância: no mundo todo, 52% das crianças soropositivas não recebem o tratamento adequado – ainda que ele exista. Para Carvalho, essa é a realidade sobretudo em países com dificuldades de acesso aos serviços de saúde, onde não há a disponibilização gratuita de todos os antirretrovirais recomendados. “Felizmente, o Brasil é exemplo para o mundo em atenção à saúde das pessoas que vivem com HIV, fornecendo testes diagnósticos, exames de avaliação do sistema imunológico, da resposta ao tratamento e medicamentos para prevenção e tratamento da infecção pelo vírus”, diz o médico.
Apesar disso, o país não conseguiu alcançar os índices recomendados pela Organização Mundial da Saúde (OMS), que são de 95% das pessoas infectadas em tratamento e 95% das pessoas tratadas com carga viral de HIV não detectada. “Ou seja, a meta seria ter uma resposta adequada ao tratamento, o que significaria uma adesão ideal aos medicamentos”, explica o especialista.
O papel da família da criança com HIV
Os pais biológicos de Maria perderam a guarda dela justamente por impedirem seu acesso ao tratamento correto, afirma Cecília*, prima da mãe biológica, que, hoje, é mãe da garota de verdade. “Eu era muito próxima da mãe dela na infância. Crescemos juntas e éramos grudadas. Com o passar do tempo, nos afastamos, ela se envolveu em um relacionamento abusivo”, lembra.
De 2017 para 2018, depois da festa de Ano Novo da família, a tia de Cecília contou para ela que Maria, então com 4 anos, ligou para o pai e avisou que a mãe “estava dormindo e tremendo”. Como sabia que a prima tinha HIV positivo e que escondia isso de todos, inclusive dos médicos, Cecília correu para o hospital. “Como técnica de enfermagem, eu precisava alertar a equipe, para evitar contaminação”, diz. E, assim, sem nem pensar muito, ela começou a se envolver cada vez mais na história.
A mãe de Maria foi piorando. Como não havia uma pessoa para cuidar da menina (o pai queria mandá-la para outra cidade, à casa de uma parente que ninguém conhecia), Cecília se prontificou a ficar com ela temporariamente. Em uma noite, Maria teve febre de mais de 40ºC. Foi levada a um hospital na Zona Norte de São Paulo e, lá, o caso se revelou mais complexo do que todos imaginavam.
“Fizeram um monte de exames e, quando puxaram a ficha dela, já nos seguraram ali. Explicaram que minha prima havia perdido a guarda da filha, porque o serviço de assistência social a procurava há dois anos e ela sempre fugia do hospital”, relata. Cecília ligou para o pai da menina, que ficou furioso por elas estarem no local, mesmo com a febre alta.
“A assistente social me contou tudo, disse que Maria não ia mais poder sair de lá, que ninguém poderia ficar com ela e me aconselhou a entrar com o pedido de guarda, porque ela seria enviada a um abrigo”, conta. Em 11 de janeiro, Cecília, que até aquele momento mal conhecia a criança, foi ao fórum solicitar a guarda dela. Uma semana depois, a mãe biológica de Maria faleceu. O pai não demonstrava mais nenhum interesse na garotinha. Quando, finalmente, entrou em contato, Cecília explicou o que estava acontecendo. Em 25 de maio, ganhou a guarda da pequena.
“Eu caí de paraquedas, mas, hoje, paro para pensar e, sabendo como sou, eu não teria mesmo como agir de outra forma. Não vou dizer que foi fácil. Teve uma época em que enfrentei até uma depressão, porque eu não tinha filho. Não tinha responsabilidade nenhuma e, do nada, assumir uma criança com tantas questões… É complicado, porém em nenhum momento passou pela minha cabeça não fazer”, reflete.
O infectologista Aroldo Prohmann de Carvalho explica que há uma vigilância séria no sistema de saúde brasileiro, que começa logo nos primeiros dias de vida do bebê. “A criança exposta ao vírus é encaminhada da maternidade para seguimento em um serviço de referência, onde será incluída em um protocolo de investigação diagnóstica e laboratorial, preconizado pelo Ministério da Saúde. Os pais têm a responsabilidade de comparecer com ela a todas as consultas agendadas e levá-la para a realização dos exames solicitados”, diz o médico.
O papel da família é fundamental para que a criança tenha acesso ao tratamento, para que o siga da maneira adequada e para que, consequentemente, tenha a carga viral diminuída, melhorando a qualidade de vida. Algo que, infelizmente, os pais de Maria não fizeram.
“O primeiro e principal sucesso do tratamento é a adesão”, afirma o especialista. “Sem uma adesão adequada, corre-se um grande risco de o vírus se tornar resistente. Uma vez confirmada a infecção, deve-se iniciar o esquema terapêutico com pelo menos três medicamentos. Isso deve ser feito de forma contínua”, explica.
É essencial que a família esteja por perto, para ajudar, estimular e facilitar a compreensão da criança
Aroldo Prohmann de Carvalho, infectologista pediatra
Muitos dos medicamentos têm um sabor ruim e as apresentações não são amigáveis. Eles entram na rotina diária várias vezes e em grandes quantidades. “Não é tarefa fácil fazer um lactente, pré-escolar, escolar ou adolescente aderir de maneira adequada a esquemas complexos de tratamento, sendo que cada faixa etária tem uma particularidade”, lembra o infectologista. Por isso, é essencial que a família esteja por perto, para ajudar, estimular e facilitar a compreensão da criança sobre a necessidade de seguir o esquema recomendado pelo profissional de saúde.
Se o tratamento não for feito com rigor, o vírus continua circulando, o que pode comprometer a imunidade do pequeno. Ele fica mais exposto, pois as defesas do organismo se tornam baixas. Maria Eduarda que o diga! “Ela tem muitas doenças oportunistas”, conta Cecília. “Acabamos de descobrir, por exemplo, que ela está com um problema pulmonar”, diz.
O dia a dia de uma criança com HIV
Além do HIV, Maria tem uma história que não é nada fácil para uma criança. “Ela é muito carente. Com pouco tempo, começou a me chamar de mãe. Essa parte não foi difícil”, explica Cecília. “Costumo dizer que, se ela fosse minha filha biológica, não seríamos tão parecidas. Até em questão de comportamento. Eu tive outra filha depois, que não é tão parecida comigo como ela é”, compara.
Apesar do problema nos pulmões e de outras questões de saúde eventuais, a mãe faz com que Maria siga o tratamento da maneira correta e, atualmente, a menina está bem clinicamente – sua carga viral já chegou a ficar indetectável. “No começo, era difícil fazê-la tomar o remédio, ela não queria, tinha que segurar. Maria toma muita medicação. Hoje, ela faz isso sozinha, com supervisão, lógico”, afirma.
Além dos remédios, a rotina envolve várias consultas e diversos exames. É uma maratona! “Sempre converso com minha chefe. Nunca peço folga para descansar, é sempre para cuidar delas. Mais da Maria do que da minha outra filha, que ainda é bebê”, conta a técnica de enfermagem.
“Quando chegou a fase em que ela perguntou por que tinha que tomar os remédios, expliquei de forma lúdica que um bichinho ficava andando pelo sangue dela e que era preciso tomar o remédio para ele morrer e ela não ficar doente. Às vezes, acontece alguma coisa no corpo e aparece um bichinho vivo. Mas ela ainda não sabe. Se eu contar, ela vai contar para todo mundo”, explica. Maria tem TDAH e, por conta da falta de convívio social quando ainda estava com os pais biológicos, tem uma cabeça mais infantil do que sua idade. Além disso, só passou a frequentar a escola depois que foi morar com Cecília.
“Um dos maiores desafios para as crianças é conviver com uma realidade diferente de seus irmãos, primos e amigos”, comenta o infectologista pediátrico. “Não é fácil entender por que ela tem que tomar todos esses remédios de sabor tão ruim, ir a consultas com tanta frequência, coletar exames dolorosos a cada três ou quatro meses. Quando chega a adolescência, os desafios são maiores ainda”, completa. Por isso, o suporte psicológico e emocional também é primordial.
Cecília não perde a esperança e, mesmo sendo pega no susto, garante que está e estará lá pela filha para o que der e vier. “Creio na tecnologia, acredito que um dia ela será curada. Vou lutar para que isso aconteça. Se não acontecer, vou me dedicar para que ela viva o melhor que tem para viver nesta vida”, finaliza.
* Os nomes foram trocados para preservar a identidade da entrevistada e da filha.