Confessionário: “Mostrar que a nossa família existe é dar esperança”
A história de Gustavo e Robert não é apenas um marco na legislação brasileira, mas também sinônimo de esperança para outros casais homoafetivos.
Em 23 de fevereiro deste ano, os nomes de Gustavo Catunda de Rezende e de Robert Rosselló Garcia invadiram o noticiário brasileiro. É que a data marcou o nascimento dos bebês Maya e Marc Rosselló Catunda, filhos do casal e primeiros gêmeos do Brasil gerados com a genética dos dois pais.
Cerca de dois meses depois, a história já foi contada também na televisão, e continua repercutindo, muito por conta do perfil ativo @2depais no Instagram. Na conta, Gustavo e Robert mostram o dia a dia como pais e inspiram outros casais LGBTQIAP+ que possuem o mesmo sonho realizado por eles.
“Nós sempre sentimos falta de referências de outros casais e de informações sobre o processo como um todo, e hoje buscamos ser isso, para que as pessoas que possuem esse mesmo sonho consigam realizá-lo. Infelizmente, vivemos em um mundo em que a comunidade LGBTQIAP+ ainda não sabe que pode ser feliz, e queremos mostrar que é isso possível: que se você quiser ter um filho, você pode, se quiser ter um casamento feliz, você pode, se quiser ter sucesso profissional, você pode”, falam os dois, ao compartilharem, nestas páginas, partes importantes do processo e desejo da paternidade.
Desejo este que não seria concretizado não fossem três outras personagens fundamentais na narrativa: Camila Catunda de Rezende, irmã de Gustavo e doadora dos óvulos para fertilização, Lorenna Resende, prima de Gustavo e barriga solidária do casal, e a justiça brasileira. É que, somente após a Resolução CFM 2.294/21 ser oficializada, foi permitido o uso de óvulos de parentes, de até quarto grau, para gerar bebês. Anteriormente, de acordo com a lei do país, a doação de material biológico só poderia ser feita de forma anônima.
“Antes disso, tentamos de outras formas conseguir essa autorização, mas recebemos muitos ‘nãos’. Foi aí que decidimos seguir para o caminho da compra dos óvulos de um banco. Porém, na véspera de assinarmos o contrato de compra, recebemos a notícia, através da nossa advogada de família, de que a resolução havia mudado no Brasil, permitindo a doação de material biológico de um parente de até quarto grau. Ou seja, minha irmã se encaixava perfeitamente como doadora do óvulo!”, relatam.
As próximas linhas, contadas por Gustavo e Robert, trazem mais sobre a bonita relação de cumplicidade entre eles, Camila e Lorenna, capaz de derrubar o modelo ‘tradicional’ de família e servir de referência para as próximas.
Leia o depoimento, na íntegra:
“Temos dez anos juntos. Nos conhecemos no curso de Engenharia Civil, e logo no primeiro dia de aula, rapidamente, nos tornamos amigos. Depois, viramos melhores amigos, éramos inseparáveis, mas parte de um contexto em que ainda vivíamos ‘dentro do armário’. Fomos, inclusive, a primeira experiência homossexual um do outro – antes a nossa vida era completamente heteronormativa.
Durante a amizade sempre falamos do desejo de sermos pais, só que imaginávamos que a única forma possível de realizar esse sonho seria em um cenário heterossexual. Quando começamos a namorar, a conversa sobre paternidade foi uma das primeiras que tivemos, mas até aquele momento isso ainda soava impossível.
Assim que começamos a imaginar as possibilidades que teríamos para realizar o sonho da paternidade, tivemos esse desejo de enxergar como seria uma mistura genética de nós dois. Foi aí que veio a ideia de usar o sêmen do Robert e a doação do óvulo da irmã do Gustavo, Camila, já que os dois são muito parecidos. Falamos com ela, que topou na hora”.
(Em um vídeo publicado no Instagram do casal, Camila diz que, em sua cabeça, a ideia de doar o óvulo ao irmão era muito tranquila, como se ela estivesse doando sangue para alguém. Em suas palavras, “era só uma doação, nunca olhei como se isso representasse a maternidade para mim, nunca foi uma questão. Para algumas pessoas, eu sou uma mãe que abandonou os filhos, mas não é assim”).
Da frustração à realização
“Porém, logo descobrimos que o procedimento era proibido no Brasil: a doação de material biológico poderia acontecer somente de forma anônima. Tentamos de muitas maneiras conseguir essa autorização, mas recebemos muitos ‘nãos’. Foi uma frustração, mas vida que segue – a gente sabia que não seria daquela forma, mas permanecemos com o nosso sonho.
Foi aí que decidimos seguir para o caminho da compra dos óvulos de um banco, mesmo com os custos altos. Mas na véspera de assinarmos o contrato de compra recebemos a notícia, através da nossa advogada de família, de que a Resolução havia mudado no Brasil, permitindo a doação de material biológico de um parente de até quarto grau. Ou seja, minha irmã se encaixava perfeitamente como doadora!
O momento em que tivemos a certeza de que poderíamos realizar o sonho da paternidade, sem dúvidas, foi quando a Lorenna [prima do Gustavo] aceitou ser nossa ‘barriga solidária’. Fiz a pergunta para ela através de uma mensagem no Instagram, e ela prontamente respondeu que ‘sim’. No dia seguinte mesmo, estávamos na minha casa conversando sobre essa possibilidade, sobre o papel que todos estavam desempenhando nesse processo – tudo aconteceu tão rápido que, após a Resolução, em 20 dias estávamos grávidos”.
(Em um outro vídeo, também no perfil @2depais, Lorenna afirma que, por já ser mãe e ter passado por uma outra gravidez, aceitou o pedido de Robert e Gustavo como um ato de amor. Vale dizer que, no Brasil, o processo de barriga solidária ou útero de substituição precisa ser voluntário, logo, não pode ter caráter comercial).
Laços de família
“Foi um processo muito leve e feliz para todos nós, a gente se divertiu muito, foi uma aventura e encaramos da forma mais feliz, tranquila e saudável possível: consultas, exames e qualquer outra necessidade da gestação eram administradas por todos nós, em conjunto. Entendíamos que a gravidez era nossa e estava acontecendo através do corpo da Lorenna, então não fazia sentido para nós que não estivéssemos presentes em cada momento. A melhor parte do processo da gravidez foi, sem dúvidas, a relação que construímos.
Já a parte mais complicada foi ter de lidar com o preconceito, com a reação inesperada de algumas pessoas quando contávamos sobre a gravidez. Percebemos, também, que nas clínicas e hospitais não havia preparo para lidar com o nosso formato de família, e muitas vezes tivemos que nos impor para que os dois pais estivessem presentes nos procedimentos”.
Inspirar e transformar
“Nós sempre sentimos falta de referências de outros casais e de informação sobre o processo como um todo, e hoje buscamos ser essa referência para que as pessoas que possuem esse mesmo sonho consigam realizá-lo. Infelizmente, vivemos em um mundo em que a comunidade LGBTQIAP+ ainda não sabe que pode ser feliz, e queremos mostrar que é isso possível: que se você quiser ter um filho, você pode, se quiser ter um casamento feliz, você pode, se quiser ter sucesso profissional, você pode.
É uma satisfação imensa saber que podemos ajudar outras pessoas com a nossa história, pois mostrar que a nossa família existe é dar esperança de que mais gente da nossa comunidade também possa realizar esse sonho.
Para quem está passando por uma situação semelhante, nosso conselho é que levem o processo com o máximo de leveza que puderem. Conversem muito com a barriga solidária sobre as expectativas de vocês e os desejos de todos (antes, durante e depois da gravidez). E, principalmente, busquem por profissionais que estejam preparados para trabalhar com o formato de família de vocês – isso vai evitar muito desgaste”.