Era uma tarde qualquer de 2006. Entre uma entrega e outra de trabalho, Marcos Luporini, produtor musical, estava de bobeira no estúdio e começou a rascunhar canções infantis. Com a ajuda de Vera Fuzaro, cantora que também estava por ali, eles montaram algumas músicas famosas do repertório infantil nacional. Quem diria que assim, despretensiosamente, nasceria um império.
“Nem lembro o que me deu na cabeça de fazer estas 13 músicas do primeiro DVD. Não tinha nada em mente de ser uma série ou uma obra completa, foi o acaso. E uma destas canções era justamente a Galinha Pintadinha, a única que, naquele momento, estava pronta em formato clipe”, conta Marcos, que decidiu tocar o projetinho com Juliano Prado, roteirista e produtor audiovisual, que viria a ser seu grande parceiro nesta empreitada – hoje, gigantesca.
O resto desta história já é quase uma lenda: os dois precisavam mostrar o projeto em uma reunião em que não estariam presentes e assim, num golpe de sorte, decidiram subir o vídeo da Galinha no Youtube. Lembre-se que, em 2006, a plataforma de vídeos não era esta potência que é hoje. E o timing não poderia ter sido melhor. Com a rede também ganhando novos seguidores a cada dia, logo o clipe simples da Galinha atingiu a marca dos 500.000 views – que se hoje já é bastante, na época era um absurdo!
E não é que eles não acreditassem no projeto, apenas não existia um plano tão delimitado de dominar o mercado brasileiro infantil. Difícil mesmo imaginar que os dois soubessem que, 15 anos depois do primeiro clipe, a marca fosse ser a oitava maior do Brasil na plataforma e contabilizar 27 milhões de inscritos em seu canal no Youtube, segundo dados do Social Blade.
“Às vezes me perguntam se houve muito planejamento, pesquisa e tal… E olha, saiu muito do jeito que a gente conseguia fazer na época, sabe? O Marcos tinha o estúdio dele de gravação, o software que tínhamos era de animação para internet, tinha a falta de dinheiro, a falta de equipe… Então era uma animação simples para sair mais barato mesmo. No fim, o engraçado é que foi uma mistura que deu certo!”, conta, com simplicidade, Juliano.
Os sinais de que seria algo bacana, no entanto, foram aparecendo aos poucos logo no começo. “Eu sempre fui muito otimista em relação a um DVD de músicas com desenho, sabe? Uma vez, eu estava chegado em casa e um vizinho estava tocando um disquinho infantil e eu lembro de ouvir e pensar: hum, é, dá pra competir com isso daí e…competiu. Deu certo, né?”, brinca Luporini, que recorda de outras situações em que teve um lampejo de que a Galinha e suas músicas iriam “pegar”. “Tive um primeiro sinal uma vez que fiz uma reuniãozinha em casa na época do mestrado na Unicamp e mostrei uma primeira versão do DVD para uns amigos. E foi incrível! Todo mundo engajou muito, ficou lembrando das músicas, cantando. Era um sinal”, crê.
O tempo foi passando, o projeto foi ganhando seguidores e os negócios se expandindo. Marcos lembra quando foi que sentiu um estalo de que tinha, de fato, uma “galinha dos ovos de ouro” nas mãos.”Fomos a uma reunião na Europa Filmes, que era uma distribuidora de DVD, com o (diretor geral) Wilson Feitosa, uma grande figura respeitada do cinema nacional. Lembro que ele entrou na sala e disse: ‘vamos fechar com vocês e vamos vender um milhão. Me recordo do momento exato de ter saído no estacionamento e ter comentado com o Juliano: ‘agora vai!'”, relembra. E, de fato, foi: 3,5 milhões de cópias de DVDs e dois discos de diamante duplo.
E assim nasce um hit!
Se você tem um filho, inevitavelmente você já deve ter visto um (ou uma dezena de clipes) da Galinha Pintadinha. Conhecida por ser o “primeiro personagem do bebê”, a marca mescla o visual simples das animações com as canções que pais conhecem e que escolinhas continuam ensinando. É o combo do sucesso.
E, apesar dos 33 bilhões de views (no canal brasileiro e nos internacionais) deixarem qualquer youtuber com inveja, você sabia que a produção de um clipe da Galinha é bem simples e continua sendo executada como no princípio?
Vamos a esta receitinha de hit: primeiro, a dupla de produtores escolhe a música. Desde que não seja polêmica ou problemática, o céu é o limite. “Já evitamos muitas canções. A gente se apega aos valores da música, mas procuramos trabalhar com a inocência infantil. Já adicionamos uns versos no fim de canções (como “Atirei o Pau no Gato”), mas sou reticente com isso de alterar a canção que passou de geração para geração. Claro que têm versos que não têm para deixar passar, mas aí não usamos a música”, diz Marcos. “A gente filtra bem. A ideia da Galinha é que sempre seja um conteúdo alegre, seguro e sem violência”, concorda Juliano.
Pronto, escolhida a canção, Marcos vai para o estúdio e grava com Vera, a amiga de longa data que está no projeto desde o início. E tudo isso sem pressa. “Normalmente vou fazendo a música aos poucos, já que não temos um ritmo de lançamento muito intenso como normalmente as pessoas fazem no Youtube. O importante é que a canção esteja bem resolvida para o clipe dar certo, já que no nosso caso, ele é uma representação visual da música”, aponta o produtor.
O próximo passo é sentar com Juliano em uma sessão de criação. Como fazem da mesma forma há anos, eles já possuem um esquema, onde fazem um rascunho ou “rabiscoboard”, como apelidaram. Trata-se de um storyboard (esboço sequencial quadro a quadro) rabiscado direto na tela, já no tempo da música. Os dois não são os ilustradores, mas já deixam o caminho andando para poder comunicar o que querem ao animador.
“Como o clipe é uma peça pequena, de 2 ou 3 minutos, geralmente só um animador dá conta. A produção é mais leve mesmo. A gente sempre trabalhou com a nossa empresa (a Bromélia Produções) bem enxuta, pouca gente e terceirizando algumas partes. Já tivemos clipe feito com apenas três pessoas”, revela Juliano.
A cada novo clipe lançado, é preciso revisitar a obra para que tudo esteja dentro do padrão e que consiga suprir as expectativas dos pequenos fãs. O resultado? Esta chuva de hits que já conhecemos há 15 anos. “Sempre nos questionamos sobre a estética, a técnica, sobre renovar, mas no fim, acabamos lançando do jeito que já fazemos e as pessoas respondem muito bem a isso!”, pontua o roteirista.
Vale dizer que, além das músicas do cancioneiro popular brasileiro que costumam ser de domínio público, ainda há espaço para composições próprias de Marcos. Uma delas, “Upa Cavalinho” (assista ali em cima!), é atualmente, a mais vista do canal com 32 milhões de visualizações. Outra saída encontrada é usar grandes sucessos de cantores famosos, como foi o caso da versão de “O Meu Sangue Ferve por Você”, de Sidney Magal, feita a pedido do Spotify para divulgar o plano Família.
Galinha dominando o mundo
E são justamente estas parcerias como a do Spotify que levam a marca a outros patamares. O sucesso no Youtube levou ao licenciamento de produtos – a marca hoje ocupa a 89º posição no faturamento de licenciados -, aos palcos do Brasil todo, eventos e presença na televisão na TV Cultura, SBT e no canal Nat Geo Kids, com episódios especiais da série “Galinha Pintadinha Mini”. Esta produção seriada é a mesma presente no catálogo da Netflix, atualmente com duas temporadas disponíveis.
Para ela, a produção tem mais volume e passou a ser bem mais rebuscada do que a dos clipes que contamos acima. A ideia também surgiu da necessidade de expandir a personagem, contar mais historinhas e desenvolver outros formatos de atividades. A entrada no streaming, claro, ajudou a consolidar ainda mais o sucesso, mas os criadores acreditam que uma plataforma ajuda a outra. Quem vem do Youtube também consome na Netflix e na TV e vice-versa.
“É uma mistura de telas e uma soma de forças, é difícil saber quem ajuda quem. Começamos grandes no Youtube e fomos um dos primeiros conteúdos brasileiros na Netflix, somos bem distribuídos no digital todo. Sempre que aparece um novo serviço, a Galinha já está lá dentro. Muitos, inclusive, já nos chamam antes de inaugurar, porque sabem que a Galinha tem que estar lá. É o kit básico da família brasileira”, brinca Juliano.
E não só dos brasileiros: paralelamente, a Galinha foi extendendo suas asinhas para crianças do mundo todo. Nos EUA, a versão Lottie Dottie faz sucesso, assim como em espanhol, com um público forte e crescente no México, onde é transmitida também na televisão aberta pela TV Azteca.
Ah! E ainda tem traduções em híndi, francês, chinês, italiano… Olha só esta versão de “Mariana” em japonês:
Ok, e por onde mais esta galinha quer cacarejar? Bom, planos sempre existem, mas um guardado com carinho é a produção de um longa metragem. “A ideia do filme é antes de tudo um sonho. Mas ao mesmo tempo, como empresários que somos, sabemos que para um longa acontecer, não é simplesmente fazer um filme. É mais complexo que isso. É preciso que ele se coloque comercialmente da maneira correta. E é um longo caminho, estamos começando o trabalho, mas é pensar num horizonte de 3 a 5 anos para sair”, revela Marcos.
Existe hater da Galinha Pintadinha?
Com o perdão do trocadilho, o futuro, como já deu pra perceber, está sendo bem “chocado”. O presente, como para todas as empresas, precisou de adaptação por conta da pandemia do coronavírus. Marcos lembra que, em março, na semana em que decretaram a quarentena, todos os ingressos para o espetáculo da Galinha Pintadinha estavam esgotados. E infelizmente, a temporada no teatro foi cancelada e nunca mais retomada, mesmo destino dos eventos presenciais da marca.
Com a crise, as famílias passaram também a consumir menos os brinquedos e produtos licenciados. Com tudo isso, pode parecer que o ano foi uma tragédia, mas a história não é bem assim. “É chato falar, porque é um momento mundialmente difícil, mas para a nossa empresa foi muito bom. No começo do ano, a gente assustou como todo mundo, mas terminou 2020 como sendo o melhor ano da marca!”, revela Marcos.
A lógica não é difícil de entender. Com mais crianças em casa – e pais mais exaustos – flexibilizou-se o tempo de tela. “Notamos um aumento expressivo de audiência. A parte de faturamento não acompanhou a audiência, principalmente de licenciamento e o nosso teatro, mas foi um ano bacana de produção, rodamos uma terceira temporada da série”, conta Juliano, e Marcos complementa: “Mas foi engraçado, porque parecia que a gente estava se preparando pra pandemia. Já estávamos implementando umas mudanças e quando o coronavírus chegou, estava tudo certo para gente trabalhar à distância”.
Nestes 15 anos de estrada e 50 clipes depois, os criadores contam que parte do trabalho atualmente também é administrar estas muitas vertentes de sua obra. Para isso, além da equipe formada por 15 pessoas, eles contam com terceirizados e agências para ajudar em outras frentes, como redes sociais. E elas são bem movimentadas! Tanto Marcos quanto Juliano dizem que gostam do feedback que recebem dos pequenos seguidores e de seus pais e criticam o posicionamento do Youtube de banir os comentários de vídeos infantis.
“O Youtube assinou um termo de proteção de dados nos EUA e isso cortou uma série de funcionalidades para canais infantis. Eles, inclusive, deletaram todos os nossos comentários do passado. A sensação que eu fiquei é que apagaram a nossa história, porque tinha comentário ali de 2006, de quando a Galinha não era famosa e isso era importante. A gente sabia o que estava acontecendo, porque tinha esse retorno das mães”, conta o produtor musical.
Junto com a equipe, os dois sócios idealizaram um projeto batizado de “Ninho das Mães”, numa tentativa de trazer a conversa para mais pertinho de novo. “São 13 episódios (em vídeo) com temas pertinentes e atualizados que tenham utilidade para as mães e seja um ambiente acolhedor de conversa”, explica Juliano.
As redes sociais, claro, ajudam muito nessa interação com os fãs. Cheia de memes e brincadeirinhas, será que a Galinha tem haters? “A pessoa que é hater tem meio que um hobbie, né? Não vamos pela cabeça deles, é meio que esperar ele enjoar e ir encher a paciência de outro”, explica Marcos, e Juliano completa: “E nunca foi nada assim forte, se você comparar com jornalista, político…”. “…Felipe Neto!”, brinca Luporini.
“Não ficamos nos posicionando, então só recebemos uns ataques meio bobos. A gente faz o conteúdo que é simples mesmo, é pra criança pequena, então uma pessoa de 15 anos não vai entender aquilo. Se bem que, ao mesmo tempo, já vi muito marmanjo assistindo o clipe da galinha e cantando! A gente dá muita risada”, conta Juliano. “É, não é bem hater, é mais a criança que já cresceu um pouquinho e saiu da faixa, e como ponto de afirmação do crescimento, ela adora dizer que não assiste mais a gente”, ri Marcos. “Ou os irmãos mais velhos que não aguentam mais a Galinha também”, gargalha Juliano.
E por falar em não aguentar mais a Galinha, é de se imaginar que os filhos dos criadores já estejam um tanto enjoados da Co-có azul. “Minhas filhas estão com 20 e 23 anos, ou seja, elas pegaram todo o comecinho do projeto”, revela Prado, enquanto Marcos conta que teve os seus junto com o estouro da marca.
“Foi bem no sucesso. Eu saia na rua e via a Galinha, eu chegava em casa e via a Galinha, foi uma época punk! Mas meus filhos foram se tocando do que estava acontecendo, enquanto acontecia. Não sei como isso se deu na cabeça deles”. Bom, pelo jeito, eles devem ter orgulho do pai, afinal, hoje com 9 e 10 anos, eles participam dos vocais de algumas músicas gravadas durante a pandemia.
E é justamente assim, com simplicidade desde o início, que a Galinha segue sua jornada mesmo no meio de tanta competição e novas (e rebuscadas) produções infantis.
“Lembro que era uma preocupação muito grande quando a Peppa Pig, por exemplo, chegou no mercado brasileiro. Diziam que ninguém mais iria querer saber da gente. Mas é um mercado que vive muitas ondas e acredito que o advento da internet e do on demand achatou-as um pouco, porque os vídeos estão lá disponíveis a todo momento, para todo sempre. E como temos essa presença digital e consumo muito sólidos, acabamos estáveis. Fomos muitas vezes questionados: ‘xiii, agora é o fim da Galinha!’, mas continuamos aí….muito bem!”, finaliza Juliano.
Vida longa à Rainha, quer dizer, Galinha!