Mitomania infantil: o que acontece com a criança que mente compulsivamente
O pequeno com o transtorno se vê forçado a contar mentiras, seja para se defender ou para manter fantasias sobre si e o mundo
É relativamente normal crianças mentirem. O que os adultos julgam como inverdade, às vezes, é só uma forma de elas colocarem a imaginação e a criatividade em prática. “Na infância, o pequeno ainda não consegue fazer a distinção exata entre o mundo real e o mundo imaginário”, explica Fernando Gomes, neurocirurgião, neurocientista e professor da Faculdade de Medicina da Universidade de São Paulo (USP).
Conforme o cérebro se desenvolve, a criança passa a entender que a mentira pode, na verdade, manipular sua própria realidade. “Ela sente uma coisa e fala outra diferente. Assim, vai aprendendo que pode provocar emoções variadas nas pessoas”, afirma Fernando. Isso geralmente acontece depois dos cinco ou seis anos de idade, quando o desenvolvimento da empatia já se faz presente.
O falseamento (ou a omissão) da realidade passa a ser utilizado para fugir de castigos ou ganhar bonificações. O “sinal amarelo” para este comportamento, no entanto, é quando a questão se dá de forma frequente. O pequeno, a toda hora, cria situações e acredita em coisas que não fazem muito sentido. “Isso chama a nossa atenção para a possibilidade de mitomania”, alerta o neurocientista.
O que é a mitomania?
Mitomania é uma compulsão para a mentira. A criança se vê forçada a mentir, seja para se defender ou para manter fantasias sobre si e o mundo. “Trata-se de um adoecimento psíquico”, explica Luana Dantas, psicóloga e psicanalista pela clínica Holiste Psiquiatria e mestre em Educação e Contemporaneidade.
É importante diferenciar o transtorno de outras questões. Mentir é algo natural do ser humano, todos mentem. “Crianças podem mentir também e isso não caracteriza diretamente uma compulsividade”, diz Luana. É possível que seja o movimento natural da infância, com pequenas inverdades para escapar de castigos ou de situações de estresse. A diferença é como as mentiras vão sendo conduzidas no seu contexto.
“A mitomania é uma questão séria de saúde mental, que causa prejuízos e danos psíquicos e sociais para o pequeno”, ressalta Roberta Machado, neurologista pediátrica e mestre em Neurologia e Neurociência pela Universidade Federal de São Paulo (Unifesp). Assim, a criança é considerada mitomaníaca quando, apesar de ser alertada e orientada sobre o comportamento inadequado pelos responsáveis, permanece dentro do mesmo padrão.
O que causa a mitomania?
Não há causas determinantes para o desenvolvimento do transtorno. A criação de uma realidade através do pensamento criativo é uma habilidade mental, que acontece principalmente nos lobos frontais do cérebro. “É onde manipulamos o real, lidamos com a questão do juízo, do controle inibitório e até mesmo com a produção verbal de uma história”, conta o neurocirurgião.
Nesse ponto, pode acontecer de o pequeno, de alguma maneira, receber formas positivas de retorno em sua comunicação e, então, desenvolver uma persistência no caminho da mentira.
Da mesma forma, existe a possibilidade de que situações da infância influenciem no quadro. “Através de evidências de acompanhamento clínico, vemos que vínculos fragilizados com os pais ou cuidadores, violência doméstica ou agressão e a ausência de suporte emocional para lidar o estresse na infância são fatores que, apesar de não serem determinantes, se repetem para crianças com mitomania”, conta Luana.
As mentiras da criança mitomaníaca
O que entendemos como fantasia na infância, que acontece por volta dos 4 anos, pode se confundir com as mentiras de fato. “A diferença é que, na fantasia, existe uma mistura da realidade inconsciente, já na mentira, a criança sabe que não é verdadeiro”, pontua Roberta.
Ela pode buscar mais atenção, prestígio, se esquivar de uma situação de estresse ou até mesmo viver uma realidade fictícia. O falseamento vai se dando de modo cada vez mais compulsivo e consciente. “São utilizadas mentiras para encobrir mentiras anteriores, o que gera o efeito ‘bola de neve’”, explica Luana.
A realidade vai sendo adulterada cada vez mais e de modo mais intenso. Quando questionada, a criança tende a tentar falsear ainda mais. “É um movimento causado por sofrimento psíquico. Ela tem uma necessidade de se defender do real e não encontra ferramentas emocionais para confrontar e suportar sua realidade”, afirma a psicanalista. Se muito praticado o ato da inverdade, é possível que se criem barreiras cognitivas para contar a verdade, acrescenta Roberta.
O papel dos pais
O processo de aprendizado para a criança sair do padrão repetitivo da mitomania pode levar algum tempo. É necessário paciência e atenção dos pais e cuidadores. Os responsáveis precisam conhecer o filho, construir um vínculo de confiança para identificar as razões que o fizeram optar por mentir.
A saída é sentar e conversar sempre com a criança. Explicar a situação de uma forma não agressiva, em uma linguagem que possa ser entendida. Sobretudo, desmascarando, carinhosamente, a realidade inventada pelo pequeno. “Se o comportamento persistir, é importante procurar um profissional da saúde mental para tratamento”, alerta o neurocirurgião.
Diagnóstico e tratamento para mitomania
O diagnóstico de mitomania é feito por uma avaliação médica especializada em psiquiatria ou neurologia infantil. “Vamos identificar e excluir outros diagnósticos diferenciais ou comorbidades associadas”, pontua Luana.
Há tratamento para o transtorno. Com ajuda da psicoterapia e, à medida que a criança for ficando mais velha, ela perceberá que o falseamento pode distanciá-la de verdadeiros elos de amizade e relacionamentos satisfatórios. O acompanhamento psicoterápico, através da terapia cognitivo-comportamental, auxiliará o pequeno a falar sobre a realidade que tenta camuflar ou escapar.
A mitomania deve ser tratada na infância
Se não for acompanhado na infância, o transtorno pode trazer sofrimento psíquico. “Assim como prejuízo nas relações interpessoais do adulto”, complementa Roberta. Segundo Luana, a pessoa com mitomania não mente por má índole. “É uma dificuldade emocional do sujeito, um tormento psicológico real e diferente daqueles que enganam ou realizam golpes”, acrescenta.
A pessoa pode acabar se isolando, ou ser isolado pelos membros de família e da comunidade. “O afastamento é resultado da recusa e dificuldade para confrontar os fatos”, completa Luana. Seria preciso uma abordagem persistente para entender o porquê do comportamento recorrente.