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Maternatípica

Poliana é mestranda em comportamento infantil, autora do instablog @meubebeeoautismo e mãe atípica de Soph e João.
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Não sabemos o que o outro enfrenta para fazer o que consideramos o mínimo

Manas, não esqueçam: estamos sempre vendo apenas um recorte da realidade da vida de outra mãe. Vamos ser ponto de apoio, jamais algoz.

Por Poliana Martins
1 ago 2021, 14h00

Recentemente vi, num post de rede social, uma criança bebendo coca-cola na mamadeira. A menininha da foto tinha por volta de 5 anos de idade. Fiquei imaginando essa cena congelada numa imagem rodando o mundo: a menina e sua mamadeira de refrigerante. Descontextualizada, a foto geraria uma onda de ódio virtual contra os cuidadores da pequena ou, sendo mais honesta, contra a mãe “descuidada” que permitiu que uma criança “tão crescida” continuasse usando mamadeira e, muito pior, que a usasse para beber refrigerante.

No mundo das mães perfeitas não caberia um erro tão grande, e são essas as primeiras a levantarem suas pedras virtuais de ataque contra todas aquelas que não performam o papel materno conforme a determinação social.

Assim como os capitães do mato* mantinham o sistema escravocrata, somos nós, mulheres, os principais agentes do machismo estrutural que nos sujeita a maternidade sem erros. E embora seja muito triste saber que gastamos nossa energia e tempo alimentando a sensação de frustração umas das outras, o pior é compreender que nosso julgamento é necessariamente falho.

A imagem congelada da menina com sua mamadeira de refrigerante era, na verdade, ostentada com orgulho por uma mãe solo que enfrentou a prematuridade extrema e com ela meses da possibilidade da morte iminente de sua filha. Depois disso a paralisia cerebral; a surdez; a dificuldade de mobilidade e – por fim – o autismo. Ver a menina de forma autônoma e independente abrir a geladeira, pegar o refrigerante, a mamadeira e comunicar não verbalmente um desejo era, naquele momento, motivo para celebração.

Pequenas (grandes) vitórias

Me lembrei das vezes que consegui entrar no supermercado por 20 minutos com meu bebê de poucos meses para comprar itens emergenciais. Meu filho, autista, não suportava o barulho de nenhum ambiente como padarias, mercados, sacolões e levá-lo, mesmo que para uma compra rápida, era sinônimo de crises de choro que duravam horas, às vezes, dias ininterruptos. E era não apenas frustrante, mas limitador da minha mobilidade enquanto pessoa, por não poder sair com meu bebê de casa.

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Algumas vezes, mesmo ciente das suas dificuldades, eu não tinha opções. E deixá-lo nas telas enquanto eu fazia compras era a solução momentânea de uma relação complexa de necessidades. Eu adoraria que ele se acalmasse no meu colo, no meu seio ou com os milhares de brinquedos pedagógicos que comprávamos na expectativa de que ele se interessasse mais por eles que pelos fios e sombras com os quais ele passava o dia entretido.

A sensação permanente de falha me afligia sem que ninguém, senão minha própria consciência, precisasse me dizer que crianças não deveriam ser expostas a telas tão cedo. Me perguntava se causaria danos irreparáveis no cérebro do meu filho, enquanto comprava pão e carne, correndo entre corredores para terminar aquela tarefa o mais rápido possível.

Mas um dia, com seu desenvolvimento e muita terapia, ele permitiu que eu me sentasse em um restaurante e comesse um prato inteiro enquanto via vídeos em seu tablet. Me senti vitoriosa, mas não de um jeito comum. Ainda hoje, anos depois, consigo me lembrar da sensação de “vou ter uma vida normal” que me percorreu naquele exato momento. Eu chorei ao chegar em casa, em êxtase, sem acreditar no milagre que eu havia presenciado.

Guardei no meu coração o quentinho gostoso de uma vitória, até que um dia, conversando com uma amiga, escutei como as mães de hoje em dia eram preguiçosas de permitir que crianças se distraíssem com telas em restaurantes, sem se esforçarem pra distraí-las ou brincar com elas ali na mesa. Foi como um soco no estômago de quem nunca imaginaria a minha vivência com uma criança com autismo, mas também de alguém que não é capaz de ser empático ao ver decisões de outras mulheres sobre sua própria maternidade.

Para ver além

Em todas as vezes que assistimos a recortes da realidade da vida de outras mulheres, nosso julgamento é sempre, sempre limitado a um instante. Não sabemos as batalhas que o outro enfrenta para fazer aquilo que consideramos o mínimo ou até mesmo inaceitável para nossos parâmetros de ser humano acima do bem e do mal, como uma mamadeira de coca-cola.

Não, manas, não estou aqui dizendo para que deem açúcar para seus filhos ou para que os exponham a telas sem moderação, muito menos que essas opções são melhores que uma alimentação balanceada ou brincar com jogos e pessoas. Estou convidando-as a serem empáticas. Certamente essas não são as melhores opções de alimento ou de distração para uma criança, mas a opção possível para essas mães reais, que enfrentam as dificuldades de seus filhos e suas próprias dores da maneira que encontraram para lidar.

Não existe apenas uma forma de maternar, assim como não há apenas uma forma de existir. Estamos todas (ou a maior parte de nós) fazendo nosso melhor a partir do que recebemos da vida. Que a gente possa se cuidar e ser rede uma para a outra. Um ponto de apoio, jamais algoz. Ofereça o direito da dúvida, talvez haja mais do que o recorte do momento esteja te contando.

*Escravos recém libertos que tinham por função perseguir e capturar escravos fugidos

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