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Maternatípica

Poliana é mestranda em comportamento infantil, autora do instablog @meubebeeoautismo e mãe atípica de Soph e João.
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A lenda do bebê high need: antes de tudo, confie na sua percepção materna

Olhando pra trás, sendo mãe de uma menina superdotada e de um menino autista, eu queria ter ouvido mais o meu incômodo que todo mundo tentava calar.

Por Poliana Martins
Atualizado em 23 jan 2023, 11h22 - Publicado em 1 jul 2021, 18h41

Por duas vezes eu ouvi do pediatra dos meus filhos que eles eram bebês high need – ou numa tradução livre, bebês de alta demanda. Aconteceu igual em meus dois puerpérios. Meus relatos em ambos os casos eram de bebês irritados, que dormiam pouco e choravam muito, mesmo quando suas necessidades de fome, cuidados e afeto estavam, aparentemente, saciadas. Não era algo que me parecesse esperado e, mesmo sendo uma jovem mãe inexperiente, eu estava incomodada. Talvez a palavra mais importante seja essa: incômodo.

É comum que toda mãe se preocupe com o bem estar de seu bebê e que receber uma criança seja, invariavelmente, uma experiência confusa. Essa adaptação mãe-bebê é mesmo difícil e exaustiva para a maioria de nós. Mas incômodos que persistem devem ser resolvidos. Eles apontam para algo que está “fora do lugar” mesmo que verbalmente a gente não consiga descrever.

Muitas de vocês me diriam que é sexto sentido, e tudo bem pensar assim, mas eu vou ficar com a ciência: intuição materna é o primeiro fator que sinaliza alguma necessidade de cuidado específico em bebês e crianças pequenas. O que chamo de intuição aqui é, na verdade, uma capacidade adquirida com a evolução da espécie em garantir o bem estar de suas crias. É uma habilidade apurada de observar, processar e perceber o desenvolvimento de seus filhos a partir dos parâmetros sociais e biológicos aprendidos.

Essa é a potência da maternidade: a gente sabe o cheiro, conhece o olhar, compreende cada movimento e também desconfia se algo não está correndo bem. Mas, muitas vezes, temos esse lugar esvaziado pelos outros que nos deslegitimizam de diversas formas, nos chamando de loucas, deprimidas, ansiosas e exageradas. Eu também estive no lugar de mãe e louca. Mas não era.

O tempo, o desenvolvimento dos meus filhos e, mais recentemente, a pesquisa científica, me mostraram que meus bebês tinham diferenças de regulação, emocional e sensorial, em relação aos demais. Isso se manifestava em seu comportamento, fazendo com que dependessem muito mais do seio, do colo, da presença e de mecanismos de corregulação como chupetas, canções, balanços.

Não por acaso minha linha de pesquisa no mestrado é em neurodesenvolvimento de bebês. Ela é atravessada pela minha experiência materna que emergiu da necessidade de encontrar respostas sólidas para as angústias que vivenciei, de forma a que nenhuma mãe se sinta maluca nessa sociedade machista. Porque não somos.

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Ouça o que o seu incômodo tem a dizer

O bebê high need nada mais é que uma criação do imaginário popular para justificar um fenômeno desconhecido (pelos maus profissionais). O terraplanismo surge no sec. XV com o ápice das Grandes Navegações para justificar o sumiço de navios e o desaparecimento de tripulações inteiras. O europeu daquela época acreditava que a Terra possuía uma grande borda em que o oceano acabava, dando lugar a um buraco imenso, em que os navios despencavam rumo ao desconhecido, teoria que foi superada pelo conhecimento cartográfico e tecnológico (amém, gente? Repitam comigo: superada!). Mais tarde a história registrou que os navios “desaparecidos” na verdade tinham encontrado algum paradeiro no “novo” continente americano e que toda a ideia de Terra Plana era apenas uma justificativa folclórica para algo que ainda não se sabia bem. Porque a falta de compreensão de um fenômeno faz com que nossa imaginação crie justificativas místicas para tentar apaziguar nossa angústia.

Eu diria, então, que o bebê high need é o saci-pererê do desenvolvimento infantil. Olho pra trás e gostaria de ter tido a orientação de uma terapeuta ocupacional para facilitar o sono e adaptar recursos para regular minha filha Sophia, 12 anos, superdotada. Ouvir do pediatra que Soph era high need me acalmou momentaneamente, mas não resolveu os problemas sensoriais da Soph que até hoje enfrenta processos de desregulação; não mudou seu padrão de sono e não ajudou-a em nada. Pelo contrário, só atrasou nossa adaptação e tornou meu puerpério um inferno, afinal, ela era apenas um bebê high need e a mim restava lidar com isso. Foi um apagamento do meu incômodo necessário. Esse incômodo iria me guiar para suprir a necessidade da minha filha e dar a ela ferramentas para ter uma vida mais leve.

Quando tive João a história se repetiu: ele foi rotulado como um bebê high need nas primeiras semanas de vida. Ele não parava de chorar, tinha severo distúrbio de sono e problemas em se alimentar. Mas eu não era a mesma. Não aceitei essa desculpa vazia que não parecia justificar o comportamento do meu bebê.

Claro que ele tinha uma demanda acentuada, mas o porquê disso era o que eu me interessava em saber. Também queria dar a ele os recursos que ele precisasse para se adaptar melhor (brincar, comer, dormir, se manter calmo) e com menos de 2 meses de idade João passou a ser acompanhado por uma terapeuta ocupacional que trabalhava com ele a melhora das respostas sensoriais, da amamentação e da ocupação no geral: brincar, aceitar o toque, rastrear objetos, entre outros. Meses depois descobrimos que João era autista e todo o processo de intervenção, desde os primeiros meses, tornaram nossa vida um pouco menos difícil.

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Não permita que ninguém te silencie!

Existem diversas razões para que um bebê apresente comportamentos “desafiadores”. Assim como para qualquer de nós, porque afinal, os bebê  (preparem-se para a revelação) são pessoas! Problemas orgânicos como dor, refluxo, viroses; dificuldades em conseguir se alimentar, frio, calor, sensibilidades sensoriais, diminuição na interação e comunicação com os cuidadores, superdotação, autismo, TDAH, hiperatividade, apraxia; entre outros fatores, podem fazer com que um bebê se comporte de modo não adaptativo, isto é, que seu ajustamento ao meio, àquela família e à realidade possa ser mais complexa que para os demais.

A forma mais adequada de lidar com isso é investigar primeiro questões orgânicas e, eliminado hipóteses clínicas, o comportamento do bebê. Por que ele chora (está com fome, frio, sono, com as fraldas molhadas)? Quando ele chora (é quando ocorre um barulho, quando alguém toca nele, quando alguém tenta brincar com ele)? Por que se comporta assim (evita o contato visual, por exemplo)? Um conjunto dessas respostas, anotadas com cuidado, poderão direcionar esse bebê para um cuidado específico, se necessário.

Olhando pra trás, sendo mãe de uma menina superdotada e de um menino autista, dois bebês com demandas comportamentais específicas desde os primeiros dias de vida, eu queria ter ouvido mais o incômodo que todo mundo tentava calar.

Então, se posso dar um conselho é esse: não permita que ninguém te silencie. Você é, com certeza, a maior especialista no seu filho. Diante de incômodos persistentes em relação ao comportamento da criança procure um neuropediatra, psiquiatra da infância ou alguém da equipe multidisciplinar (fonoaudiólogo, terapeuta ocupacional, psicólogo infantil) pra te acolher e divida seu desconforto. Já caminhamos muito em descobertas comportamentais de bebês e crianças pequenas e não precisamos de lendas que não nos levam a um lugar de suporte, além de atrasar desenvolvimento dos nossos pequenos.

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Bebês high need não existem, tá passada?

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