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“Perfis fakes e de familiares fizeram chacota com a cor do meu filho”

Após seu filho ser vítima de injúria racial nas redes sociais, Marcos Davis decidiu recorrer judicialmente contra o crime cometido com o recém-nascido.

Por Alice Arnoldi
Atualizado em 20 set 2021, 11h18 - Publicado em 10 set 2021, 19h45

Comentários ofensivos, preconceitos enraizados, desigualdade salarial, intervenções policiais injustificadas, balas perdidas e muita violência, psicológica e física. Estas são apenas algumas das circunstâncias que pessoas negras, nascidas no Brasil, enfrentam todos os dias, simplesmente ao andarem nas ruas, irem ao trabalho ou estabelecerem relacionamentos, como construir uma família. Só que com a internet, este crime ganhou mais um lugar de ocorrência: as redes sociais, com a ação de haters ou escondido através de perfis fakes.

Foi exatamente o que viveu Marcos Davis, no dia 19 de agosto, momento que deveria ser de felicidade, já que ele estava dando boas-vindas ao filho Noah. Com apenas 24 horas de vida, o recém-nascido, fruto do relacionamento do pastor de 30 anos com a esposa Débora Davis, foi vítima de injúria racial ao ter a sua primeira foto divulgada pelos pais após o nascimento. Familiares e seguidores questionaram ao casal negro se o pequeno era realmente filho deles por ter nascido com a pele mais clara, perguntando até mesmo se ele não havia sido trocado na maternidade.

“Demorou para cair a ficha, não conseguíamos acreditar que estávamos sendo vítimas de injúria racial. Lidar com esse tipo de comentário já é difícil, imagina quando se trata de um bebê e logo no ato do seu nascimento?”, questiona o pai.

Inicialmente, Marcos publicou uma nota de repúdio ao que estava acontecendo e seguiu compartilhando imagens do bebê no Instagram. Entretanto, os comentários continuaram junto com palpites e julgamentos – como a especulação de que a família tinha que fazer um DNA e mostrar ao público para comprovar a paternidade do bebê –, o que levou o pastor a recorrer judicialmente contra essas pessoas.

A história, relatada em primeira pessoa, é a tentativa de alerta para que mais famílias negras saibam que o racismo sofrido na internet também pode ser denunciado e que mais nenhuma voz será silenciada.

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Veja o relato completo:  

“Eu e a Débora temos sete anos de casados e sempre quis ser pai, mas esperamos um pouco devido as dificuldades financeiras que enfrentamos no início. Então, no dia 19 de agosto, o Noah Davis nasceu aqui, em Goiânia. Estávamos muito ansiosos pela sua chegada e, como figura pública, sou pregador, desde o início da gestação divulgamos tudo: o anúncio da gravidez, o chá revelação, de fralda, enfim, o dia a dia.

Criamos uma expectativa nas pessoas que também esperavam pelo nosso filho, que queriam conhecê-lo e saber se ele se pareceria mais comigo ou com a mãe. Só que como temos um grupo de amizades e também de seguidores muito grande, não íamos conseguir mandar a foto dele para cada pessoa. Assim, preferimos fazer uma publicação no nosso perfil para que todos pudessem vê-lo.

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A princípio, recebemos muitas mensagens positivas, que compartilhavam da mesma alegria que a nossa. Só que, ao mesmo tempo, surgiram comentários negativos e injúrias raciais, porque somos negros e o meu filho nasceu com a pele mais clara. Eram falas ofensivas, que colocavam em dúvida meu caráter, minha integridade e a índole da minha esposa.

Eram comentários do tipo: ‘será que o bebê é dele mesmo?’, ‘será que ele não foi trocado na maternidade?’, ‘não tem cabimento pais negros gerarem uma criança branca’. Eles foram feitos tanto por perfis fakes quanto por familiares que também fizeram chacota com a cor de pele do nosso filho, com frases como ‘estávamos esperando um bebê negro e vocês aparecem com um branco?’ ou ‘só falta ele ter o olho azul ou verde!’. Muito sarcástico!”

Ir ou não à justiça… 

“No início, não me propus a agir judicialmente contra essas pessoas, até porque eu não tinha conhecimento de causa. Fui pesquisar e saber como funciona: descobri que é um crime e que tem penalidades de acordo com a lei para este tipo de comentário. Mas demorou para cair a ficha, não conseguíamos acreditar que estávamos sendo vítimas de injúria racial. Lidar com esse tipo de comentário já é difícil, imagina quando se trata de um bebê e logo no ato do seu nascimento?

Eu decidi publicar a nota de repúdio depois de quatro dias sofrendo esses ataques. Não esperava que ela fosse viralizar, mas tomou uma proporção muito grande no Brasil e fora daqui. Só que mesmo com esta repercussão, os comentários não pararam de surgir. Eles diziam que, por sermos figuras públicas, tínhamos que fazer e mostrar um DNA.

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Como cristão, meu dever é perdoar essas pessoas e elas foram perdoadas, não temos nenhum mágoa em relação a elas. Mas a partir do momento que começamos a postar outras fotos com o bebê e os comentários continuaram, disparou um gatilho na minha mente de pesquisar mais informações para saber como que funciona e como esse caso pode ser considerado judicialmente.

Também pesquisei nas redes sociais e encontrei diversas situações parecidas. Muitas pessoas se calam pelas circunstâncias, por não terem recursos para expor, para publicarem esse tipo de situação de forma que isso seja um meio de combate ao racismo e a injúria racial. Então, ao enxergar minhas possibilidades, decidi não ser mais uma voz silenciada por essas pessoas que agem às ocultas, atacando muitas famílias.

Recorri aos advogados, à Superintendência dos Direitos Humanos de Goiás, à polícia civil especializada e vou usar todos os recursos que tiver para defender a nossa raça e mostrar para a sociedade que isso é um crime, que tem consequências e elas precisam pensar muito antes de publicar este tipo de comentário nas redes sociais”.

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A importância de ter decidido buscar por justiça

“Todo este processo nos machucou, desestabilizou, fez com que chorássemos e pensássemos até mesmo em desativar nossas redes sociais. Mas não vou deixar que por causa de algumas pessoas infelizes, que fizeram estes comentários, tantas outras deixem de ser alcançadas.

Já para o meu filho, o principal legado que quero deixar com esta situação que aconteceu com a nossa família é respeito pelo próximo, independente de cor ou religião. Ele vai ter o direito de discordar, mas vai precisar saber expor a opinião dele. Além de ser um homem que luta pelos seus direitos e pela família, assim como o pai dele.

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(@glendamirandafotografia/Arquivo Pessoal)

Através dos depoimentos que eu tenho concedido à imprensa, expondo meu rosto, torço para que outras pessoas despertem através desta notícia e exerçam seus direitos. Espero que elas tenham coragem para denunciar, ir atrás e lutarem contra este mal”.

Como está o processo até o momento?

“No dia 8 de setembro, foi aberto um Termo Circunstanciado de Ocorrência (TCO), em que está inserido todos os links dos perfis e prints dos comentários. Quando ele for fechado, no dia 13 de setembro, inicia-se o inquérito e a polícia, junto ao Instagram, vai descobrir por IP quem são e onde estão estas pessoas. Localizando, elas serão intimadas, precisarão depor e, então, ocorrem as sentenças.

Neste interim, centenas de pessoas mandaram mensagens para nós, compartilhando fotos e contando experiências que tiverem semelhantes às nossas. Muitas não conseguiram gerenciar a situação e entraram em processos de depressão, pânico e complexos devido a injúria racial nas redes sociais. Então, hoje, estou representando elas também”.

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