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Como falar sobre racismo com as crianças?

Especialistas dão dicas para conversar sobre o assunto com crianças negras e brancas e ensinam a lidar com situações de preconceito

Por Chloé Pinheiro
Atualizado em 2 jun 2020, 19h05 - Publicado em 22 nov 2019, 13h03

Em pleno 2020, milhões de famílias brasileiras ainda sofrem por conta do racismo. Seja por ver filhos excluídos das brincadeiras, ler comentários maldosos na internet ou mesmo ser acusada de sequestrar a própria filha por ter uma cor de pele diferente da dela.

Muito disso ainda é encarado como brincadeira ou escondido sob o discurso que somos todos iguais. Só que minimizar e varrer para debaixo do tapete não é a melhor maneira de lidar com o preconceito, garantem as especialistas ouvidas nesta reportagem. “Desde bebê, o filho precisa saber que existem pessoas diferentes e como lidar com elas”, resume Livia Marques, psicóloga e autora do livro Dandara e Vovó Cenira (Editora Sinopsys).

Ou seja, por mais dolorido que seja, precisamos falar sobre o assunto com as crianças. “Para os negros, não é uma opção, pois sentimos na pele todos os dias, mas para a família branca, muitas vezes isso não é uma questão”, comenta Deh Bastos, publicitária criadora da rede de comunicação antirracista.

Deh Bastos e Paula Batista (Arquivo pessoal/Reprodução)

Ela e a sócia, a jornalista Paula Batista, criaram a iniciativa a partir de suas próprias experiências. Deh é mãe de um menino de pele mais clara que a dela, de 1 ano e 8 meses, com pai branco, e Paula é madrasta de duas meninas brancas.

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A vontade de incluir mais gente na conversa sobre racismo, como elas fizeram com as famílias, é o norte do projeto, que dá consultorias em escolas e promove palestras para orientar pais.

Veja a seguir algumas dicas delas e da Livia para trazer o diálogo para dentro de casa.

Seja um exemplo

Não adianta esperar que a criança lide com as diferenças na rua se, no ambiente familiar, os pais fazem piadas com isso e estão cercados de negros apenas como funcionários, muitas vezes invisíveis.

A ideia é fazer uma autoavaliação da vida dos adultos: quem são os amigos mais próximos e que oportunidades a criança tem de conviver com pessoas diferentes? E, mais importante ainda: como o diferente é tratado pela família?

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Mostre a diversidade na prática

Quando o filho ainda é pequeno, é bacana inserir referências diferentes, de outras culturas e raças, em suas brincadeiras, bonecos, personagens de desenho, músicas, passeios e por aí vai. Conforme ela cresce, o ideal é que o tópico faça parte das conversas em família de maneira transparente.

O termo é letramento racial. “Que é compreender que estamos em uma sociedade racista, e as crianças brancas precisam refletir sobre onde estão os negros, e questionar isso com a gente”, comenta Paula Batista. Explique que existem pessoas que tratam mal outras pessoas só por causa da cor da pele ou de características físicas, que há injustiças no mundo e que é responsabilidade de cada um mudar esse cenário.

Empoderando crianças negras

E isso vai além de ter bonecas de pele escura. “Hoje somos marginalizados, então a criança precisa saber que há possibilidades fora da subalternidade, que existem reis e rainhas negros”, comenta Livia Marques. As próprias história e mitologia africana e afrobrasileira são fonte de relatos incríveis, hoje descritos em diversos livros infantis. E há uma mãozinha da ficção, como o célebre exemplo do Pantera Negra.

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Frequentar espaços afirmativos, como coletivos de música, quilombos urbanos, museus e atividades de resgate cultural também ajuda nessa criação de repertório e valorização estética — outro ponto importante aqui. “Não gostar da própria aparência traz prejuízos sérios para a criança, que desenvolve a autoestima com os pais, então o primeiro passo é gostar de você mesmo, se enxergar como uma pessoa negra, para que ela saiba que o padrão estético dela é valorizado em casa”, ensina Livia.

Vale destacar que, se o bebê tem a pele mais clara da mãe, é ela que é mais afetada pela discriminação racial. “O racismo já é sutil, mas na família ele é mais sutil ainda”, aponta Deh. Uma saída para isso é deixar claro desde cedo à família que a criança é negra e que pretende fazer uma criação com consciência racial.

Não existe brincadeira ou fase

Quando o filho repercute uma fala racista, independente da idade dele, não releve. Enquanto ele está “passando por uma fase” ou “fazendo uma brincadeira”, outra criança está sofrendo e pode ter cicatrizes pelo resto da vida. Explique que é errado, que aquele comportamento é inadmissível e reveja se é algo na dinâmica da família que está transmitindo ideias preconceituosas para ele.

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A escola do seu filho é inclusiva?

Se os únicos negros da escola são porteiros, faxineiros e cozinheiros, sinal de que a escola pode não se importar muito com a questão da diversidade. Vale verificar se eles realizam atividades sobre o tema, se tem um protocolo de como agir em casos de racismo e como é o padrão estético dos livros e das ilustrações nas paredes.

O que fazer quando a criança é a vítima?

Não é possível saber como a criança vai reagir, não importa o quanto os pais se preparem para esse momento e empoderem o pequeno. “Nós trabalhamos com isso e ainda não sabemos lidar quando somos as vítimas, é uma mistura imobilizante de dor com raiva, muito difícil de descrever”, comenta Deh.

Fique de olho, pois muitas vezes uma criança pequena não conseguirá verbalizar o que aconteceu com ela. Pode ficar mais amuada, quietinha. Essas mudanças de comportamento não podem passar batido, pois os efeitos negativos para o desenvolvimento infantil são graves.

“A criança pode desenvolver transtornos de ansiedade, estresse pós-traumático, isolamento social e muitos outros que impactarão sua vida adulta”, aponta Livia. Se ela verbalizar o que houve, vá a escola, ao local onde ocorreu e não deixe passar batido. Racismo é crime e deve ser denunciado.

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Não existe fórmula mágica

Mesmo tomando todo o cuidado, dialogando e agindo contra a discriminação, o racismo não vai sumir do dia para a noite. O tema é dolorido e as conversas não são fáceis, mas precisa ser discutido urgentemente, e as maneiras de inclui-lo no cotidiano vão variar conforme o contexto familiar de cada um.

“Existem mais perguntas do que respostas, mas precisamos dessa reflexão. As crianças são a solução para enfrentar o racismo, mas é com os adultos que mudamos as crianças”, ensina.

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