Laís Palma Elsing e seu marido, Fernando Vidigal Bucci, ainda não tinham planos de ter filhos quando foram surpreendidos por uma gravidez múltipla: três menininhas viriam para completar a família. O percurso, desde então, não tem sido fácil. Além dos comprometimentos durante a gestação, que levaram a um parto prematuro, as pequenas Athena, Helena e Sofia foram diagnosticadas com paralisia cerebral. Fazendo, com Fernando, de tudo para mantê-las saudáveis e inseridas na sociedade, Laís escreveu o livro Somos Iguais, mas Diferentes como parte de sua luta para que pessoas com deficiência sejam respeitadas e tenham todas as oportunidades da vida. O casal ainda mantém o perfil @triveganas no Instagram, em que trazem informações sobre o dia a dia com as meninas.
Leia, a seguir, o relato completo desde o teste positivo até a escrita do livro.
“Foi depois de um descuido meu e do Fernando que comecei a me sentir diferente. Após um atraso de mais ou menos quatro dias na menstruação, pedi para ele comprar um teste rápido na farmácia, e lembro que deixei para fazer depois de uma meditação guiada num centro budista. Positivo. Um certo desespero tomou conta de mim: ‘Será que darei conta?’, e desabei no choro.
Achamos uma consulta na internet para as 8 horas da manhã seguinte. Não dormimos direito. A ginecologista pediu exame de sangue e um ultrassom do útero. No de sangue, tinha dado um beta HCG alto e esperamos o ultrassom para confirmar. Já estava pesquisando obstetra, vendo vídeos, enxoval, e estava numa expectativa de ver o feto em minha barriga. O ultrassom acusou uma gravidez anembrionária, isto é, meu corpo se programou para ter um filho, mas não tinha embrião. Caí em lágrimas pela segunda vez no mês por motivos totalmente opostos.
Após duas semanas, fizemos o segundo ultrassom, mas já tínhamos sido informados sobre a curetagem. Outra médica me atendeu. Ela estava muito persistente nas perguntas. ‘Tem caso de gêmeos na família?’, ‘fez tratamento para engravidar?’, ‘está tomando alguma medicação?’. Eu só conseguia focar naquela imagem confusa do meu útero, onde antes não aparecia nada. ‘Tem um coração aqui’, disse ela apontando com o mouse na tela do computador. Eu e meu marido nos demos as mãos e começamos a chorar. Mais uma bateria de perguntas e ‘tem um segundo coração aqui’!
Imediatamente paramos de chorar e soltamos nossas mãos, talvez de fraqueza pelo choque. Queria apenas um momento para digerir o que estava acontecendo. A médica repetiu novamente as perguntas e eu, impaciente, respondi que não de novo. ‘É que tem um terceiro coração aqui!’. Só lembro de ver o Fernando pulando da cadeira e falando para a médica quase em tom de berro: ‘Pelo amor de Deus, para de procurar’. Foi assim que descobrimos que seríamos pais, não de uma criança, mas de três de uma vez só.
Depois da surpresa
Como sabíamos que era uma gestação rara, já que os três fetos estavam na mesma placenta, procuramos uma obstetra com maior experiência em múltiplos. Ela mesma indicou um ultrassonografista especialista em transferência feto-fetal [quando o sangue passa de maneira desproporcional para bebês que dividem a placenta], pois era comum acontecer isso nesses casos. Com 12 semanas, descobrimos a diástole zero em um dos cordões umbilicais, isto é, a passagem de sangue estava comprometida, e precisaríamos acompanhar a cada 15 dias. Em uma dessas consultas, o médico não estava e o exame foi feito por outra da equipe, que descobriu a coarctação da aorta do feto 2, o mesmo que estava comprometido com a diástole zero. A médica, suspirando, soltou um: ‘Ah, essa menininha…’, num tom de pessimismo, balançando a cabeça de modo negativo, como se não houvesse expectativa de sobrevivência para ela.
Já sabíamos que seriam três meninas – e eu, jurando que eram meninos, não tinha pensado em nomes femininos. Ignorei o comentário da médica, pesquisei novos nomes, achei um pediatra vegano que combinava com nossa filosofia de vida, e continuamos fazendo os ultrassons com o outro médico.
Era perto de um feriado e aquele médico teve que se ausentar de novo. Eu não queria fazer o ultrassom com a médica indelicada. Foi quando minha obstetra perguntou se eu não gostaria de conhecer uma médica especialista em medicina fetal, que poderia acompanhar o parto. Já sabíamos que seria prematuro, mas não esperava que fosse semanas antes.
Parto prematuro
Nessa consulta, a notícia não foi boa. Não lembro de ter chorado tanto como naquele dia, e nem de ter visto o Fernando chorando daquele jeito. Eu teria que ir para casa e arrumar minhas coisas para ser internada e me preparar para o parto. Estava com 26 semanas e 3 dias, e a diástole virou reversa, isto é, o fluxo sanguíneo do cordão umbilical do feto 2 estava comprometido, e ele corria risco, assim como um dos outros que já estava com diástole zero.
Fui internada na mesma noite e fiz uma bateria de exames e ultrassons diários para avaliar se a medicação que deram para melhorar o fluxo de sangue estava funcionando. Como esperado, melhorou por dois dias e, no terceiro, já estava pior. O parto de emergência foi programado para o feriado.
Consegui a equipe que tinha planejado, me despedi das pessoas que estavam na expectativa do meu parto e fui de cadeira de rodas para o centro cirúrgico. Quando comecei a passar pelo corredor e ver as pessoas paramentadas, senti um desespero.
Apesar de falarem que não escutaria choros, Athena chorou um pouquinho, o que me trouxe certo alívio. Consegui tocar nela antes de ir para incubadora, e meu feto 1 virou um bebê de 32 cm e 600 g. Logo em sequência, saiu o feto 2, que ainda não tinha nome (provavelmente pelo fato de que os médicos não tinham expectativa de sobrevivência para ele naquele período) e foi entubado imediatamente, pesando 470 g e 27 cm. Foi com quem mais tive contato e tenho mais fotos. O feto 3, Sophia, subiu um pouco pela contração do meu útero, e senti a tensão no ar quando o anestesiologista pulou por cima de mim para empurrar minha barriga. Isso só durou 2 minutos, mas como o Apgar foi menor que os da irmãs, não consegui encostar nela, que foi direto para incubadora. Ela também pesava 600 g e tinha 30,5 cm.
Após o nascimento
Tive que ficar internada na UTI por conta do risco de sangramento, e lembro que tudo me doía. Duas técnicas me deram banho na cadeira de rodas, e me recordo de ver o sangue escorrendo e de me sentir fraca. O Fernando chegou bem mais tarde, mostrando as fotos das pequenas na incubadora, e percebi o quanto eram pequenas quando vi o tamanho do termômetro em comparação a uma delas.
Na manhã seguinte, consegui voltar para o quarto e fui empurrada até a porta da UTI neonatal em que elas estavam: ocupavam todo um lado de uma sala e estavam em ordem de nascimento. Andei por elas, tocando na incubadora, mas sem me atrever a tocá-las. Parecia uma barata tonta indo e voltando, tentando não chorar e falar alguma coisa para cada uma. Aprendi a olhar os monitores e a desligar o barulho que fazia quando os parâmetros estavam abaixo do esperado. Senti culpa por não ter conseguido escolher um nome para o feto 2 antes de nascer, e só depois de dois dias resolvi que seria Helena.
Chegávamos pela manhã e saíamos só a noite. Hoje em dia, penso que é cruel a UTI neonatal ter só uma cadeira desconfortável, para praticamente obrigar os pais a irem embora à noite. Passamos algumas madrugadas nessas cadeiras mesmo, ou fazíamos uma visita noturna quando o coração apertava. Ia ao banco de leite a cada três horas, na expectativa de sair o colostro, mas só no segundo dia saíram algumas gotas. Minha ansiedade de nada adiantava, uma vez que ficaram um tempo sem poder tomar nada por via oral.
Aprendemos muitos nomes difíceis e diagnósticos diversos de várias especialidades. Eu, como médica veterinária, não sabia que um ser podia ter tantos diagnósticos, e eu tinha três para me preocupar. Comemoramos as primeiras gotas de leite dadas e ficamos aflitos nas primeiras transfusões de sangue.
Depois de uns dias tomando coragem para fazer carinho nelas, apareceu uma placa em que estava escrito ‘precaução de contato’, pois uma delas tinha testado positivo para uma bactéria hospitalar numa cultura semanal que faziam da pele de todos os bebês. A partir dali, usava avental de isolamento e luvas para não contaminar as outras. Em outra ocasião, apareceu a placa ‘risco de fratura’, pois o osso era tão delicado que podia quebrar só com os movimentos bruscos delas. Sempre que surgia uma nova plaquinha, já ficava aflita. Com o tempo, porém, elas foram ganhando plaquinhas de ‘parabéns pelo primeiro mesversário!’, ‘feliz Natal’, ‘parabéns pelo primeiro quilo’… Acabei virando uma mãe veterana na UTI neonatal e reconfortando as mães que chegavam.
Levando as meninas para casa
Helena foi a primeira que peguei no colo, depois de quase 1 mês. Era a mais instável das três e tive a sensação de que as pessoas viviam querendo que eu me despedisse dela. Mas tenho certeza de que nossos contatos nos deram mais força para seguir lutando. Lembro de ficar toda tensa, com medo de desconectar qualquer tubo ou equipamento que a mantinha viva. Fiquei imóvel pelo tempo que me permitiam ficar com ela. Presenciei muitos ‘corredores’ alegres de despedida e sofri muito com os amigos que fiz e que não tiveram essa oportunidade, fazendo aquele corredor parecer enorme e frio. A cada perda, uma insegurança absurda de perdê-las se tornava palpável. Mas elas foram crescendo, entre muitas medicações, muito mantra, conversa e músicas desafinadas cantadas por mim.
Tivemos nosso primeiro ‘corredor’ com 118 dias, levando a Sosô para casa para ser nossa cobaia de como cuidar de bebês. Começou a nossa rotina louca de ter um bebê em casa e dois no hospital. Como eu não dirigia, ia de ônibus para o hospital e ficava boa parte do dia lá. No fim da tarde, voltava pra casa e o Fernando assumia meu lugar. O medo era tanto de contaminação, que na primeira semana em casa, só eu e ele cuidávamos da Sophia. Depois de uma semana assim, não aguentamos a rotina e pedimos ajuda para as avós.
Athena iria sair na mesma data da cirurgia da Helena, então pedi para segurarem mais um dia, já que não ia aguentar toda aquela emoção misturada. Helena fez sua cirurgia, que foi um sucesso, porém precisou de muita atenção no pós-operatório. A quantidade de equipamentos aumentou muito e nossa angústia também. Na manhã seguinte, saiu Tetê, após 165 dias na UTI neonatal. Então, nossa vida de pais de múltiplos em casa começou. O Fernando já não podia mais dormir enquanto eu amamentava a Sophia. Lelê surpreendeu a todos com sua rápida recuperação e evolução da parte respiratória. Ganhou um novo apelido no hospital: ‘milagre ao cubo’. Depois de 217 dias sem ver o sol, Dona Helena, como gosto de chamar nossa pequena, teve seu tão esperado corredor.
Novos diagnósticos
Pude finalmente dizer adeus para a UTI neonatal…. Mas, infelizmente, não pude dizer adeus aos hospitais e internações. Um mês depois de todas em casa, Helena teve uma cianose e, com medo de ser algo relacionado a cardiopatia que ela tinha, corremos para o PS. Lá, descobrimos a epilepsia. Após um mês, em uma consulta com a neurologista, o termo ‘paralisia cerebral’ surgiu. Lembro de não sentir o chão e de parecer que ia cair, segurando Helena no colo. Fernando, que estava balançando a Sophia, havia parado com os olhos arregalados, repetindo o termo em forma de pergunta. Só consegui perguntar: ‘As três têm?’. E a afirmativa me fez chorar o que há tempos não chorava.
A partir daquele dia, tivemos que mudar toda nossa forma de pensar sobre pessoas com deficiência, porque, afinal, nunca tínhamos pensado nisso. As conquistas de marcos de desenvolvimento ganharam uma nova comemoração, mais eufórica. Sophia teve síndrome de West, uma forma de epilepsia que aparece em bebês menores de 2 anos e que tem um prognóstico cruel. Fizemos tratamento internados no hospital e, pela baixa imunidade, fiquei em isolamento com ela na casa da minha sogra por um mês, já que Helena estava com catapora. Depois, as três tiveram bronquiolite no início da pandemia. Os dias de sufoco que tínhamos passado na UTI neonatal pareciam ter voltado, mas com uma pandemia mundial envolvida. Pouco tempo depois, Helena teve a mesma síndrome.
Adaptação da rotina
A necessidade das terapias se tornou inadiável e nossa rotina, mais cansativa. No momento, ainda estamos tentando lidar com a agenda de terapias, exames, consultas médicas e a escola. A impressão que temos é de que estamos em uma eterna luta, e não por causa delas, mas por elas. Parece que tudo se torna mais difícil de conseguir quando se é uma pessoa com deficiência. Infelizmente, em uma sociedade capacitista como a nossa, que enxerga os deficientes como menos capazes que os demais, é difícil ocupar lugares. Além da falta de acessibilidade, tem a barreira atitudinal dos outros, e acredito que a situação só vai mudar quando as pessoas com deficiência começarem a ter visibilidade e a existirem como sujeitos de direito, como garante a Constituição.
Foi pensando nisso que resolvi escrever um livro infantil. Depois de fechar o grau de paralisia cerebral de cada uma, quando elas tinham dois anos, fiquei muito tempo pensando em como fazer as pessoas entenderem que as dificuldades motora e de fala não necessariamente eram um impeditivo de entendimento, e que todas deviam ser tratadas da mesma forma. Até que um dia consegui sentar e, em menos de uma hora, já tinha o texto e um rascunho com ideias de ilustração. Só faltava a frase final, que meu marido resolveu num instante. Mandei meus rabiscos toscos para uma amiga ilustradora, que amou a ideia na hora. Escrevi o texto pensando nas crianças em fase inicial de leitura, porque elas são mais abertas a tudo, inclusive às diferenças. Elas ganhariam muito convivendo com pessoas diversas.”