“O mundo é perigoso”: como crenças negativas dos pais atrapalham a criança
Comentários deste tipo fazem com que elas aprendam a reagir exageradamente, vendo perigo até onde não existe. Saiba como equilibrar a questão
Guerra, fome, assaltos, assassinatos, sequestros. Ao assistir a qualquer noticiário, a sensação que dá é a de um medo quase paralisante. Dependendo da forma como você absorve isso, vem a certeza de que o mundo é um lugar terrível, cheio de perigos e que a humanidade deu mesmo muito errado. Quando se tem filhos, então, o receio é multiplicado: como proteger as crianças de tantas situações ruins? Alertá-las incansavelmente sobre todos os riscos talvez seja uma alternativa. Mas exagerar na visão negativa do lugar em que vivemos pode prejudicá-las mais do que ajudar. É o que mostra um estudo recente da Universidade da Pensilvânia, publicado no The Journal of Psychology.
O psicólogo norte-americano Jeremy Clifton, autor do trabalho, explica que a maioria dos pais acredita que ensinar às crianças que o mundo é um lugar ruim é melhor para elas. Isso, no entanto, não é verdade. De acordo com a pesquisa, as evidências mostram que as crenças negativas quase nunca foram associadas a melhores resultados na educação. “Pelo contrário, pessoas que foram educadas com esse tipo de visão tiveram menos sucesso, menos satisfação no trabalho e na vida, piores resultados de saúde, mais emoções negativas, mais depressão e até um número maior de tentativas de suicídio”, diz Clifton no artigo científico.
“As chamadas crenças primárias são crenças sobre as características mais básicas e psicologicamente importantes do mundo – como quão perigoso é, quão divertido é, quão estável é e assim por diante”, explica o especialista. Por meio de revisões e comparações com pesquisas anteriores, com a literatura médica e com estudos empíricos, o psicólogo e seu time apuraram que grande parte dos pais transmite crenças primárias aos filhos, como a de que o mundo é perigoso e está contra eles. Segundo Clifton, essa é uma péssima ideia, já que esse tipo de educação foi associado a diversos resultados negativos mais adiante na vida. “Estudos anteriores já mostraram que as pessoas que tendem a ver o mundo como um lugar perigoso reagem exageradamente às situações e veem ameaças até onde elas não existem”, afirma.
Mas o mundo não é perigoso?
De acordo com a pesquisa, ensinar aos filhos que vivemos em um lugar perigoso pode ser ruim para eles. Mas o que fazer diante de ameaças que parecem cada vez mais intensas e numerosas? De volta ao exemplo do noticiário: é preciso lembrar que aquela série de reportagens exibidas diariamente na televisão (em um tom mais ou menos sensacionalista, dependendo do tipo de telejornal) é apenas um recorte da realidade. O todo é, na verdade, muito mais complexo. Isso quer dizer que devemos nos atentar ao fato de que não acontecem apenas aquelas coisas ruins. Ao mesmo tempo em que um ladrão assalta uma senhora na porta do banco, há várias pessoas que visitam idosos abandonados em asilos, que ajudam alguém a atravessar a rua, que fazem trabalho voluntário em alguma instituição, que adotam cães abandonados… Então, sim, o mundo pode ter aspectos perigosos, mas não é só disso que ele é feito.
“Existe uma crença cultural de que o mundo é um lugar ruim e que precisamos preparar a criança para esse lugar”, diz a psicóloga Nanda Perim, criadora do método PsiMama e autora do livro Educar Sem Pirar (Editora Bestseller). “Todos os perigos que existem, somados ao fato de os pais terem um medo muito grande de perder os filhos, fazem com que eles acabem acreditando que deixar a criança com medo do mundo vai ajudá-la a se proteger melhor e a ficar mais segura”, explica. A intenção, pelo menos na maioria das vezes, é das melhores. “Todos esses ensinamentos vêm de um lugar de amor, de cuidado, de proteção, de desejar a felicidade”, afirma a especialista.
Além disso, a tendência é de que as pessoas repassem aquilo que também foram ensinadas lá atrás. “Somos gerações e gerações de adultos que, um dia, foram as crianças que ouviram que o mundo é um lugar perigoso. Também crescemos com esses medos”, destaca.
Outras razões podem estar por trás do pânico transmitido às crianças. “Perigos, ameaças e problemas vão existir e impactar cada um de nós de maneiras diferentes, dependendo da nossa história de vida, sim, mas também de marcadores sociais que trazemos conosco”, ressalta a psicanalista e psicopedagoga Thais Basile, do perfil de Instagram @educacaoparapaz. “Uma mulher é atravessada pelo medo, pela sensação de terror e pela sensação de não ser ouvida ou considerada (o que piora essa sensação de medo, porque adiciona solidão) muito mais do que um homem, por exemplo. Por sua vez, homens negros são atravessados pela masculinidade de uma outra maneira, em comparação aos homens brancos”, pontua. Ou seja, para ela, não é só a nossa história pessoal de vida e a nossa infância que vão nos dizer como lidamos com os nossos medos, mas a junção de vários fatores complexos.
Rompendo o ciclo
Deixar de passar o medo e o terror do mundo para as crianças é necessário, como mostra o estudo mencionado no início desta matéria, porém a missão não é nada simples. Isso porque, como esse sentimento é incutido nos adultos, por diferentes razões, é preciso um grande esforço para quebrar uma corrente construída há várias gerações. “Educação é muito mais sobre o que estamos sentindo, pensando e fazendo do que sobre o que estamos falando para a criança. As palavras somem no vento, se não temos aquilo internalizado dentro de nós”, aponta Thais. Isso significa que não adianta nada tentar mostrar que o planeta é lindo e maravilhoso e que tem muitos pontos positivos, se nós mesmos não acreditarmos nisso.
E está aí o desafio! Para mudar as crenças que transmitimos aos pequenos é necessário, primeiro, olhar para si e lidar com as próprias questões. “Na infância, aprendemos os mecanismos de defesa: fugir, nos esquivar, compensar o medo ou, então, usar os mecanismos de defesa saudáveis, que é falar sobre aquilo, obter apoio, escuta, colo, acolhimento. Poucos de nós tivemos essa segunda opção”, diz a psicóloga e psicopedagoga.
“Hoje, sabemos pela neurociência da plasticidade do cérebro, da capacidade que ele tem de se reconstruir. Por isso, é possível reprogramar essas crenças, mas é um trabalho complexo”, alerta Nanda Perim. Se você não buscar enxergar suas questões, os motivos pelos quais você se sente ameaçado e em perigo o tempo todo, e não reprogramar isso ou, ao menos, tentar enxergar que existe um outro lado, com características positivas, vai ser impossível mostrar algo diferente para as crianças.
Não existe atalho e esta também é a conclusão de Jeremy Clifton. “Meu conselho para qualquer pessoa interessada em crenças primárias e como elas podem estar afetando sua vida ou a vida de seus filhos é, antes de tudo, descobrir quais são as suas crenças. O primeiro passo para sair da prisão é reconhecer que você está na prisão”, orienta.
Na prática: o que fazer?
Além de olhar e lidar com as próprias questões, cuidando de si e da visão que você construiu sobre o mundo, no dia a dia, é necessário exercitar maneiras de educar sem fazer terrorismo.
O acolhimento é uma das formas mais eficazes de agir em relação aos medos, já que não dá para esconder o que acontece de ruim. “A criança não está imune ao mundo, está vendo tudo aquilo. Ela só não sabe colocar nome nas coisas muitas vezes. É importante que os pais acolham e ajudem a nomear, principalmente quando a questão parte da criança”, explica Thaís.
Caso seu filho veja algo negativo acontecer (em uma notícia ou em uma conversa de adultos, por exemplo) e traga essa demanda, demonstrando que isso o impactou e o deixou preocupado, os pais não precisam negar os fatos e pintar o mundo de cor-de-rosa. O ideal é explicar, de maneira simples e adequada para a faixa etária, o que está acontecendo e que há pessoas trabalhando para resolver aquilo.
“O que não se deve fazer é inundar a criança nos problemas do mundo sem que haja esse interesse dela e sem a percepção de que ela já está aberta à possibilidade de ouvir e de entender o que temos para dizer. É importante nomear e responder, mas não afundar o psiquismo das crianças com problemas que são dos adultos. Eles é que têm que resolver as questões, para que elas herdem um mundo melhor”, diz a especialista. “Costumamos dizer que as crianças são o futuro, mas nós é que somos. Estamos aqui para deixar o mundo melhor para elas, com menos violência, menos dominação e submissão, e mais equidade”, completa.
E é importante observar o que de bom e de interessante há na sociedade, apesar das maldades e das tragédias. “Ensinar uma visão mais positiva do mundo não é o mesmo que dizer que este é um lugar incrível, sem problemas”, lembra Nanda. “Tem guerra, tem fome, tem vários pontos negativos. A grande questão é como você lida com o dia a dia. Não é cair naquela positividade tóxica de fingir que é tudo lindo e maravilhoso o tempo todo, mas exercitar cada vez mais, enxergar as coisas e a beleza que elas têm, como o fato de você acordar pela manhã, ver uma paisagem bonita, um dia ensolarado, o vento batendo no rosto…”, recomenda.
Uma sugestão de Nanda é tentar lembrar dos pequenos detalhes nos hábitos e no cotidiano. “Quando está chovendo, por exemplo, puxo conversa com os meus filhos: ‘Olha, está chovendo! O que a gente gosta de fazer em dias de chuva? O cheiro de chuva? Assistir a um filme juntos, abraçadinhos? Brincar na chuva?’”, exemplifica.
Para ela, o segredo é reforçar a infância e a maneira como os pequenos já enxergam o mundo. “Você não precisa ensinar isso às crianças. O esforço é ressaltar o que elas já são e o que elas já pensam, e não tirar isso delas. É só não estragar”, finaliza.