Os recentes casos sobre violência sexual que estiveram na mídia – infelizmente, entre tantos outros que acontecem diariamente neste país – trouxeram à tona mais uma vez o debate sobre o corpo feminino.
Uma menina de 11 anos grávida tendo seu direito de abortar questionado. Uma jovem que entregou o bebê fruto de um estupro para adoção sendo exposta pela imprensa. Uma grávida que foi estuprada pelo anestesista durante o parto, na sala de cirurgia. E se esses exemplos de atrocidades beiram o limite fatal – que é, podemos dizer, o feminicídio – vivemos outras tantas formas mais ou menos sutis de cerceamento do nosso corpo e dos nossos direitos enquanto indivíduos.
Quantas mulheres não são impedidas de terem o parto da forma que desejam, sem que haja questões médicas envolvidas na decisão? Quantas vezes a barriga da gestante é tocada como um objeto de domínio público? Quantas questões de ordem íntima são tratadas à revelia da própria mulher?
Por que, afinal, o corpo feminino – seja da criança, da adulta, da gestante, da idosa, de quem quer que seja – é visto nesse lugar de permissividade, em que tudo pode ser feito e toda opinião pode ser dada sem qualquer limite?
Um corpo que não tem o direito de existir de acordo com suas próprias vontades, crenças, desejos – nem de acordo com seus direitos. Que é tutelado pelo Estado, pelos vizinhos, pelos parentes, por desconhecidos. Um corpo que parece existir apenas para servir ao outro, ao grupo social, ao homem e à reprodução do trabalho.
Olhar para o passado para entender o presente
O contexto é histórico. Não dá para falar da situação da mulher no Brasil de hoje sem recorrer ao patriarcalismo e ao lugar ocupado pelas figuras femininas ao longo dos séculos. “Quando falamos de história, temos uma primeira impressão de que ela é linear, de que temos sempre uma superação de um momento em relação ao anterior, quando na verdade a historiografia mostra que isso varia muito”, explica a historiadora e doutora pela Universidade de São Paulo Marcela Boni Evangelista, pesquisadora do Grupo de Pesquisa em Gênero e História da USP.
“É preciso questionar esses pressupostos, pois em diversos momentos as mulheres tiveram muito mais autonomia no passado, nas decisões sobre o próprio corpo, como uma sabedoria compartilhada. Isso vai mudar aproximadamente no século XVIII, com o advento dos conhecimentos médicos relacionados a aspectos religiosos, estatais, entre outros”, afirma Marcela.
No Brasil, os reflexos dessa mudança vêm com a dimensão colonial, que ainda tem, sem dúvidas, um forte impacto na sociedade atual. “Temos muitos estudos que falam de África, Ásia e América que indicam que havia uma série de condições em que as mulheres não eram situadas de uma forma sempre à deriva ou em posição de inferioridade nas dinâmicas sociais”, destaca Marcela, que lembra ainda o impacto que o modo de vida europeu teve nos povos originários. “Muitas dessas questões que hoje chamamos de dissimetria de gênero foram impostas a partir dos modelos europeus aqui naturalizados”, pontua.
Vale lembrar que “naturalizado” não significa “natural”, ou seja, não é porque há a impressão de que determinada forma de vida sempre existiu que ela, de fato, esteve sempre ali. As construções são todas sociais.
Interseccionalidades importantes
“Essa visão da mulher mãe e esposa, em casa, é construída historicamente situada na consolidação do grupo social que nós chamamos de burguesia”, salienta a pesquisadora. Ou seja, é importante frisar que estamos falando aqui de um papel atribuído à mulher branca das classes abastadas. Quando se observa a situação da mulher negra – e esse olhar é fundamental – o cenário é ainda pior.
“No período em que houve escravidão, a maternidade da mulher negra, por exemplo, servia à reprodução de mão-de-obra escrava”, destaca Marcela. Ainda como consequência, hoje em dia, quando se olha para os números de violência doméstica, obstétrica, de gênero, entre outras, os marcadores de diferença (cor da pele, situação econômica etc) vão agravando o quanto determinada mulher está sujeita a ter seu corpo violado.
Para exemplificar a questão das construções sociais, vale lembrar que as mulheres negras tinham ainda a função de amamentar os filhos dos brancos, exercendo o papel das chamadas “amas de leite”.
No Brasil contemporâneo, esse grupo é, em grande parte, o que deixa o convívio da própria casa no dia a dia para se dedicar a famílias de classes mais ricas, tendo sua força de trabalho explorada. Mais uma vez, é o corpo feminino ocupando espaços e exercendo funções determinadas pelo jogo social, que é inevitavelmente atravessado por questões econômicas.
E quanto ao papel dos homens?
Voltando aos casos de violência contra a mulher, cabe pensarmos por que eles acontecem e por qual motivo têm se tornado tão frequentes. “Nós temos, sim, uma fonte de violências e violações quando pensamos nas masculinidades hegemônicas. Mas essas condutas também não são naturais; elas estão relacionadas diretamente à maneira como as pessoas são criadas desde pequenas para assumir determinadas posturas”, destaca Marcela.
E se a história é caracterizada por avanços e retrocessos, a pesquisadora não tem dúvidas de que esse é um período crítico para os direitos da mulher. O avanço do pensamento conservador aliado à impunidade são, segundo ela, elementos importantes para o aumento de casos que temos observado. “Em todos os momentos, as conquistas das mulheres foram questionadas, mas agora temos retrocessos expressivos porque eles acabam se dando num plano ‘oficial”’, explica a historiadora.
Retrocesso oficializado
Por fim, Marcela Boni aponta ainda como esse cerceamento se dá até mesmo pelas leis. “Vamos acompanhando ao longo do tempo também o surgimento de legislações que retiram das mulheres o controle sobre o próprio corpo – perpassando virgindade, casamento, contracepção, divórcio, aborto… – de todas as partes da vida”.
É preciso pensar que a elaboração de legislações que eliminam de forma oficial a autonomia sobre nosso corpo e nossa vida também reflete nas atitudes das pessoas. “Essa violência a que estamos assistindo é um disparate absoluto, mas notamos muito rapidamente nas opiniões que circulam a culpabilização da vítima. E isso está se tornando matéria legal também. Por exemplo, a ideia de colocar como condição para balizar os casos de estupro a investigação da vítima”, alerta a pesquisadora.
“A palavra da mulher vai perdendo relevância. É como se a infantilizassem e transformassem esse corpo num espaço público, um espaço que não pertence a ela e que é gerenciado pela família, pelo marido, pelo Estado, pelo corpo médico… Isso fica cada vez mais desesperador à medida que a impunidade é quase uma certeza”, finaliza.
Que futuro esperar?
Para Marcela Boni, a penalização exemplar de casos de violência contra a mulher é urgente para que os números diminuam. Mas é importante pensarmos, também, na forma como educamos as crianças e na sociedade que esperamos deixar para elas. Nos exemplos que damos e nas atitudes aparentemente simples, mas que poderão fazer toda a diferença no futuro. Educar com respeito aos limites, às diferenças e ao corpo do outro – inclusive da criança – é um primeiro passo essencial.