“Ninguém vai poder querer nos dizer como amar”. Este é um trecho da música “Flutua”, de Johnny Hooker e Liniker, que circulou bastante nas redes sociais no dia Dia do Orgulho LGBTQIA+, celebrado em 28 de junho. Ele surge como um mantra para lembrar tanto a quem faz parte da comunidade quanto quem está fora dela de que o amor é livre e os frutos destas uniões são lindos e precisam ser celebrados.
Quem mostra isso em detalhes é o auxiliar administrativo Cleyton Bitencourt, um homem trans, de 26 anos, que se casou com a cabeleira Fabiana Santos, uma mulher trans, de 28 anos. Moradores do Rio de Janeiro, juntos, eles trilharam a jornada de dar à luz Alex, que tem apenas dois meses. A pequena, que já chegou ao mundo com um nome neutro para que tenha a liberdade de ser quem é, foi concebida após seis meses de tentativas entre os pais.
Para que o sonho dos dois pudesse ser concretizado, Cleyton e Fabiana precisaram parar com os tratamentos de hormônios, que ajudam na transição de gênero. O auxiliar administrativo explica que, de início, as mudanças trazidas pela gestação foram desafiadoras, especialmente em relação as mamas, região do corpo em que mais possui disforia (desconforto psicológico devido a não identificação com partes físicas associadas ao gênero oposto).
Com o auxílio da esposa e a busca por ajuda psicológica, as peças foram se encaixando aos poucos e hoje, olhando com carinho para o processo, ele relata: “Ficaram marcas da gestação, mas eu olho para elas e sinto orgulho, porque são sinais de um sonho realizado para nós: o de ter a nossa família”. Em um relato ao Bebê.com.br, o casal conta como tem sido a construção de sua parentalidade desde a gravidez e a maneira com que lidam com os ataques sofridos ao mostrar sua rotina nas redes sociais.
Veja o relato de Cleyton:
“Nós nos conhecemos através do Instagram, de uma publicação que eu fiz e a Fabi comentou. Ficamos um tempo conversando, depois combinamos de nos encontrar pessoalmente e começamos a nos gostar. Logo em seguida, já fomos morar juntos. Foi um período curto, porque foi algo muito intenso o que aconteceu entre a gente.
Eu sempre tive um sonho de ter um filho e a Fabi, quando me conheceu, começou a também ter essa vontade de construir uma família. Então, depois de um ano morando juntos, começamos a conversar sobre a possibilidade e foi quando paramos de tomar nossos hormônios para realizarmos este sonho.
Conseguimos engravidar depois de seis meses e o processo da descoberta foi bem engraçado. Estávamos no trabalho, no salão de beleza da Fabi, conversando e eu estava há quatro dias com a menstruação atrasada. Ela já estava ficando preocupadíssima com isso e começamos a pensar se tínhamos conseguido dessa vez. Foi muito tempo tentando engravidar, fazendo diversos exames e dava sempre negativo.
Dessa vez minha menstruação atrasou e a Fabi comprou o exame digital na farmácia. Fiz o teste no trabalho, voltei para o salão e o entreguei para ela, porque estava tão nervoso que não conseguia olhar o resultado sozinho. Quando vimos que deu positivo, com três a quatro semanas, foi só felicidade e um chororô, porque tínhamos finalmente conseguido construir nossa família.
Como demorou seis meses para eu engravidar, desde que parei o hormônio, tivemos muitas tentativas sem sucesso e estávamos desanimando. E foi justamente quando pensamos em dar uma pausa, para descansar a mente – porque isso mexe com o nosso psicológico -, que conseguimos ter a nossa bebê”.
Marcas que trazem orgulho
“Desde que recebemos o positivo, iniciamos o pré-natal e correu tudo bem. Mas no final da gravidez, quando decidimos ir ao hospital fazer uma ultrassonografia, descobrimos que no dia seguinte já iríamos passar para 42ª semana de gestação.
O meu sonho era ter um parto normal, tanto que assim que assim que eu internei, começamos com a indução para consegui-lo. Infelizmente, meu corpo acabou não correspondendo com o que queríamos, mas para mim estava tudo bem. No final das contas, precisamos ver o que é melhor naquele momento.
Por mais que ela estivesse bem, pois estávamos monitorando-a, ouvindo seu coração, eu já não estava me sentindo bem com todo aquele processo da indução e foi quando optamos pela cesárea. Não era o que eu queria, só que, desde o início, o que mais desejávamos era que nossa filha viesse com saúde e que eu também ficasse bem e foi assim que ocorreu. No hospital, tanto eu quanto a minha esposa fomos muito respeitados como um casal trans e tudo o que aconteceu no parto foi com a nossa consciência.
No início, o meu pós-parto foi complicado. A cesárea é uma cirurgia, então, tive muita dor. Mas a minha esposa ficou em casa, cuidando de mim e da bebê e isso é algo muito bom: eu tive a companhia dela o tempo todo, e isso fez com que eu me recuperasse mais rápido. Com dez dias, eu tirei os pontos e estava tudo ok.
E hoje, o meu corpo está voltando ao seu normal. Com certeza ficaram marcas em relação a gestação, mas eu olho para elas e sinto orgulho, porque são sinais de um sonho realizado para nós: o de ter a nossa família”.
A difícil disforia durante a amamentação
“Além do parto normal, eu também tinha o sonho de amamentar a minha filha, tanto para ter o elo com ela quanto por todos os benefícios que eu poderia passar por meio do aleitamento. Por não ter feito a minha mastectomia antes da gestação, eu consegui amamentá-la durante o primeiro mês dela. Não foi fácil para mim, tanto o processo quanto a minha disforia.
Eu não consegui me adaptar de forma alguma com relação as dores e aos machucados. Tive acompanhamento com a minha doula, fiz uma consultoria para poder tentar de novo, mas eu optei por não mais amamentá-la no peito.
Eu não queria de forma alguma parar a amamentação, por isso, comecei a tirar o leite e dar com a mamadeira. Só que o tempo foi passando, meu leite foi secando e hoje, ela toma fórmula, indicada pela pediatra e está saudável.
De início, foi bem pesado para mim toda esta regressão que eu tive da minha transição para engravidar. Basicamente, tive que voltar a estaca zero. Por estar há um ano com hormônio, eu já conseguia ver a imagem e ouvir a voz que faziam eu me sentir bem. Então, quando comecei a perceber as mudança que estava tendo por causa da parada dele e por conta da gestação, foi bem difícil.
E por mais que eu tenha tentando me preparar psicologicamente para as mudanças que teria com a gravidez, quando elas começaram, não me senti bem. Tive disforia com o meu peito quando ele começou a crescer por conta do leite e com a relação a menstruação também, porque é algo que me incomoda muito, não me faz bem e mexe com meu hormônio.
Mas com o tempo, eu fui conseguindo ressignificar tudo isso, focando que eu estava finalmente realizando o sonho de construir nossa família. Comecei também o acompanhamento com o psicólogo para eu estar bem durante a gestação e consegui depois de procurar ajuda”.
Preconceito? Chega!
“Desde o primeiro dia em que iniciamos o nosso pré-natal até o último dia, em que foi o momento do parto, não sofremos nenhum preconceito pessoalmente. Como somos figuras públicas, compartilhando nossa gestação nas redes sociais desde o início, os ataques que recebemos são mais virtuais.
É o alcance de muitas pessoas e, infelizmente, é muita gente preconceituosa e de mente fechada. Só que elas não nos atingem, porque somos muito bem resolvidos com relação a nossa identidade de gênero e as escolhas que tomamos para as nossas vidas, além de sermos felizes porque vivemos da maneira que nos identificamos.
Quando recebemos algum ataque virtual, costumamos filtrar isso e não trazer para nós o que as pessoas falam. Tem até aquelas que tentamos conversar para explicar, porque muitas são preconceituosas por não entenderem e não conhecerem o mundo LGBTQIA+. Mas quando vemos que a pessoa não quer entender, apenas julgar, simplesmente ignorarmos. Sabemos que são falas que não vão acrescentar em nada na nossa vida”.
Com a palavra, Fabiana:
“Assim como Cleyton, sempre foi um desejo meu construir uma família e a minha elaboração de ser mãe está sendo maravilhosa. Cada descoberta da Alex me faz crer, cada dia mais, que eu acertei na situação e que eu queria isso para mim. Temos alguns obstáculos, principalmente porque eu tenho que sair para trabalhar, mas isso não atrapalha meu carinho de mãe e ela também traz isso para mim, com o sorriso quando eu chego, afago quando falo com ela e isso é precioso.
Desde a gestação, eu conversava com a barriga, brincava, abraçava, ou seja, sempre estava próxima até porque eu precisava construir essa jornada para que, quando ela nascesse, reconhecesse minha voz e soubesse quem eu era na vida dela. E, desde o início, ela me reconheceu.
Antes mesmo dela fazer dois meses, um dia eu cheguei em casa e ela abriu os bracinhos para me receber quando falei com ela. Essa, para mim, foi uma das maiores provas de que ela reconheceu perante toda a situação: de que ela estava na barriga dele, mas sabia que eu era a mãe dela e ela me responde por isso”.
Presença não é só física
“Infelizmente, não tive licença-maternidade, mas tive algumas semanas em casa por causa do lockdown que aconteceu no Rio de Janeiro, durante dez dias. Só que, como dona e empresária, preciso abrir as portas para não fechar meu negócio, mas tenho contornado a situação de uma maneira tranquila.
Eu acordo cedo, a abraço, beijo, converso com ela e, quando consigo, a troco e dou de mamar. Quando posso, venho na minha casa e a vejo um pouquinho, até porque o salão fica a uma quadra e meia do apartamento. O que muitos deveriam saber é que o casal precisa ser presente na vida do filho. Então, eu me faço e estarei aqui em todos os momentos”.