Sem manual de instrução, mas com muitos pitacos vindos de todos os lados, a maternidade é um mergulho no escuro. São muitas as subidas e descidas de cada mês da gestação, as inseguranças e felicidades do nascimento e então o início da criação, em que começamos a aprender a dar as primeiras braçadas. Só que ainda que nos contem dicas para melhorar as noites de sono, a aliviar as cólicas do recém-nascido e tenhamos um papo sincero sobre não precisar dar conta de tudo, algumas descobertas são vividas apenas na prática. E um destes ensinamentos que ninguém nos conta é que o maternar é também uma visita à própria infância.
Quem fala sobre isso é Carolina Valomim, de 37 anos e mãe de três meninas: Giovanna, de 14, Maria Fernanda, de 11 e Ana Beatriz, de cinco anos. A tradutora e assessora para legalização de estrangeiros relata que ao descobrir que a filha do meio é autista, passou a relembrar a própria infância, adolescência, juventude e até mesmo a fase adulta e percebeu que os comportamentos trazidos pela psicóloga da pequena também cabiam para si. Assim, começou a sua jornada em busca do próprio diagnóstico.
Ainda no mesmo ano que Maria Fernanda recebeu o laudo do Transtorno do Espectro Autista (TEA), meses mais tarde, Carolina também foi diagnosticada com a condição. Desde então, sua missão tem sido um mergulho no autoconhecimento para conseguir acolher as filhas e a si mesma – reconhecendo os desafios trazidos pelas comorbidades do autismo no seu maternar e lutando por menos preconceito durante o processo.
Veja o relato dela na íntegra:
“O primeiro diagnóstico de autismo na minha casa foi o da Maria e eu não entendia nada sobre o transtorno. Durante toda a minha vida, eu tinha uma ideia completamente errada sobre o assunto e que infelizmente a maioria das pessoas também têm. É a que vemos nos filmes, ou seja, de uma pessoa tendo uma crise atrás da outra, que fica trancada em casa, não tem nenhum tipo de vida ou que é um ‘gênio incompreendido’.
Por isso, demorei para buscar ajuda e chegar no diagnóstico dela. Ainda que a Maria Fernanda só tenha passado a ter a fala funcional lá pelos quatro anos, ela sempre foi uma criança calma, mas muito tímida, introspectiva. As pessoas diziam que ela iria crescer e essas questões iriam melhorar.
Só que quando ela tinha por volta de sete anos, ela passou de um comportamento completamente pacato para episódios de violência, como quebrar as coisas quando se frustrava e muito choro. Aquilo começou a me incomodar e resolvi escutar minha intuição. Na época, a família não foi muito a favor. Nem meu marido queria que eu começasse a buscar algum tipo de ajuda. Acharam que era exagero, birra de criança, mas eu resolvi pesquisar.
Ela tinha uma questão na fala, em que ela dizia os sons do “s” e do “z” errados. A impressão que eu tinha é que ela tinha língua presa, por isso, o primeiro profissional que eu procurei foi uma fonoaudióloga. Foi muito curioso porque na primeira consulta, ela já saiu falando corretamente.
Então a fono me disse que iria passar alguns exercícios para a Maria fazer em casa, para se acostumar a falar da maneira correta, mas não tinha necessidade dela continuar as sessões já que ela tinha a fala completamente funcional. Ainda assim me recomendou que eu procurasse uma terapia, porque desconfiava que encontraríamos algo”.
O processo de diagnóstico tanto da mãe quanto da filha
“Eu segui o conselho dela e fui atrás de uma psicóloga. A Maria fez em torno de oito, nove meses de terapia, mas era uma profissional que não tinha especialização em autismo. Depois desse tempo, ela me chamou no consultório, explicou que não era a área dela, mas ela acreditava que era TEA. Então, para fechar um laudo, eu teria que procurar um neuropediatra.
Ela já estava com oito anos, quase nove anos, quando o diagnóstico aconteceu em fevereiro de 2019. Só que por tudo que fui aprendendo com o tempo, já que eu tinha sempre que estar em contato com a psicóloga, fui me identificando com o que ela estava me ensinando – porque, apesar de não ser especialista no assunto, ela foi pesquisando para ajudar tanto a minha filha quanto a mim. Isso me fez decidir que eu também precisava descobrir se eu era autista.
Enquanto o diagnóstico da Maria foi em fevereiro de 2019, o meu foi em setembro do mesmo ano. Pesquisei uma psiquiatra por alguns meses, porque não queria dar o azar de encontrar um médico que não topasse este processo. Eu já tinha lido muitos relatos de que era difícil conseguir qualquer diagnóstico na vida adulta se você não fosse um caso severo. Mas encontrei essa especialista que me acompanha até hoje.
Ela fez diversos testes escritos comigo, com várias perguntas, e depois no consultório fomos debatendo as respostas que eu dei nestes questionários que ela me passou. Chegamos no diagnóstico: eu sou autista, tenho Transtorno obsessivo-compulsivo (TOC), depressão (algo que já convivo desde criança), ansiedade crônica e, há três semanas, descobri a fibromialgia.
O meu marido também é autista, mas ele não tem laudo porque não quer ir ao médico. Só que com tudo que aprendemos nessa jornada, ele viu o quanto foi importante buscar ajudar. Inicialmente, ele não queria que eu levasse a Maria em especialistas e tinha os motivos dele. Acho que vergonha da família, mas hoje é tranquilo.
Ele ajudou muito durante a terapia e também aprendeu. Inclusive, ele viu todo o processo e falou: ‘eu sou isso também!’, foi muito engraçado. Perguntei se iríamos ao psiquiatra, ele disse que não queria ir e eu respeito. Mas ele tem estereotipias com as mãos (movimentos repetitivos) e várias outras características, lembro que conversei com a minha sogra e ela foi relatando… Enfim, foi uma descoberta geral e grande para a família.
Agora, estamos iniciando uma investigação também com a minha filha mais nova, que está com cinco anos, porque não sabemos se ela pode ter uma alta habilidade, transtorno opositor ou até mesmo o TEA. Estamos no início do processo, mas mais para frente vamos saber o que ela tem.
Por que era tão importante descobrir o autismo
“O que me motivou foi querer criar uma história diferente. Eu e a minha mãe nunca tivemos uma relação boa. Ela é uma pessoa com uma série de questões psiquiátricas, mas que nunca aceitou tratar e isso refletiu em mim a vida inteira, especialmente no nosso relacionamento. Eu entendi que posso amá-la, mas não preciso conviver com ela, porque não tem como.
Então, primeiro, eu saí do Rio de Janeiro e vim para o Paraná, há nove anos, para me afastar mesmo, porque venho de uma família muito tóxica e queria ter certeza de que teria uma história diferente da minha mãe porque sofri muito com ansiedade, depressão, TOC e não procurava ajuda.
Quando eu comecei a investigar as questões da minha filha, eu vi quanto isso estava sendo bom para ela. Notei como ela evoluiu e ainda está evoluindo, porque continua fazendo terapia. Então, o que me motivou foi ver como essa descoberta estava sendo boa para todo mundo e eu também queria ficar bem, pela primeira vez na minha vida. Queria ficar bem para viver muito, para ver minhas filhas crescendo e eu havia chegado em um limite que não ia mais para frente”.
O maternar de uma mulher autista
“O TOC, uma comorbidade do autismo, faz com que eu seja uma pessoa extremamente medrosa e isso fez com que eu não deixasse com que as minhas filhas fossem realmente crianças. Além do fato de que eu batia muito de frente com a minha mais velha, porque não conseguia entender certas coisas.
Ela é muito vaidosa e eu sou uma pessoa que só agora, com 37 anos, estou querendo variar, mexer no cabelo, fazer unha. Mas roupa, por exemplo, eu tenho dez peças no armário. Então, eu via minha filha pedindo maquiagem, roupas e achava um absurdo. Isso me irritava um pouco. Ela dizia que eu não a entendia, ficava chateada comigo, eu com ela ,e no fim das contas é só respeitar. Depois do diagnóstico, nosso relacionamento melhorou muito.
E sobre os meus medos, ainda bem que o meu marido gosta mais de aventura. Ele sempre quem me encorajou muito, porque realmente sempre fui muito medrosa, de não querer deixá-las fazer nada, não ir a lugar nenhum por causa da minha ansiedade e isso influenciou bastante na minha maternidade”.
A representatividade na internet
“Depois do diagnóstico, eu também entendi o quanto era importante falar sobre o assunto, porque ainda existe muito preconceito e falta de informação. No meu Instagram, eu tento passar meu dia a dia, as minhas experiências de forma leve. Só que nem sempre falamos de coisas boas, afinal, temos dias ruins, mas é a vida real. É uma missão para mim desmistificar tudo que existe em torno do autismo, que nem eu mesma sabia”.