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Cartas para minha filha

Jornalista e editora do Bebê.com.br, Fernanda Tsuji guarda cartas para o futuro, colecionando textos para sua filha Cecília ler quando for mais velha.

Ser mãe é ter duas chances de morrer na vida

Mas é também ter a sorte grande de uma trajetória acompanhada - e vale cada segundo, filha.

Por Fernanda Tsuji
Atualizado em 4 mar 2022, 16h28 - Publicado em 27 fev 2022, 14h00
Ilustração de mãe e filha caminhando na chuva
 (Arte: Bebê.com.br / Ilustração: Tetiana Garkusha/Getty Images)
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Devia ser umas 4h da manhã, porque o céu já não estava absolutamente escuro. Eu te peguei no colo para amamentar, nós duas silenciosas na madrugada. Ali, com você nos braços, eu me dei conta de que estava arrependida de ter escolhido a maternidade. Lembro de olhar pra você e pensar: “caramba, agora eu tenho duas chances de morrer na vida”.

Se fosse um filme, neste momento, o time de efeitos especiais faria um raio cair no sofá de casa. Este insight na sua primeira semana de vida – a primeira minha também na vida de mãe – me atingiu como um meteoro e nunca mais me abandonou.

Porque, filha, nunca mais eu fui só eu. E olha que eu tento separar bem nós duas, dar limites, respeitar suas particularidades, deixar você caminhar sozinha, manter os meus interesses solo. Mas a verdade é que este mundo que eu habito não pode existir mais sem você nele. E esse pensamento romântico me é catastrófico, porque me dá muito medo. E eu, veja só, tão destemida, me encontrei vulnerável depois da maternidade por estar atrelada para sempre a uma felicidade que não é mais só minha.

Uma vez que você existe, eu não consigo mais desver a realidade sem você. É como um show de mágica que você descobre o truque e nunca mais consegue assistir o número com os mesmos olhos. A vida me foi descortinada pela sua chegada.

Por isso, só o vislumbre do que poderia ter acontecido naquele dia da enchente já faz meus joelhos dobrarem. Você ainda se lembra? Eu vou te contar, caso você tenha esquecido, mas não se concentre no acidente, mas no depois. Eu vou te explicar o porquê.

Eu tinha te levado ao museu pela primeira vez. A pandemia nos roubou alguns marcos e por isso, tardiamente, eu fui te apresentar um dos meus passeios favoritos. Na volta, pegamos uma chuva muito forte. Por brincadeira, eu propus da gente correr até o carro e entramos molhadas e gargalhando. “Ah, que aventura, né, mamãe?”, você disse. A gente nem imaginava o que iria acontecer depois.

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Na avenida pertinho de casa, nosso carro foi surpreendido por uma enchente. E foi rápido, veloz e assustador. Em segundos, nosso carro já estava boiando e sendo arrastado pela água, bem ao lado de um rio. Você e a sua tia, minha irmãzinha de 9 anos, só perceberam que estávamos numa situação de risco quando eu e seu pai já estávamos em pânico. E a vida, filha, ela acontece por um triz. Seu pai segurou a minha mão, me olhou fundo nos olhos e avisou que a gente tinha que sair do carro.

Me deu muito medo, mas o pavor de te perder foi maior. Avassalador. Então foi o tempo de olhar ao redor, tentar planejar minimamente para onde caminharíamos, pegar vocês no colo, abrir a porta, a água entrar com força e levar o carro embora.

Lembro que te apertei forte contra o meu corpo e fiquei repetindo num mantra involuntário “mamãe-está-aqui-mamãe-está-aqui”.

(A ironia – a vida é cheia delas, Cecília – é que eu sempre amei dias de chuva. Nuvens, gotas, raios e trovões. Comecei a namorar com seu pai num temporal e achei que aquilo era um sinal. No nosso casamento, pequenos guarda-chuvas decoravam nosso altar. Huh, olha só a vida, né, filha…)

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Nós quatro ali, no meio da rua, na chuva, encharcados, mas vivos. Acabou a luz no bairro todo e tivemos que voltar pra casa no escuro, subir 15 andares e tomar banho gelado. Eu tentei esconder os meus soluços te fazendo muitas perguntas sobre como você estava, se precisava de algo e você, sempre tão conectada, percebeu. “Mamãe, eu tô aqui. Acalma, foi só o carro, deixa, deixa…”, disse você, passando a mão nas minhas costas e agarrando um travesseiro que você se orgulhou de ter salvado da enchente.

E a cada andar no prédio, segurando uma lanterna, a gente repetia um novo mantra “meninas-corajosas-meninas-corajosas”. “Aguenta só mais um pouco, mamãe, já estamos quase chegando…”, você dizia, a cada vez que eu tentava sentar na escada com os joelhos trêmulos. Sua mãozinha na minha. Você não desistiu de mim, não me deixou ficar pelo caminho – e eu sei o quanto você estava assustada no escuro.

Em casa, você abraçou seu pai, exausto, e acalmou ele também. Estávamos ali, enfim. Vocês adormeceram agarrados e eu continuei em choque, sentada no chão da sala. Minha sensação era que em alguma realidade paralela, o filme tinha sido outro, que já não estávamos mais aqui.

Era o trauma fazendo um barulho ensurdecedor de água batendo na lataria do carro.

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Para você que me salva de mim

O dia seguinte continuava nublado. Se tem uma tarefa hercúlea no exercício da parentalidade é olhar com atenção para os filhos, mesmo nos dias em que você não tem condição nenhuma. Eu sei, a gente precisa estar bem para ajudar o outro (colocar a máscara de oxigênio em si antes de colocar na criança), mas eu julguei que eu precisava ajudar você e a minha irmãzinha a elaborar o que tinha acontecido – ao mesmo tempo em que eu também tentava internalizar.

Agora em retrospecto, não sei se foi bom ou ruim, mas a maternidade tem esse tanto que é de intuição, de erro e acerto pelo caminho, de teste cego. Quero pensar que foi a coragem silenciando o medo outra vez: vesti capa de chuva em vocês e fomos almoçar aqui perto, caminhando na chuva. Vocês me fizeram mil perguntas sobre a enchente, mas conseguiram rir no caminho até o restaurante. Ressignificar, sabe?

Durante semanas, você sonhou com enchente, com água invadindo nossa casa, levando seus brinquedos embora. A gente conversava todas as manhãs sobre isso e, aos poucos, os pesadelos foram ficando mais espaçados. Dia após dia, consertando um pedacinho por vez, juntas. Eu não desisto de você e não deixo você ficar pelo caminho.

Hoje, você voltou da escola com um desenho. “Essa é história da nossa vida, mamãe”. Os quadrinhos mostravam você pequena chorando no berço, eu te acalentando; depois nós duas de mãos dadas na adolescência (torcendo para que assim seja, apesar de saber que dificilmente será), você me mostrando minha neta; no último quadrinho, nós duas velhinhas, com rugas e sorrindo.

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Se fosse um filme com final feliz, aqui poderiam entrar flashes da vida passando diante dos meus olhos de trás pra frente com uma trilha sonora emocionante. A gente sorrindo com rugas <<< takes da gente envelhecendo de mãos dadas <<< uma aventura com enchente no meio <<< você correndo num parque <<< nós duas na sala de casa enquanto você mamava. O raio caindo no sofá.

Se fosse uma edição bem caprichada mesmo, o eu de hoje poderia sussurrar no meu ouvido de mãe insone às 4 da manhã de 2016: “Sim, Fernanda, são mesmo duas chances de morrer na vida… Mas também é oportunidade de uma vida acompanhada”.

É a chance de poder construir o destino à quatro mãos, com medo, mas também com uma coragem que surge nos momentos mais estranhos, porque temos um amor para preservar vivo. Com sorrisos – e rugas, se tudo der certo. E, ei, no final, isso é sorte dupla, não é, filha?

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