A reta final de uma gravidez traz, em geral, várias preocupações. Como vai ser o parto? O bebê continua mexendo? Será que é contração? A possibilidade de descobrir um câncer de mama não costuma ser uma delas, mas foi o caso de Juliana Dias, de São Paulo (SP), que recebeu o diagnóstico no oitavo mês de gestação. Ela já tinha um bebê, Heitor, na época com 2 anos, e estava pronta para dar à luz o segundo, quando sua vida virou de cabeça para baixo.
Em um depoimento exclusivo, ela conta como descobriu que tinha um tumor maligno poucas semanas antes do parto, a luta para conseguir esperar seu bebê nascer antes de iniciar o tratamento, as dificuldades físicas e emocionais de ser mãe de dois, incluindo um recém-nascido, enquanto trava uma batalha contra um câncer avançado e reúne forças para lutar pela própria vida todos os dias.
“Meu primeiro filho, Heitor, tinha 1 ano e 5 meses quando descobri que estava grávida novamente. As duas gestações foram bem-vindas, mas nenhuma foi planejada. Comecei a desmamar o mais velho porque eu me sentia muito cansada. Lá pelo terceiro, quarto mês da gestação, comecei a notar um caroço na minha mama esquerda. Achei que era leite empedrado porque eu tinha muito leite e demorou para secar.
Fui seguindo. Quando eu estava, mais ou menos, com seis meses, o caroço aumentou de tamanho e endureceu. Antes, ele se movia. Comecei a achar estranho e comentei com a obstetra. Ela fez um exame físico e achou melhor pedir um ultrassom. Fui fazer o exame quando já estava quase completando sete meses. Ainda achava que era leite empedrado. O câncer nem passava pela minha cabeça.
Durante o ultrassom, a médica falou que eu estava com um nódulo e já me informou de que não se tratava de leite empedrado. Tinha um na axila também, que não era palpável. Ela recomendou que eu buscasse um mastologista com certa urgência. Ainda sem entender, fui e ele pediu uma biópsia. Quando eu estava com sete meses e meio de gestação, fiz a biópsia e, aí, veio o resultado: era uma neoplasia maligna.
O primeiro baque da notícia
A princípio, você não quer admitir. Meu médico já não tinha dúvidas, mas pediu uma segunda biópsia, para eu acreditar. Fui fazer o exame, com muita esperança de que o primeiro estivesse errado, mas o resultado era o mesmo. Eu já estava com oito meses. Fui em busca de outro mastologista, ainda sem acreditar. Eu não conseguia aceitar o diagnóstico.
Passei por uns oito médicos. Em uma dessas consultas, uma mastologista olhou todos os exames que eu tinha feito e disse: ‘Olha, eu sei que é muito difícil. É a primeira vez que uma grávida de 8 meses, com a barriga já enorme, entra na minha sala com resultados de exames assim, mas esse diagnóstico já está fechado, você está com câncer de mama em estágio avançado. Como você já está com nódulo na axila, provavelmente está disseminando. Você precisa tirar o bebê com urgência para começar o tratamento de quimioterapia, porque o seu caso é um câncer de mama estágio 4 e já começamos a ter menos recursos de tratamento’.
Foi muito difícil. Eu estava com meu marido na consulta. Quando saímos, entrei em pânico. Eu precisei que essa médica me olhasse nos olhos para falar e, ali, eu entendi que realmente estava doente e que a situação era muito séria. Essa consulta foi em uma terça-feira e ela sugeriu que eu tirasse o bebê na quinta-feira da mesma semana.
À espera do parto
Eu sempre tive muito na cabeça que queria um parto humanizado, normal, natural. Foi assim com meu primeiro filho, quando fiquei 22 horas em trabalho de parto. Eu queria fazer o mesmo pelo segundo. Por mais que os médicos falassem que eu tinha que fazer cesárea com urgência para começar a quimioterapia, eu não conseguia aceitar trazer meu filho ao mundo, diante do que enfrentaríamos juntos, sem ser no tempo dele. Contra todos os médicos, em um cenário caótico, eu optei por aguardar a vinda do meu bebê de forma normal, quando ele quisesse nascer.
Foi um período muito difícil. Já sabíamos do diagnóstico, então fui fazer fotos do ensaio de gestação com isso na cabeça. Comunicamos à família e a alguns amigos mais próximos. Tínhamos muita incerteza do que estava por vir. Os médicos faziam uma pressão muito grande para eu fazer a cesárea e começar o tratamento. Eu entendia o lado deles de querer fazer dar certo. Quanto mais eu atrasava, mais risco eu corria. Mas aguardei e Igor resolveu nascer com 41 semanas, aos 45 do segundo tempo.
Eu ia à obstetra uma vez por semana, fazia caminhada, minha médica dava dicas de como estimular o trabalho de parto. Mas, de certa forma, o Igor veio quando eu tive tempo de me preparar. Foi um parto muito bonito.
A bolsa rompeu em casa. Quando cheguei no hospital, com uma hora e meia ele nasceu, no chão do banheiro. Cheguei com 6 dedos de dilatação, mas a médica achou que teria um tempo até a dilatação total. As enfermeiras estavam preparando a sala e eu fui usar o banheiro. Quando vi, ele estava coroando. Gritei pelo meu marido, que acionou a equipe médica. Quando elas chegaram, só seguraram, porque ele já estava caindo. Eu estava de cócoras e Igor nasceu sem eu precisar fazer muito esforço. De certa forma, atendia a um pedido meu. Eu pedia muito a ele para não sofrer no parto, porque já estava muito sofrido, para mim, saber o que eu ia enfrentar depois do nascimento. Ele me ajudou muito. Costumo dizer que ele fez o parto sozinho; não tive quase nenhum esforço.
Tudo isso aconteceu na madrugada de sábado para domingo. Na terça-feira, tive alta e, na sexta-feira dessa mesma semana, eu estava com o oncologista, assinando os papéis para começar a quimioterapia. Eu estava no pós-parto, de resguardo, com um recém-nascido em casa, com a notícia de que eu não poderia amamentar aquele bebê, que, para mim, também era algo de suma importância.
O início do tratamento
Minha rede de apoio era minha sogra, que ia ficar com ele. Foi muito complicado deixá-lo para fazer quimioterapia. Ainda assim, fugi desse processo durante um mês. Os médicos ficavam desesperados. Meu oncologista ligava uma vez por semana. Ele falava: ‘Juliana, você precisa fazer a quimioterapia, precisa tratar o seu câncer, está em estado avançado, você está correndo risco de morrer’. E eu falava: ‘Eu tenho que ficar pelo menos um mês com o meu filho, eu tenho que curtir pelo menos um mês para que eu possa sentir o que é ser mãe, porque eu sei que, depois que eu começar a quimioterapia, vai ser muito difícil’. Eu queria amamentar pelo menos por esse período, para que ele pudesse sentir que eu sou a mãe dele e para que pudéssemos nos reconhecer. Segurei, mais uma vez, enfrentando toda a equipe médica. O Igor completou um mês no dia 13 de outubro e eu comecei a quimioterapia no dia 15.
Foi um momento muito difícil. Eu tive que entregá-lo para a minha sogra e ir para o hospital com o peito vazando para fazer a primeira quimioterapia. Fiz oito ciclos, a cada 15 dias. Eu tomava a quimio, passava uma semana muito mal e, quando estava me recuperando, já tinha outra sessão. Foi um período de muita dor.
Ao mesmo tempo em que eu queria ser a mãe que acolhia o filho quando ele chorava de madrugada, a mãe que amamentava, meu peito jorrando de leite… Eu não podia porque estava com os remédios. Eu o ouvia chorar de madrugada, mas não conseguia levantar. Cada parte do meu corpo doía, passava mal, sentia enjoo. Quem fazia esse papel era meu marido e minha sogra. Para pegar meu bebê no colo depois da quimio, eu tinha que ficar sentada, porque, se ficasse em pé, caía com ele, de tão fraca que eu estava e, mesmo sentada, conseguia ficar por pouco tempo. Ele chorava e eu chorava junto, porque eu não conseguia consolar, não tinha forças.
A convivência com a depressão
O mais difícil de todo o processo do tratamento do câncer era saber da falta da mãe que meu filho merecia ter naquele período. Ele tinha acabado de chegar no mundo e eu não era a mãe que ele precisava e que eu gostaria de ser. Eu era uma coadjuvante na vida dele. Eu não conseguia fazer nada por ele naquele momento, quando ele mais precisava de mim.
É uma das dores que tenho em relação ao câncer até hoje. Uma das coisas que a doença me tirou foi esse primeiro ano com o meu filho. Eu mal lembro, porque estava no modo sobrevivência. Meu marido fala para mim: ‘Você não aceita o câncer’. Ninguém aceita o câncer. A gente se adapta ao que tem que ser feito para estar vivo, mas eu, em específico, tenho muita mágoa pelo fato de a doença ter me privado do meu filho quando ele mais precisou.
Fiz o último ciclo da quimioterapia no dia 22 de janeiro de 2021. O Igor tinha 4 meses. No dia 19 de fevereiro, fiz a cirurgia da retirada da mama (tive que retirar a mama inteira, por conta do tamanho do nódulo e pelo fato de ele já ter migrado para a axila). Foi mais um processo. Para mim, foi difícil, como mulher, aos 37 anos, me ver mutilada. Entrei na sala cirúrgica, deixei meus filhos em casa com a minha sogra, achando que eu não ia voltar. Eu me despedi deles e do meu esposo como se eu não fosse voltar, porque eu estava com uma sensação de morte naquele momento.
No entanto, a cirurgia passou e eu comecei as sessões de radioterapia. Nesse período, tive meu primeiro encontro com a depressão. Diante de tudo o que estava acontecendo na minha vida, liguei o modo sobrevivência, porque eu tinha um recém-nascido e outra criança pequena em casa, então, eu não tinha parado para sentir o que estava acontecendo. Eu estava fazendo tudo que os médicos me propunham e enlouquecidamente tentando achar a sobrevivência, mas, quando passou a cirurgia, foi como se a ficha tivesse caído. Entrei em um período de depressão profunda.
Cheguei a fazer vídeos de despedida para os meus dois filhos. Conversava com amigas próximas e pedia para elas falarem de mim para eles, porque eu tinha muita certeza da morte. Meu oncologista me recomendou passar com psicólogo e psiquiatra. Mesmo diante de toda essa dor, eu não deixava de fazer o tratamento. Por mais que achasse, durante o período de depressão, que eu ia perder minha vida para essa doença, eu continuava lutando.
Uma etapa ainda mais difícil
Aí, começamos a hormonioterapia. Isso foi em abril de 2021. Minha vida ficou de ponta cabeça. Foi pior do que a quimioterapia. Eu tinha uma ideia muito forte de que, quando chegasse essa fase, tudo seria mais brando. Mas não. Minha cabeça e meu corpo entraram em conflito. A hormonioterapia me faria entrar em uma menopausa precoce. Meu corpo de 38 anos não entendia que eu tinha que estar na menopausa. Foi enlouquecedor. A depressão me abraçou muito mais forte. Os efeitos colaterais foram muito severos. Precisei de muita ajuda médica, de psicólogo, de psiquiatra e da rede de apoio, das pessoas próximas, do meu marido, principalmente. Foram uns 2, 3 meses dessa forma, até meu corpo estabilizar.
Então, em setembro de 2021, quando o primeiro diagnóstico completou 1 ano, senti uma dor muito forte na lombar e travei. Não conseguia andar. Foi uma das piores dores que eu já senti na minha vida. Fui fazer todos os exames e descobri que era uma recidiva da doença na vértebra L3. Ouvi do médico que eu entrava em um quadro de paciente metastático, ou seja, o câncer tinha se espalhado. Não se falava mais de cura, mas de controle da doença. Foi um baque muito grande para todos. Para mim, era como se aquilo que eu já sentia antes estivesse se concretizando: eu ia morrer.
Por isso, foquei mais ainda em ensinar meu filho mais velho a ser mais independente, corri para desfraldá-lo, corri para fazer o máximo de lembranças para o Igor, tirei muitas fotos nossas, minhas, fiz vídeo, fiz áudio. Eu achava que não teria mais tanto tempo com eles. Segundo o médico, 50% dos pacientes no cenário em que eu estava não passavam de quatro anos de vida. Aquilo só reforçou ainda mais que meus momentos com meus filhos e com a minha família estavam chegando próximo do fim.
Até hoje, na verdade, tenho momentos assim. Agora vai fazer três anos. Sigo na hormonioterapia, que será para o resto da minha vida. Tenho que fazer exames de controle a cada três meses para ver se há alguma atividade tumoral no corpo. Converso muito com a minha rede de apoio e com os médicos para tentar manter o equilíbrio e não desistir.
Motivação para continuar
Morro de paixão pelos meus dois filhos. Eles são a minha âncora. Tenho duas pessoas que me fazem levantar e lutar todos os dias – e são eles. Tudo o que peço para os céus é que eu envelheça, porque a velhice, para mim, significa que vou olhar para eles, guiá-los nessa vida, vê-los crescer, participar da vida deles, ver os homens que vão se tornar.
A luta é essa, controlar a doença para que ela não se manifeste no meu corpo e tentar retomar minha vida, que ficou dois anos parada. O aniversário do meu filho mais novo sempre vem acompanhado do aniversário do diagnóstico do câncer, então, é um gatilho muito forte. Outra batalha é também para não deixar que isso tire o brilho de celebrar a chegada do meu filho. Com certeza, se não fosse pelos dois, eu talvez não estivesse aqui contando essa história. Hoje, o que os médicos propuserem, o que for necessário, independentemente do efeito colateral que tenha, se isso significa estar aqui com eles e vê-los crescer, eu farei.
A batalha pela vida
Hoje, tenho percepção do quanto é importante saber das histórias de pessoas que passaram pela situação. A gente sempre acha que só acontece com o outro. Nada da medicina atual justifica esse câncer em mim. Eu fiz um exame de genética e deu negativo. Não tinha nenhum gene que justificasse o câncer aos 37 anos, não tenho histórico familiar, não sou obesa, não sou fumante, bebida alcoólica, só socialmente, sempre me alimentei bem, sempre fui uma pessoa ativa, não era sedentária, amamentei, tive filhos. Sou totalmente contra o protocolo que justifica o câncer. O câncer não tem rótulo. Não é só quem tem histórico. Isso não existe. Quanto mais jovem você tiver essa noção de autocuidado, conhecer seu corpo, prestar atenção nos sinais, por mais sutis que pareçam… Se tem alguma coisa diferente, vá investigar, porque, quanto mais cedo se descobre, maior a chance de um resultado positivo de cura.
Minha batalha agora é para o resto da vida porque minha chance de cura já era muito pequena e, com a recidiva, se tornou zero. Claro que eu acredito em milagre. Talvez, eu nunca ouça que estou curada, mas também não ouça que estou com câncer em alguma parte do meu corpo. Todos os meus resultados de exames desde que descobri a doença em 2020, vieram com atividade tumoral. O último que eu fiz, em julho, foi o único que veio sem. Vou repetir agora em novembro.
Foi uma luta muito grande chegar até com as dores e a mudança de vida que a doença traz. Teve a queda de cabelo também. O câncer é muito ingrato. O de mama, especificamente, é muito injusto com a mulher porque ele tira toda a sua imagem de referência de feminilidade. Eu me olhava no espelho sem cabelo, sem cílio, sem sobrancelha, magra, com a pele ressecada, com as unhas azuladas, a palma da mão e a planta do pé ficaram com manchas pretas. É uma autoimagem muito ruim, tira sua autoestima. Você se perde, é muito complicado. Mas eu tinha duas pessoinhas aqui em casa e, por mais que eu sofresse, e sofri muito, ainda eram meu foco. Era para eles que eu olhava e falava: ‘Eu tenho que ficar aqui, não é minha hora ainda, eu não aceito. Não tive dois filhos para deixar outras pessoas criarem, eu vou fazer esse papel, eu estarei presente na vida deles. Esse é meu mantra todos os dias. Eu vou estar presente”.