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Tempo de tela: combinados realistas para fazer com as crianças

Celular, tablet e outros gadgets podem ser usados de maneira positiva, desde que com limites e supervisão. Saiba como estabelecer regras e acordos.

Por Vanessa Gomes
18 Maio 2022, 10h11

Nada de telas para menores de 2 anos e uma hora diária para crianças entre 2 e 5 anos. As orientações da Organização Mundial de Saúde (OMS), seguidas também pela Academia Americana de Pediatria (AAP) e pela Sociedade Brasileira de Pediatria (SBP), entre outras entidades médicas e por especialistas de todo o mundo são cristalinas. E pareciam até bem razoáveis para boa parte das famílias. Mas aí… Uma pandemia aconteceu

Então, foi nas telas que muitos pais – sem rede de apoio por perto, por conta do distanciamento social – tiveram de contar com a distração das telas para conseguir equilibrar o restante das tarefas, como trabalho, comida e cuidados com a casa, entre outros. As aulas, inclusive, passaram a acontecer por meio dos dispositivos eletrônicos. Contato com os avós? Só por videochamadas. Festa de aniversário? Pelo Zoom. 

E agora, que a vida vai, aos poucos, retornando, com a escola presencial, saídas liberadas para parques, pracinhas e outros passeios, trabalho, pais, casa dos avós… Como voltar atrás e estabelecer acordos com limites saudáveis e que funcionam de verdade? Foi o desafio da escritora especialista em educação e podcaster norte-americana Anya Kamenetz. Autora do livro The art of screen time: digital parenting without fear (“A arte do tempo de tela: parentalidade digital sem medo”, em tradução livre), que ainda não tem edição em português, ela viu todo o seu conhecimento sobre o assunto se esvair diante da crise global causada pelo coronavírus. 

“Eu era uma especialista em tempo de tela. Então, o coronavírus aconteceu” foi o título de um artigo que ela escreveu para o New York Times sobre o tema. Realmente, o mundo virou de cabeça para baixo – para os pais e para as crianças. “Tínhamos muito menos controle ou capacidade de estabelecer e impor limites enquanto as crianças estudavam online e tínhamos menos opções para atividades seguras. É possível manter alguma flexibilidade enquanto encorajamos um equilíbrio melhor”, disse ela, em entrevista exclusiva ao Bebê.

Duas meninas segurando celular
(Arte: Bebê.com.br / Foto: puhimec/Getty Images)

Nem sempre as vilãs

Se tem algo que pudemos aprender na pandemia, ainda que forçadamente, é que as telas também podem salvar nossa vida. Não para substituir a supervisão humana, é claro, mas como intermediária e até facilitadora das relações. Ainda bem que a internet existia para possibilitar o trabalho e a educação de maneira remota. Mesmo que tenha sido um caos, foi o que nos permitiu sobreviver durante esse tempo todo. Também foi graças à tecnologia que pudemos conversar e ver amigos e familiares que não moram na mesma casa, quando visitá-los não era prudente. Sem falar na transmissão de acontecimentos importantes em tempo real… Quantos aniversários, chás de bebê e até partos foram compartilhados dessa forma, quando era a única opção?

O uso das telas para crianças também pode ser muito útil, além de tudo isso, mesmo fora do contexto pandêmico. “Usando telas, minhas filhas estudam francês, desenham, compõem músicas, fazem vídeos, fazem ioga, dançam, ficam em contato com os avós e pesquisam temas que as interessam, de matemática à astronomia. Muitas vezes, procuramos algo que surge durante uma conversa, por exemplo: ‘um bicho-da-seda é uma lagarta?’”, exemplifica Anya.

Criança pequena tendo aula à distância
(ozgurcankaya/Getty Images)

Em busca do equilíbrio

Mas, como, afinal, encontrar a medida certa? É impossível fingir que as telas não existem em uma geração que já nasceu conectada, mas também não dá para permitir os excessos, sob pena de prejudicar o desenvolvimento. “A primeira infância, que vai de zero a 7 anos, é a idade em que mais ocorrem sinapses em nosso cérebro. É nessa fase que construímos a base do que será toda a vida daquela criança. Portanto, quanto mais ela for exposta a diferentes experiências, melhor ela será no futuro”, explica a psicóloga e educadora parental Aline Hessel, da Clínica Theia (SP). “Brincar ao ar livre, ter contato com a natureza, explorar texturas, cheiros, cores diferentes, ter vínculo com os pais… Todas essas são experiências bem diferentes da passividade de ficar diante de uma televisão ou celular. Somado a isso, existe a sensação de prazer que as telas proporcionam, portanto, colocar regras e limites para seu uso é fundamental para crianças e adultos”, complementa. 

E esse limite nem sempre é estabelecido pelo tempo. É preciso pensar na qualidade do conteúdo, considerar a idade das crianças, a rotina, a forma de usar, enfim, todo um contexto. “Acho que o tempo não é o melhor ou o único padrão a ser usado. Precisamos olhar para todo o quadro da vida da criança, incluindo sono, tempo ao ar livre, leitura e brincadeiras físicas e o tempo que ela passa com a família. Além disso, os limites de conteúdo são tão importantes quanto o tempo. Não vejo problema se uma criança ficar cinco horas jogando seu videogame favorito em uma festa com os amigos, se puder guardar as telas facilmente em outros momentos”, opina Anya.

 Para Aline, há três pilares a se considerar na hora de estabelecer os limites de uso de telas em casa. Primeiro, a idade da criança, já que uma criança de 2 anos tem necessidades diferentes de uma criança de 6 ou 8. Em segundo, vem o conteúdo que é consumido. “Há alguma interação, aprendizado, contribui com a exploração que a criança tem fora das telas, como, por exemplo, compreender o espaço ou os animais do fundo do mar? Ou ela simplesmente consome programas que não oferecem nada, além de distração?’, questiona. 

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Por último, segundo a especialista, é preciso pensar também no contexto em que os dispositivos eletrônicos estão sendo usados. “Ela está assistindo a um filme com a família ou está sozinha no celular? Está fazendo uma ligação para familiares e amigos distantes? Porque isso também é considerado tempo de tela, mas não está na mesma categoria de consumir vídeos aleatórios na internet. Da mesma forma, se uma criança está estudando, por exemplo, seria adequado considerar esse período como “tempo de tela”, restringindo, posteriormente, o uso no lazer? É necessário avaliar esses três pilares e suas complexidades, além dos impactos das telas no dia a dia da criança e seus familiares”, recomenda.

Pai e filha lendo no tablet
(SolStock/Getty Images)

Bandeira vermelha

Mais importante, também, do que as regras em si é observar como elas estão impactando seu filho na prática. Alguns comportamentos devem acender um alerta para os pais e mostrar que algo não está bem. “Se uma criança está obcecada com seu aparelho eletrônico e não se interessa por mais nada, não consegue respeitar limites, se isso está interferindo na escola, no sono e nos relacionamentos, você tem um problema. Crianças que estão lutando temporariamente com depressão ou ansiedade podem enterrar seus sentimentos nas telas. Então é preciso tratar o problema”, pontua a escritora norte-americana. 

“As telas têm um impacto no cérebro semelhante ao das drogas, podendo gerar vício e abstinência”, lembra a psicóloga Aline. “Se seu filho tem preferido ficar nas telas em vez de fazer qualquer outro programa oferecido, se ele demonstra irritação ao ficar longe dos dispositivos e se isso tem limitado socialização, estudo e lazer, podemos pensar que a relação tem mais prejuízos do que benefícios. Cabe aos pais colocar limites diferentes no uso”, orienta.

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Criança assistindo tablet na cama
(Arte: Bebê.com.br / Foto: Ioannis Tsotras/Getty Images)

Como estabelecer acordos que funcionam?

Não há uma receita pronta. Cada criança e cada família tem seu modo de funcionar. Para Anya, que tem duas meninas, os limites não são totalmente definidos pelo padrão de tempo. “Elas ficam algumas horas assistindo a vídeos ou vendo televisão aos sábados. O restante é limitado a aplicativos educacionais e audiolivros, mesmo assim, não mais que cerca de uma hora por dia”, relata. Para ela, o equilíbrio com as outras partes da vida é mais importante que o relógio. “Você brincou lá fora, fez sua lição de casa e suas tarefas, praticou piano e manteve sua hora de dormir, então, tudo bem”, conta. 

“Acho que um acordo bem sucedido depende absolutamente da participação do seu filho. Eles precisam entender as razões pelas quais você está colocando aqueles limites”, aponta. 

Mudar um hábito de cada vez. “Comece com a hora de dormir e dê um incentivo. Se a criança entregar o dispositivo para você todas as noites por uma semana sem discutir, ela receberá uma recompensa. Leva três semanas para criar um novo hábito”, sugere. “Conheço pais que realmente ficam desesperados e trancam o videogame no carro ou mandam a criança para um acampamento no deserto. Táticas duras, provavelmente, não vão durar e, em alguns casos, podem até prejudicar a confiança de seu filho em você”, ressalta. 

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Aline lembra que é preciso dividir as situações. Há famílias que já estão enfrentando o uso excessivo de tela, sobretudo no contexto pós-pandêmico, e outras cujas crianças estão começando essa descoberta. No primeiro caso, segundo a educadora parental, a diminuição deve ser gradativa. “Os pais também precisam se esforçar para proporcionar alternativas para a substituição desse hábito. Saídas em família, passeios interessantes, encontros com os amigos, jogos em casa… Não basta apenas tirar o celular”, recomenda.

Para ela, também é importante conversar com a criança sobre essa conscientização e dizer que, apesar de ser gostoso usá-las, as telas podem fazer mal”, pontua. Já no segundo caso, é mais importante estabelecer o horário, o tempo de uso e o conteúdo. Um detalhe importante: “Mais do que as crianças, os pais precisam ser conscientizados, porque o silêncio e a tranquilidade que o uso de telas pelas crianças proporcionam pode ser tentador aos pais”, diz ela.

Menina brincando no parque - autismo
(ziggy_mars/Thinkstock/Getty Images)

 Faça o que eu digo, não faça o que eu faço?

E por falar em pais… O limite deve começar por você. A relação que seu filho terá com as telas também é inspirada no que ele vê do seu comportamento. Então, não adianta proibir o uso dos aparelhos em casa e não desgrudar do seu celular na hora do jantar, de conversar, de colocar a criança na cama, entre outros momentos. “Essa hipocrisia é um grande problema. Sugiro que todos os membros da família tentem se responsabilizar. Você pode colocar os telefones em outra sala. O jantar e a hora de dormir não duram muito, nem a infância, então faça o seu melhor para fazer uma pausa e se concentrar um pouco”, finaliza Anya. 

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