Por que palmadas e gritos não ajudam (e ainda atrapalham!)
Mais de 30% dos pais e cuidadores acreditam que bater e gritar são medidas necessárias. O efeito, segundo especialistas, é o contrário
Vários estudos já mostraram que usar a violência – seja ela física ou emocional – na educação das crianças traz resultados negativos, que podem, inclusive, reverberar para sempre na vida dos filhos. Ainda assim, é grande o número de pais e cuidadores que acreditam que gritos e palmadas são necessários para a educação: mais de 30%, segundo o projeto PIPAS – Primeira Infância para Adultos Saudáveis*.
De acordo com os dados desse levantamento, que avaliou diversos aspectos da primeira infância, a cidade de Porto Velho, em Rondônia, tem o índice mais alto de adultos que afirmam fazer uso da disciplina punitiva no Brasil: 49% dos pais e cuidadores admitiram achar as palmadas importantes. Já Rio de Janeiro e Porto Alegre se destacaram como as capitais que mais usam os gritos, com 40% e 39%, respectivamente.
“O uso de violência em nosso país ainda é uma realidade bastante alarmante”, afirma Marina Fragata, diretora de Conhecimento Aplicado da Fundação Maria Cecília Souto Vidigal (FMCSV).
Para ela, a permanência das práticas punitivas com crianças é um fenômeno social e multicausal, que vai desde referências culturais até falta de informação. “O que as evidências mostram é que esse tipo de comportamento têm cunho intergeracional, ou seja, às vezes, aquela pessoa que sofreu violência, ainda que não concorde com a prática punitiva, em alguma medida, pode replicá-la por ausência de caminhos”, afirma Mariana.
Um ciclo difícil de ser quebrado
Há cada vez mais evidências científicas que mostram como as punições físicas ou emocionais não apenas não ajudam, como também causam danos graves e difíceis de reverter. Ainda assim, os números do PIPAS mostram que a prática não será eliminada tão cedo.
“Embora já haja muito conhecimento e até algumas políticas públicas, trata-se de um hábito secular difícil de quebrar”, diz a psicóloga Bianca Sollero, autora do livro Pare de perguntar o que seu filho vai ser (Literare Books). “São muitos pais e mães que já sabem que não devem bater nem punir, mas eles mesmos, vez ou outra, caem nessa alternativa primitiva com um gesto imaturo, impulsivo e irracional”, descreve.
Quebrar esse ciclo, tão arraigado, é uma tarefa que exige muito, não só dos pais e das mães, mas da sociedade como um todo.
Os adultos precisam reconhecer e entender que estão errando para que consigam corrigir a rota. Isso, segundo Bianca, demanda muito autoconhecimento, auto-observação e um comprometimento real com a transformação, mas a tarefa não é simples – é preciso muito mais do que apenas boa vontade.
“Se estamos falando da parcela mais vulnerável da população, a garantia de condições básicas de saúde e educação faz parte da transformação desse comportamento, porque, no meio do caos e da deficiência de dignidade, não há o mínimo de controle emocional que pondere o bater e o punir”, exemplifica.
“Se estamos falando das classes média e alta, fará parte da tratativa uma transformação que, primeiro, inclua a família como principal parceira do mercado de trabalho. Enquanto vivermos em uma sociedade de pais e mães workaholics ou atropelados pelo padronismo doentio do que hoje significa ter sucesso, sobra menos espaço para cuidar dos vínculos educativos e muito menos paciência para o comprometimento com um jeito mais moderno, sustentável e eficiente de educar – que necessariamente é respeitoso”, aponta.
Os efeitos da violência
Como sabemos, punir com violência não educa e causa feridas não apenas físicas, mas emocionais. “É algo que agride a alma e marca a história da criança para sempre, ainda que de forma inconsciente”, diz Bianca.
“É como se isso fomentasse uma bomba atômica interna. Quanto mais punições, mais a criança fica prestes a explodir. Até que ela explode, seja com comportamentos cada vez mais desafiadores na infância, com crises de depressão e ansiedade na adolescência, ou mesmo com compulsões de todas as formas na vida adulta”, explica a psicóloga. As consequências são cruéis.
Isso sem falar na reverberação da prática – quem apanhou fica mais propenso a bater, e o ciclo se propaga de geração em geração. “Essas práticas de punição física ou de ameaçar a criança são preditoras de outros comportamentos: ela fica irritada, bate nos amigos da escola, expressa um comportamento desafiador. Na verdade, usar violência provoca o efeito contrário do que se busca e do que se espera ao educar”, diz Marina.
Também são grandes as chances de que essa criança se torne agressiva, afinal, essa é a realidade apresentada a ela desde o início.
Marina Fragata lembra que, além da pesquisa PIPAS, o Núcleo Ciência pela Infância também divulgou dados sobre esse tema e mostrou que 80% das pessoas que cometem violência contra crianças são os adultos de referência: as mães, os pais e os cuidadores.
“Isso parte daquela pessoa que está no convívio rotineiro e nessa missão de cuidar, proteger, amar, educar e dar limites”, diz ela. Mas como é, para a criança, perceber que a pessoa que ela mais ama e de quem mais depende age com violência? Conforme ela cresce, começa a enxergar com distorção o amor e o cuidado, acreditando que punição, castigo, gritos e agressões são comuns em um relacionamento – um perigo para a vida adulta.
Impactos no desenvolvimento infantil
Esses primeiros anos de vida são uma janela de oportunidade. É quando o cérebro da criança está se desenvolvendo de uma forma muito acelerada, o que torna a violência um risco ainda mais significativo. “Hoje, sabemos que o desenvolvimento da criança não é baseado exclusivamente na sua genética, como se acreditava há décadas. A interação com o meio, as experiências e as vivências desses primeiros anos têm um grande impacto”, explica Marina.
Segundo ela, a exposição à violência gera uma ativação de hormônios, como o cortisol e a adrenalina, capazes de desfazer as sinapses, que são as conexões entre as células cerebrais que permitem que as pessoas desenvolvam habilidades, como aprender a falar, andar, escrever e assim por diante. É o chamado estresse tóxico.
“Enquanto a criança deveria estar com o processo de desenvolvimento acontecendo em seu pleno potencial, a violência é um fator prejudicial. Esse impacto pode atrapalhar desde o presente até o futuro, porque a base cerebral, de funções e habilidades (inclusive emocionais) que se cria nessa fase é essencial ao longo de toda a vida”, descreve.
Prejudicial também à autoestima
A psicóloga Bianca descreve a punição física também como um silenciamento. Segundo ela, a partir daí, a criança entende que não é bem-vinda ou que não merece se expressar. Além de todo o impacto e sofrimento, apanhar ou sofrer punições não ensina. “Se eu me equivocar e bater meu carro, vou ter a consequência natural de ficar uma semana sem ele. Se a criança se equivoca e estraga algo, por exemplo, ela pode ajudar a consertar e a limpar, mas, se ela receber só gritos, xingamentos e punições, o que isso vai ensinar?”, questiona.
Para ela, o aprendizado vem da orientação respeitosa, o que não é sinônimo de permissividade, mas tem a ver com o manejo de consequências coerentes sempre que necessário.
Adultos sem auto-confiança e submissos
Outro resultado das punições é a formação de adultos criados para obedecer cegamente ou até mesmo para mentir e esconder seus erros, em vez de lidar com eles. “Em pleno século 21, quando se discute a importância da criatividade e quando somos invadidos pela virtualidade e inteligências artificiais, a punição física só colabora para que crianças cresçam cada vez mais medrosas, menos autoconfiantes e mais bloqueadas”, destaca a psicóloga.
Diante disso, é fundamental transformar essa educação punitiva, se quisermos formar indivíduos mais autônomos, criativos e aptos para trabalhar com as máquinas – e não para elas.
Os pais precisam de ajuda
Além de continuar falando sobre o assunto, mostrando os efeitos negativos dos castigos físicos e emocionais, é necessário ajudar os pais a colocar essa transformação em prática.
“É preciso valorizar o sentimento de uma mãe ou de um pai quando usam a palmada ou o grito como um meio nesse compromisso de educar a criança”, pondera Marina. “É necessário acolher esse adulto, apoiá-lo e ajudá-lo a entender que essa prática, na verdade, não ajuda, nem favorece seu filho”, acrescenta.
Para ela, além da informação, é importante desenvolver políticas públicas. “É preciso fortalecer o que falamos sobre parentalidade afetiva ou positiva, que é esse processo de interação com as crianças, utilizando outras estratégias como o diálogo”, afirma.
Fica muito mais fácil, afinal, não reagir com violência quando o cuidador compreende, por exemplo, que, durante a fase da “birra”, a criança não tem aquele comportamento de propósito, mas que faz parte do processo de maturação emocional.
Além disso, Marina reforça a importância de apoiar esse adulto e ajudá-lo a entender o que sente e como ele pode, por meio de algumas estratégias, reduzir as práticas punitivas e trocá-las pelo diálogo, pela interação afetiva, pelo suporte à criança e pelo vínculo. “Isso tudo é muito mais efetivo não apenas para educar, mas para construir uma relação mais próxima, que traz mais satisfação tanto para o adulto como para a criança, promovendo o desenvolvimento e ajudando a construir conexão de verdade”, finaliza.
*Levantamento de indicadores sobre a infância no Brasil, realizado pelo Ministério da Saúde e pelo Instituto de Saúde (SES-SP), com apoio da Fundação Maria Cecília Souto Vidigal (FMCSV).