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Criança com QI alto: “É uma conquista que não determina a felicidade dele”

Diagnosticado com a superdotação, Gustavo Saldanha, de apenas oito anos, é o integrante mais jovem da Mensa Internacional.

Por Alice Arnoldi
Atualizado em 11 nov 2021, 18h43 - Publicado em 11 nov 2021, 18h36

Apaixonado pelos Beatles, Gustavo Saldanha, de oito anos, parecia apenas mais uma criança com gostos específicos durante a primeira infância. Até que a mãe Luciane Saldanha percebeu, no quinto de ano de vida do pequeno, que ele estava cada vez mais imerso no mundo da música e focado em aprender a tocar como seus ídolos.

E foi durante a pandemia causada pela Covid-19, que ele passou a ter aulas particulares e aprendeu a tocar sete instrumentos, além de intensificar o uso da tecnologia. “Ele sabia assistir à tutoriais na internet e colocar em prática, transformar um sistema operacional em outro e até dava aulas para os avós aos fins de semana”, contou a mãe, de 46 anos, doutora em ciências da saúde.

Neste momento, ela e o marido Carlos decidiram que era hora de olhar com mais atenção para estas habilidades do pequeno e, então, descobriram que ele é superdotado. Do diagnóstico em diante, em pouco tempo, a família passou por muitas descobertas e aprendizados até Gustavo ser aceito na Mensa International, sociedade mundial composta por pessoas de alto QI, sendo considerado o brasileiro superdotado mais novo a fazer isso – seu QI é de 140, sendo que a média gira em torno de 100.

A história do garoto prodígio impressionou e virou notícia no Brasil todo, mas aqui, a mãe conta, em um bate-papo exclusivo com o Bebê.com.br, o que realmente importa para a família. “Só não gostaríamos que essa conquista fosse apenas um troféu para ele, mas servisse de esclarecimento sobre o assunto e ajuda para outros nas mesmas condições. Aqui em casa, temos consciência de que ninguém é nada sozinho”, enfatiza ela, reforçando que outros pais busquem por ajuda ao observarem que a criança precisa receber os estímulos corretos e serem respeitados diante de todas suas facilidades – e também dificuldades!

Leia o relato na íntegra: 

“A gestação do Gustavo foi tranquila, mas tive um pouco de hipertensão e ele nasceu prematuro, de 32 semanas. No momento do parto, os médicos descobriram que eu tinha placenta acreta (quando o órgão tem uma fixação anormal no útero), o que pode ter sido um dos fatores que ocasionou o nascimento precoce e o levou a ficar em observação durante cinco dias na UTI semi-intensiva.

Além disso, depois de todas as tentativas possíveis, também não consegui amamentá-lo – tive no máximo cinco mililitros de leite. Há uma pressão social muito forte, de que só basta querer e ter força de vontade para dar de mamar, e eu sei que no meu caso não foi assim, porque no momento do nascimento do Gustavo, a placenta não saiu do meu corpo.

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Voltei para o centro cirúrgico na madrugada, mas mesmo assim continuei com ela dentro de mim por um tempo, o que fez com que meu corpo não entendesse que ele tinha nascido e consequentemente não tinha uma gota de leite mesmo fazendo tudo que era possível.

Luciane-Saldanha-com-o-filho-Gustavo-e-o-marido-na-saida-da-maternidade
(Luciane Saldanha/Arquivo Pessoal)

O Gustavo voltou para casa já com a introdução da fórmula e 20 dias depois, tive uma ruptura da artéria uterina, porque meu corpo ficava tentando expelir a placenta naturalmente. Por causa de uma série de procedimentos e medicamentos na internação, os médicos resolveram que eu não deveria fazer nenhuma tentativa a mais para amamentá-lo naquele momento.

Mesmo com o julgamento da sociedade, as especialistas me asseguraram de que isso não iria afetar o desenvolvimento dele ou o nosso vínculo”.

Como foi seu primeiro ano de vida

“Só que desde pequeno, mesmo seguindo as dicas da pediatra, ele era um bebê que chorava bastante e quando ele começou a entender um pouco melhor as coisas, não era tão facilmente distraído. Acredito que já tinha alguma diferença em relação às exigências do Gustavo e que se manifestavam desta forma.

O cenário familiar complicado também pode ter influenciado neste processo, já que quando ele estava com um pouco menos de seis meses, descobri que meu pai estava com câncer no pâncreas e tinha no máximo um ano de vida. Eu queria ficar o máximo de tempo que eu podia com ele, mas ao mesmo tempo tinha um filho que havia nascido prematuro, demandava bastante atenção e isso fez com que introduzíssemos cedo o eletrônico na vida dele.

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Usávamos para que ele se distraísse conosco e ficasse mais calmo, já que meu pai tinha dor e não podia ficar em um ambiente com barulho para não trazer mais desconforto. Seguimos assim até o seu falecimento, quando o Gustavo tinha um ano e meio e decidimos suspender o uso da tecnologia“.

Até que ele foi à escola aos dois anos… 

“Na época, optamos por uma escola bilíngue, embora ele ainda não falasse. Tivemos reações contrárias, em que disseram que era melhor esperarmos ele ter a língua materna mais desenvolvida. Mas, mesmo assim, seguimos a orientação da pedagoga de que isso não iria interferir o seu desenvolvimento da fala.

Como ele ainda não falava com dois anos, nos questionamos se ele tinha algum problema (ainda que interagisse muito bem de outras formas). Fizemos um pouco de terapia comportamental e fonoaudióloga, e logo ele começou a falar e nunca misturou as línguas – voltava da escola cantando músicas em inglês, mas respondia em português quando falávamos com ele.

Gustavo-com-dois-anos-de-idade
(Luciane Saldanha/Arquivo Pessoal)

Desde sempre, ele também tinha interesses diferentes e era algo que chamava nossa atenção. O Gustavo gostava de brinquedos como todas as crianças, mas não era qualquer um que o distraía, além dele sempre querer brincar com outras tecnologias espalhadas pela casa.

Ser seletivo na escolha das amizades também era outra característica forte sua. Ele nunca foi a criança de brincar com algo só porque estava todo mundo fazendo. Se ele gostava da atividade que estava acontecendo, ele participava. Se não, ele assistia à diversão, mas dizia que não gostava.

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Isso nos tranquilizou porque ele não tinha um comportamento de negativa e não interação em todos os ambientes, era mais específico. Se ele não gostava, não fazia. Mas confesso que, no início, era um pouco difícil respeitar isso porque existe uma pressão social para que todas as crianças interajam e gostem das mesmas coisas”.

Um percalço no meio de uma paixão…

“Mais tarde, o Gustavo começou a se envolver bastante com as apresentações da escola. Quando ele voltava das aulas e tinha aprendido uma música nova, ele pedia para ensaiar ao brincar pela casa.

No dia das apresentações, no entanto, víamos outros alunos com boas performances e então deduzíamos que ele era apenas mais uma criança que gostava de música. Até que aos cinco anos, ele conheceu quatro músicas dos Beatles para uma apresentação de Dia das Mães e começou a cantar muito em casa.

Gustavo-aprendendo-a-tocar-os-instrumentos-com-apenas-tres-anos
(Luciane Saldanha/Arquivo Pessoal)

Tanto que, na semana da tão sonhada apresentação, levamos ele e uma amiguinha no seu primeiro show de banda cover. Na mesma época, porém, o Gustavo começou a ter uma dor de cabeça forte e a pediatra nos orientou a levá-lo ao pronto-socorro.

Chegando lá, eles colheram um exame de líquor para ver se não era meningite. Não se confirmou, mas quando saímos do pronto-socorro, ele começou a se sentir mal novamente e tivemos que voltar. Vimos que tinha tido uma alteração na coleta que chama fístula liquórica (vazamento do líquor) e ele teve que ser internado.

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Quando chegou o dia da apresentação, em que ele parecia tão feliz em fazer, conversamos com a médica e ela nos liberou do hospital para ir, desde que ele fosse colocado na vertical. Ele ficou deitado no colo da coordenadora enquanto todas as outras crianças se apresentavam. Filmamos e explicamos que ele havia ido, da maneira que podia e que o importante era ele ter participado.

Ao voltarmos para o hospital, ele pediu para ver os vídeos que eu havia gravado da apresentação. Achamos que ele poderia até ficar meio triste, por se ver deitado durante todo o espetáculo, mas ele começou a querer vê-la mais vezes e perguntar sobre os Beatles. Por ter precisado ficar de repouso, deitado durante 30 dias ao voltar para casa, introduzimos o YouTube na rotina e ele ficava pesquisando sobre a banda britânica”.

Enfim, a paixão pelos Beatles! 

“Em novembro do mesmo ano, conheci o Marco Antônio Malagoli, presidente de um dos maiores fã-clubes dos Beatles da América Latina. Ele viu o perfil do Gustavo, que havíamos criado no Instagram para registrar toda esta paixão, e pediu para que o levássemos em uma exposição que estava fazendo aqui em São Paulo.

Desse dia em diante, a vida do meu filho mudou mais uma vez, porque ele passou todo fim de semana se apresentando junto com o Marco pelos shoppings da cidade, interpretando a banda britânica.

Gustavo-conhecendo-o-cover-Marco-Antonio
(Luciane Saldanha/Arquivo Pessoal)

O Gustavo ia com instrumentos que confeccionamos, como se fossem réplicas dos Beatles, mas que não emitiam som. Mas o Marco Antônio sempre mostrava como era tocar teclado, às vezes colocava o violão nele, o que fez com que percebêssemos que ele queria mesmo era tocar um instrumento de verdade.

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Quando o matriculamos em uma escola de música, mais uma dificuldade apareceu. Ele é destro, só que ao ver o Paul McCartney, que era canhoto, e ter ouvido um cantor cover dizendo que ele havia invertido a posição dos instrumentos para tocar igual ao ídolo, o Gustavo quis fazer o mesmo e ficou assim até hoje. Vimos que ele aprendia muito rápido!

Depois de aprender uma música com os professores, ele chegava na exposição, o Marco Antônio dizia que não era bem daquele jeito e, ao mostrar os novos movimentos dos dedos para o Gustavo, ele logo tocava diferente. Até que antes da pandemia, ele começou a fazer aulas com dois músicos de banda cover e se encontrou. Eles podiam não ser professores, mas como ele tinha muita facilidade em aprender as músicas por meio da observação, não tinha problema”.

Quando a pandemia chegou… 

“Resolvemos colocá-lo em aulas de outros instrumentos para preencher o tempo livre. Neste momento, ele já tinha ganhado a guitarra, o violão, além do teclado e o baixo. Rapidamente, ele aprendeu a tocar os dois últimos.

Também nos chamou atenção quando ele precisou voltar a ter contato com a tecnologia nas aulas virtuais durante a pandemia, e aprendeu a usar tudo sem demora. Ele sabia assistir à tutoriais de sites na internet e colocar em prática, transformar um sistema operacional em outro e até dava aulas para os avós aos fins de semana.

Gustavo-aprendendo-a-mexer-na-tecnologia-durante-a-pandemia-causada-pela-covid19
(Luciane Saldanha/Arquivo Pessoal)

Neste momento, foi quando achamos que era importante paramos e olhar o que estava acontecendo. Enquanto outras crianças estavam angustiadas, querendo voltar à escola, o Gustavo estava bem e mergulhado dentro do que estava aprendendo. Ele falava que daqui a pouco a pandemia terminaria e que ele retornaria às aulas, sem sentir falta porque estava distraído”.

O processo do diagnóstico 

“Vimos na internet a possibilidade de superdotação e buscamos por uma psicóloga especializada, quem aplicou uma série de testes e fez alguns entrevistas com ele. Na devolutiva, ela explicou que o Gustavo tinha um QI bastante acima da média e que as áreas de habilidades dele são de criatividade e tecnologia, e não a acadêmica.

Normalmente, estas áreas não são valorizadas pela escola e até mesmo pelos pais, mas recebemos a notícia bem e ela melhorou o nosso ambiente interno. Vimos que tudo o que ele queria não era só porque ele é uma criança cheia de vontade, mas por uma necessidade maior de explorar.

Em alguns momentos, nos questionamos se estávamos fazendo o melhor para ele. Depois deste diagnóstico, vimos que fizemos o certo em oferecer as possibilidades, sem brigar ou superestimular”.

Escola específica? Não, obrigada!

“Já a mudança na escola aconteceu quando ele estava pré-alfabetizado e percebemos que aquilo que a instituição poderia oferecer não era mais suficiente para ele. Passamos por um momento difícil em que Gustavo era muito querido pelas garotas, sendo o menino preferido para brincar de casinha, porque gostava de atividades mais elaboradas. Mas quando elas começaram a ter mais amizade entre si, ele se sentiu um pouco sozinho, já que elas não queriam brincar com meninos e eles não brincavam do que Gustavo gostava.

Ao pesquisar sobre as escolas, nos deparamos com a que ele está atualmente e aprendemos sobre a legislação. Ela garante que instituições ofereçam recursos extras para alunos superdotados, nas áreas que eles mais se interessam, caso queiram. Só que, diferente do que a maioria pensa, isso não significa que meu filho estava no terceiro ano e agora está no quinto. Nada disso!

Ele não é um gênio, só tem uma facilidade maior de desenvolver algumas áreas de interesse. Então, as outras crianças não ficam para trás, inclusive, outros perfis infantis trazem um equilíbrio muito rico para o Gustavo. Há uma tendência da sociedade a querer colocá-lo em uma escola com superdotados, mas do nosso ponto de vista prático e social, não é o que buscamos”.

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Gustavo se apresentando com a banda Hey Jude, no seu aniversário de sete anos. (Luciane Saldanha/Arquivo Pessoal)

O ingresso na Mensa é importante, mas não fundamental! 

“Quando entendemos que ele tinha direitos legais a respeito da superdotação nas escolas do estado de São Paulo, nos questionamos se não havia algo a nível internacional, porque era um assunto deixado de lado no Brasil. Pesquisando mais sobre o tema na internet, vimos a Mensa e consultamos o Dr. Fabiano de Abreu, que é um superdotado, faz parte da sede internacional e nos orientou como poderia ser este ingresso do Gustavo.

Nosso filho tem dupla nacionalidade (brasileira e portuguesa) e, por isso, ele conseguiu entrar na Mensa Internacional como cidadão português. Até o momento, a brasileira não aceita crianças e isso significa que além de não haver a quantidade de diagnósticos corretos, a maior instituição nacional não reconhece o público infantil. Então, vemos como natural que o Gustavo seja o membro mais novo.

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Só não gostaríamos que essa conquista fosse apenas um troféu para ele, mas servisse de esclarecimento sobre o assunto e ajuda para outros nas mesmas condições. Aqui em casa, temos consciência de que ninguém é nada sozinho.

Se criarmos uma valorização em cima dessa conquista dele, não vai ser benéfico nem para ele, nem para o meio que ele convive, porque além das expectativas internas, isso pode gerar uma pressão desnecessária. É uma conquista que pode abrir portas, mas não determina a trajetória, o sucesso, nem a felicidade dele.

Temos consciência que o Gustavo tem muitas facilidades, mas se ficarmos só ressaltando-as, daqui a pouco, ele vai ter sérias dificuldades porque o mundo não é feito de pessoas iguais. Desde que ele esteja bem e estimulado, as diferenças vão ser bem-vindas em sua formação como pessoa”.

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