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“Childfree”: por que muitos adultos excluem crianças do convívio social?

Uma mãe e um filho barrados num bar levantaram um debate: por que crianças são afastadas da convivência - e consequentemente, suas mães também?

Por Vanessa Gomes
Atualizado em 7 abr 2022, 10h22 - Publicado em 6 abr 2022, 20h34
 (Arte: Bebê.com.br / Foto: Image taken by Mayte Torres/Getty Images)
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Eram 17h de um domingo ensolarado e Marcelle Cerutti, uma atriz e fotógrafa de São Paulo, estava na fila, aguardando sua vez de entrar em um bar, localizado no bairro de Santa Cecília, na zona oeste da cidade. Uma amiga havia combinado de comemorar o aniversário ali e ela fazia questão de dar um abraço nela. Já tinha ido àquele mesmo bar outras vezes. O ambiente era tranquilo, inclusivo. Tinha até uma placa ali na frente, dizendo isso: todes eram bem-vindos. Pessoas de qualquer gênero, bicicletas, pets… Mas, infelizmente, havia uma restrição: nem todo mundo podia entrar, pelo menos não com qualquer idade. Esta foi a informação que Marcelle recebeu quando chegou sua vez na fila. Ela estava de mãos dadas com o filho, Luca, de 5 anos, e foi barrada. “Ah, infelizmente, criança não pode entrar”, ouviu.

Marcelle sentiu um nó na garganta. Ela não sabia nem como responder ao filho, que perguntava por que eles não podiam ir ao aniversário. Ela também não entendia. Depois de ligar para a amiga, que saiu para dar um abraço, ela entrou no carro com o menino e, ali, desabou. “Foi quando eu fiz o post para ajudar a tirar de mim aquela sensação de impotência, de não caber de novo, de não poder estar com meus amigos porque não aceitavam meu filho”, contou a atriz, em entrevista ao Bebê.com.br.

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O que ela não imaginava era a potência daquelas palavras, postadas nos stories do Instagram. “Aparentemente, o bar que aceita todo mundo não aceita mães solo com seus filhos (…) @miudabar me perdeu”. O bar, no entanto, perdeu muito mais que Marcelle. Perdeu um coletivo de mães que se levantaram em uníssono e, a partir do relato dela, comentaram, compartilharam, repercutiram e levantaram a urgência de discutir uma questão importante: a exclusão das crianças e das mães do convívio social e o preconceito e discriminação contra a infância, como se fosse normal e permitido. Spoiler: não é.

“Todo esse coro de mulheres e mães que se levantou comigo revela que essa é uma dor coletiva e urgente. Doeu em todas nós e doeu feio porque essa inviabilização das mães e das crianças acontece diariamente, em muitos outros espaços”, afirma Marcelle.

O bar é o problema?

Ao ler os comentários e ver toda a repercussão que gerou o post de Marcelle, além de vários outros, decorrentes do dela, dá para encontrar uma série de relatos de outras mães, que passaram por situações parecidas. Tem também, é claro, aqueles que não hesitam em apontar um dedo: “Mas, por acaso, bar é lugar de criança?”. Pode ser, sim, se os pais assim entenderem. “Todas as discussões, comentários e desabafos a partir da repercussão do que aconteceu comigo têm me ajudado muito a entender que, por muito tempo, eu também acreditei e normalizei que lugar de mãe é em casa ou no parquinho. E isso dói. Mas é importante dizer que isso não é sobre mim. Isso chegou onde chegou porque é uma questão coletiva; é de todas nós, que somos mães, e também da sociedade”, reforça Marcelle.

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Para a psicóloga infantil Caroline Alonso, de São Paulo (SP), lugar de criança é onde os pais decidirem e onde ela se sinta confortável. “Claro, desde que não atrapalhe a sua saúde, a sua rotina e que não a coloque em risco”, explica. “Nesse caso específico, era um bar, com cadeiras e mesas, às 17h, ela ia ficar um pouco e ia embora… Cabe o bom senso dos pais. Agora, excluir as pessoas porque elas têm filhos é preconceito”, diz. “Estamos falando de discriminação. Então, existe um bar que proíbe a entrada de idosos ou outro, que não deixa os negros entrarem? Quem decide se é adequado ou não é a própria pessoa”, pontua.

Claro que há lugares que as crianças não devem frequentar, porque precisam ter sua infância protegida e não podem ser expostas a drogas, sexo, violência, por exemplo”, pondera Marcelle. “Mas não foi o caso. Estamos falando aqui de todos os outros locais públicos, bares e restaurantes que funcionam à luz do dia, que oferecem estrutura de convívio social e lazer e cada mãe ou pai é capaz de avaliar se determinado lugar é bom para eles”, detalha.

“O convívio com as crianças e os adolescentes – assim como com outros grupos sociais – faz parte da vida em sociedade. Da mesma forma, a presença de crianças e adolescentes em espaços públicos e privados abertos ao público, observadas as eventuais restrições legais e judiciais, é um direito deles”

Isabella Vieira Machado Henriques, presidente da Comissão de Defesa dos Direitos da Criança e do Adolescente da OAB-SP

Além de ser preconceito, barrar mães e crianças, nesses casos, é contra a própria constituição. “Estabelecimentos comerciais não podem proibir a entrada de quaisquer grupos sociais, até por força do art. 3º, IV da Constituição Federal, que veda preconceitos de origem, raça, sexo, cor, idade e quaisquer outras formas de discriminação. Restrições à entrada de crianças podem ser feitas apenas por norma ou decisão judicial”, detalha a presidente da Comissão de Defesa dos Direitos da Criança e do Adolescente da Ordem dos Advogados do Brasil – São Paulo (OAB-SP), Isabella Vieira Machado Henriques.

Segundo a advogada, o Estatuto da Criança e do Adolescente (ECA) determina que diversões e espetáculos públicos podem informar a classificação indicativa quanto às faixas etárias a que não são recomendados. “Em regra, crianças com menos de 10 anos somente poderão ingressar e permanecer em locais de apresentação ou exibição quando acompanhadas da mãe, do pai ou de responsável legal”, aponta.

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“Para mim já era… Me perderam!”

Depois de toda a repercussão do caso nas redes sociais, o Bar Miúda fez um post, tentando explicar seu posicionamento.

Diz parte do comunicado oficial: “Cumprindo o mandamento constitucional de defesa com absoluta prioridade das crianças e adolescentes, o ECA confere importante papel aos estabelecimentos comerciais quanto à proteção dos menores de idade, para fins de prevenção de riscos, inclusive. Sendo assim, desde dezembro, postamos regularmente no Instagram que, para entrar no bar, é preciso apresentar RG/CNH para conferirmos se a pessoa é maior de idade. Sabemos que algumas decisões são individuais, mas outras, coletivas. Apenas queremos ser verdadeiros e conscientes quando dizemos qual o público que conseguimos atender. O lazer que oferecemos não é pensado para crianças, suas liberdades e necessidades – e são elas quem consideramos nessa decisão. Nosso ambiente é feito para adultos, com programação cultural de cunho adulto e consequentemente para maiores de 18 anos. Este posicionamento não exclui o fato de que estamos sempre pensando em melhorias no espaço e funcionamento”.

Leia na íntegra nesta postagem:

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Ao Bebê, Marcelle contou que achou a nota de esclarecimento rasa e que eles apenas se defenderam da repercussão negativa que ganharam na mídia e reforçaram o ato de não aceitarem mães e filhos. “Não houve nenhuma palavra direcionada a mim ou a outras mães que já foram barradas e que eu descobri depois que expus meu caso. Ontem [terça-feira, 5], dois dias depois do ocorrido, eles me contataram e falamos por telefone. Houve um pedido de desculpas no final da ligação e eles falaram que estão abertos a rever as questões. Eu espero, de verdade, que eles levem isso a sério e de fato façam algo. Mas para mim, já era. Me perderam”, finaliza.

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Nossa reportagem também tentou entrar em contato com o estabelecimento, mas até o momento da publicação, não obteve resposta. Na noite de quarta (6), o bar liberou um vídeo onde pede desculpas e avisa que mudaram as políticas da casa para serem receptivos a todos os públicos, salientando que quem deveria dizer se o local é adequado ou não, deveria ser a mãe ou responsável pela criança:

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Muito além da mesa do restaurante…

A discussão, porém, vai além do Miúda. Ele não é o primeiro e nem o último bar a recusar a entrada de uma mãe e uma criança. Além de outros estabelecimentos comerciais, tem aumentado o número de eventos, como casamentos, por exemplo, que proíbe a presença de crianças. Há discussões para promover voos de aviões comerciais livres dos pequenos ou áreas em que eles são proibidos dentro das aeronaves, entre outras restrições polêmicas.

Este movimento foi batizado de “childfree” ou “livre de crianças”. A ideia partiu da defesa de pessoas que não querem ter filhos – e que devem ter seu direito de escolha respeitado e compreendido para evitar a maternidade e paternidade compulsória – , mas acabou sendo ampliada e distorcida para grupos que desejam restringir o contato com qualquer criança.

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“Como explicar para o meu filho por que alguns adultos não querem ter ele perto e por isso o proíbem de entrar em alguns lugares? Como explico isso, sem ele entender que ele é um problema, que ele é errado, mesmo sem ter feito nada? É só trocar o ‘proibido crianças’ por qualquer outra minoria para ter uma ideia da tristeza que é isso”

Marcelle Cerutti, mãe e fotógrafa

“Eu ouvi falar que esse movimento é muito comum na rede de hotelaria, que se nega a aceitar crianças, vestida de um discurso velado de preocupação com a segurança, sendo que o espaço não oferece nenhum perigo. É o pensamento que criança incomoda, atrapalha. Gente, criança fala, corre, canta, chora, cai, pega coisas, derruba coisas. Eles estão descobrindo o mundo, é parte do desenvolvimento de todo ser humano, não existe problema aqui! Eles não são o problema. Eles precisam ser acolhidos e respeitados”, aponta a mãe.

Marcelle conta ainda que, entre todos os comentários que viu nos últimos dias, viu relatos de uma mãe que teve uma corrida de carro cancelada depois que o motorista a viu com o bebê e o carrinho, outra que teve que trocar a fralda do filho na cadeira do restaurante porque não tinha trocador no local e ainda foi repreendida, entre outros.“São violências diárias que acontecem com as mães. E olha que eu estou falando dentro de um pequeno recorte majoritariamente branco da zona oeste de São Paulo. E como é para as mães com crianças com deficiência, as mães pretas, da periferia, do interior do Brasil? A questão mesmo vai ainda além, permeia outras camadas, outras realidades… A discussão não vai parar. Depois que a gente vê, não ‘desvê’ mais”, afirma.

Crianças mimadas ou adultos mimados?

Por que muitos adultos levantam bandeiras de que os lugares devem ser pet friendly, mas rejeitam a presença de crianças? Para a psicóloga Caroline Alonso, a raiz da situação está no fato de que parte dos adultos é bem pouco compreensiva com os pequenos. “A criança acabou de chegar ao mundo, ela está se situando, ela não sabe expressar o que sente, então, ela chora. É natural! Elas gritam porque estão felizes, porque estão eufóricas, porque é a maneira que elas sabem demonstrar aquilo que estão sentindo, elas não têm um autocontrole total, elas não têm a parte racional bem desenvolvida ainda, elas são puro afeto, pura emoção”, explica.

“Então, como pode ser que os adultos, que são a parte racional da situação, não entendam e não aceitem que isso faz parte do desenvolvimento de um ser humano e que todo mundo já passou por isso. Essa é a parte mais difícil e dolorosa de ver”, conclui a especialista.

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Isso tudo sem falar nas mães, que também não são acolhidas quando seus filhos não são bem recebidos. Como cuidar bem de um outro ser humano, para que ele se torne um adulto saudável, se esse maternar a exclui do convívio, a exclui do lazer, a exclui de momentos, às vezes raros, em que você pode se divertir e conversar com outros adultos, para variar um pouco?

Lugar de criança – e de mãe! – não é só no parquinho, em casa ou na porta da escola. E a conversa está só começando.

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