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Maternar, trabalhar, respirar

Publicitária, diretora executiva na Maternativa, Vivian Abukater é mãe de dois meninos que ensinaram que a maternidade é a melhor escola de negócios que existe e que conciliar o cuidados dos filhos com o trabalho não é só papel das mães.
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A assustadora conta de quanto tempo uma mãe investe na vida da família

Esperamos (e construímos) um futuro onde o recurso mais valioso da existência humana - sim, o tempo -  será utilizado e dividido de uma forma mais justa.

Por Vivian Abukater
Atualizado em 13 Maio 2021, 11h46 - Publicado em 9 nov 2020, 17h55

“És um senhor tão bonito. Quanto a cara do meu filho. Tempo, Tempo, Tempo, Tempo. Vou te fazer um pedido. Tempo, Tempo, Tempo, Tempo.”

Tempo, um substantivo masculino que tem sua percepção absolutamente alterada quando uma mulher se torna mãe. No dicionário o tempo tem algumas definições: período de momentos, de horas, de dias, de semanas, de meses, de anos no qual os eventos se sucedem, dando-se a noção de presente, passado e futuro, também o conjunto de fatores meteorológicos.

Mas hoje quero falar do tempo como o recurso mais valioso da existência humana e, dentro do contexto da maternidade e do trabalho, trata-se de um recurso que falta para as mães no presente e que determina o futuro da nossa trajetória.

O assunto é sério e um pouco denso por isso quero conversar sobre ele colocando um pouco de música na tentativa de adicionar uma pitada de leveza e poesia. Já no começo do texto o título é o trecho inicial da musica “Oração ao tempo”, de Caetano Veloso, lançada em 1979. (Veja a playlist com todas as músicas para ir escutando enquanto lê)

E vamos que vamos, porque o tempo não para! É finito e dizem ser o mais democrático dos bens humanos, afinal o tempo é igual para ricos e pobres, brancos e negros, homens e mulheres, orientais e ocidentais. Mas quero saber, você concorda com esse conceito?

Eu concordo, mas acredito que embora o tempo medido em horas, dias e anos seja o mesmo para todos, a forma como ele é usado e dividido não é e isso faz toda diferença. Como a questão principal dessa coluna é dialogar sobre maternidade, tempo e trabalho vamos começar do começo.

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Gestar é aprender a esperar

“É como se eu tivesse esperado toda vida pra te embalar”

Eu me lembro quando descobri a gestação do meu primeiro filho. Já contei no meu primeiro texto para essa coluna que a descoberta da gravidez foi relativamente tardia e que também enfrentei uma insuficiência imune-cervical que me colocou de repouso absoluto com 23 semanas de gestação. Quando ficamos grávidas começamos a perceber o tempo de uma maneira
diferente: aprendemos que durante a gravidez o tempo é dividido e contado em semanas.

É engraçado, porque as pessoas ficam perguntando com quantos meses você está? E a gente acaba respondendo a semana, não é mesmo? Outra coisa que muda é a nossa percepção do corpo. Sentimos ao longo da gestação ele se alterando e simultaneamente lidamos com a ansiedade da chegada do bebê. A gente começa desejar que o tempo passe mais rápido. No final estamos cansadas de esperar e não vemos a hora do bebê chegar! Não importa o quanto a gente deseje que o relógio ande mais rápido. O tempo tem seu tempo e temos que aprender a lidar com ansiedade e desenvolver uma habilidade nova: a paciência!

Descobrimos que existe o nosso tempo, que a vida tem o dela, e que carregamos dentro da gente um outro ser, que também tem seu próprio tempo. Esperar cada um destes reloginhos é um grande aprendizado que acompanha a vida de uma mãe ao longo do desenvolvimento de seus filhos.

O bebê chega e o tempo desaparece!

“Todos os dias quando acordo. Não tenho mais o tempo que passou mas tenho muito tempo. Temos todo o tempo do mundo. “

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Então bebê nasce e poucos dias depois nos vemos enfrentando os desafios das novas demandas. O tempo muda completamente e não contamos mais as semanas e sim os meses. E entre amamentar, trocar fraldas e ninar o bebê sentimos que o tempo para de existir. Já não vemos mais as horas passando, perdemos a noção do dia e da noite.

Eu me lembro muito bem do primeiro mês do nascimento do Felipe, meu primeiro filho, e também me lembro dos primeiros meses do nascimento do meu segundo filho, o Heitor. Foram puerpérios completamente diferentes, porque no primeiro filho senti um grande desgaste físico e emocional em me adaptar a nova experiência. No segundo me sai muito melhor emocionalmente, mas o desgaste físico chegou a beira do insuportável. Passei meses sem me reconhecer, deixei de ser a mãe que fala baixo e me tornei aquela que gritava 80% do tempo. Tem horas que a voz tenta gritar para fora aquilo que nos acaba por dentro.

Minha realidade se alterou completamente. Sentia o tempo escorrendo pelos meus dedos até deixar de existir. Experimentei pela primeira vez na vida o sentimento de me doar completamente de corpo, alma e espírito para uma outra pessoa. Tudo era o tempo do bebê e o sentimento de não ter mais o meu próprio tempo trouxe revoluções emocionais intensas e um cansaço físico visível e audível pela casa.

Alguns dias entrava no chuveiro e chorava muito. Lágrimas incontroláveis que tentam colocar pra fora uma emoção e um cansaço praticamente inexplicável. Um sentimento dúbio de gratidão e amor pela criança e reconhecer o quanto cuidar de um bebê é um trabalho extremamente desafiador, cansativo e de alta demanda emocional. Mesmo assim, é um trabalho que a gente quer fazer bem feito, não quer falhar.

Acho que toda mulher depois que se torna mãe ao encontrar uma amiga que também acabou de ser mãe é capaz de reconhecer a olhos nus o quanto o cansaço se torna vsível. Ele pode ser percebido nas olheiras de quem tem dormido muito pouco e na voz que muitas vezes embarga enquanto os olhos se enchem em lágrimas ao conversar sobre as novas rotinas. Eu acredito que é justamente passando o primeiro ano de vida dos nossos filhos que começamos a entender que cuidar de uma criança dá mais trabalho que qualquer trabalho que já tenhamos feito!

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Nós assumimos essa responsabilidade e muitas vezes nos consideramos as únicas únicas que são capazes de executá-lo. Temos a tendência de querer fazer tudo sozinhas e apenas quando estamos muito cansadas pedimos ajuda ou mesmo dividimos a responsabilidade com quem nos acompanha na jornada. Algumas de nós tem a sorte de ter ao lado um companheiro ou companheira que nos ajude a lembrar que não estamos sozinhas e que criar filhos não é um trabalho só nosso. Algumas tem a sorte de poder contar com suas mães,
sogras , irmãs, mulheres da família ou amigas do convívio. Outras estão de fato sozinhas na jornada e não tem nenhuma rede de apoio e nem companheiro ao lado.

No caso das mulheres urbanas a rede de apoio é um desafio. Muitas estão distantes de suas mães e familiares. Muitas das avós ainda trabalham e não podem se tornar a rede de apoio que tanto precisamos nessa fase. O nosso senso de comunidade de cuidado coletivo das crianças é muito menor dentro das grandes metrópoles e capitais.

Trabalho: o remunerado e o do cuidador

“Eu vejo o futuro repetir o passado eu vejo um museu de grandes novidades o tempo não para.”

É difícil reconhecer o cuidado dos nossos filhos como um trabalho. Existe uma construção social que nos faz acreditar que o cuidado dos filhos é responsabilidade única exclusivamente das mães. Nos encaixamos nos papéis existentes há tanto tempo e tentamos executá-lo da melhor maneira que conseguimos mesmo que isso signifique enfrentar grande cansaço físico, desgaste emocional e até prejuízos pessoais de saúde, no trabalho que paga nossas contas.

Repetindo o passado, concordamos sem pensar muito que é verdade o que nos contaram nas entrelinhas do tempo, que o cuidado prático e emocional dos filhos e da casa é responsabilidade somente das mães. Cometemos um erro que nos acompanha por muito tempo quando concordamos com essa forma de fazer as coisas, seguindo o ritmo que nos parece natural, e perpetuando uma prática prejudicial que nos é apresentada não como uma escolha, mas como uma imposição.

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Uma mulher depois que se torna mãe descobre os desafios que existem em tentar conciliar o trabalho que remunera e paga as contas com o trabalho de cuidado dos filhos e da casa. E a ironia é que a forma como vivemos hoje torna – praticamente ou totalmente – impossível fazer bem os dois. A conta do tempo simplesmente não fecha e é basicamente matemática.

Vou usar novamente a minha experiência para tentar elucidar essa questão e depois vamos aos números. Antes de ser mãe, eu era uma executiva que trabalhava em média 12 horas por dia, de segunda a sexta, levava trabalho pra casa e frequentemente trabalhava algumas horas todos os finais de semana. Depois que me tornei mãe, essa conta não fechava mais quando combinada com a demanda de cuidado do meu filho. Mesmo tendo o privilégio de poder contratar ajuda, eu passava longos períodos longe de casa e quando estava em casa o meu trabalho continuava. Você já teve essa sensação de que a conta não fecha?

Vamos às contas do quanto uma mãe investe no trabalho de cuidado

“Hoje o tempo voa, amor. Escorre pelas mãos. Mesmo sem se sentir. Não há tempo que volte, amor. Vamos viver tudo que há pra viver. Vamos nos permitir“

Considerando um tempo de 20 minutos por mamada, 10 vezes ao dia, 7 dias por semana, uma mulher que amamenta pelo tempo de 6 meses (o mínimo recomendado pela OMS) irá investir mais de 600 horas amamentando. Você pode estar pensando, “uau, nunca parei para fazer essa conta”. Mas eu quero convidar você para continuar neste cálculo comigo.

O número de horas trabalhadas nos cuidados pode variar bastante dependendo da configuração familiar, se a mulher consegue dividir com outras pessoas na casa, se tem condições financeiras para pagar uma rede de apoio. Também existe a questão da idade dos filhos e quão independente eles já são. A ideia então é representar o que significa o trabalho em carga horária e tempo de uma mãe chamada de “dona de casa”.

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Vamos usar como base uma configuração considerada comum: 2 filhos, sendo 1 bebê e o outro até 5 anos que moram com a mãe.

Olha só a conta:
– Auxiliar crianças pequenas a se trocarem, escovarem os dentes após acordar: 20 minutos;
– Preparo do café incluindo lavar a louça pela manhã: 30 minutos;
– Preparo do almoço incluindo lavar a louça: 60 minuto;
– Preparo do jantar incluindo lavar a louça: 40 minutos;
– Lavar, estender, recolher, passar, dobrar e guardar roupas: 90 minutos;
– Auxiliar as crianças no banho: 40 minutos;
– Limpeza rotineira da casa como varrer, passar pano, tirar poeira do dia a dia: 45 minutos;
– Amamentar por 20 minutos por mamada, 8 vezes ao dia: 160 minutos;
– Trocar fraldas (média de 6 trocas de 10 minutos cada): 60 minutos;
– Auxiliar criança nas idas ao banheiro: 15 minutos
– Brincar com as crianças e pausas para auxiliá-las ao longo do dia: 60 minutos;
– Colocar as crianças pra dormir: 40 minutos;
– Em período escolar levar e buscar criança: 60 minutos;
Nessa soma temos 12h de trabalho.

Qualquer mãe que estiver lendo isso ainda pode dizer que o tempo é subestimado em muitas das funções . Você pode sentir falta do horário de pausa, de refeições, banho e o mínimo de autocuidado para a mãe. Mas a verdade é essa. Não sobra tempo para além de dormir.

A sobrecarga de trabalho doméstico faz com que mulheres sacrifiquem oportunidades de aprendizado e de crescimento pessoal. Faz com que não tenham tempo para atuarem de forma plena nos trabalhos remunerados, faz com que atuem em trabalhos informais ou tenham poucas horas disponíveis para seus negócios ou se trabalham contratadas vivem em um malabarismo constante de tempo.

O resultado é a dificuldade de conciliar o trabalho pago e o trabalho de cuidado e assim encontrar sua independência financeira. Segundo o relatório “Tempo de cuidar”, divulgado pelo HeForShe Brasil liderado pela ONU mulheres “mulheres e meninas ao redor do mundo dedicam 12,5 bilhões de horas, todos os dias, ao trabalho de cuidado não remunerado – uma contribuição de pelo menos US$ 10,8 trilhões por ano à economia global – mais de três vezes o valor da indústria de tecnologia do mundo”.

É por isso que quando dizemos que “as mães movem o mundo”, na Maternativa, empresa onde sou diretora-executiva e sócia, não estamos falando só do cuidado e do amor que transferimos aos nossos filhos mas também do valor que todo esse trabalho gera para sociedade.

Como mudar essa relação?

“Quanto tempo tenho pra matar essa saudade? Meu bem, o ciúme é pura vaidade. Se tu foge, o tempo logo traz ansiedade. Respirar o amor, aspirando liberdade” 

Ai que saudades que eu senti de mim mesma depois que me tornei mãe. Eu sentia que precisava de tempo para mim mas não conseguia encontrá-lo. Demorei demais achando que eu era a única que sabia cuidar “da forma certa” dos meus filhos e para começar a dividir a responsabilidade do cuidado deles com o pai, aceitando que a forma como ele cuidava era diferente mas que também podia ser certa.

Perceber o cuidado como posse, me fez esquecer os “ciúmes” e, enfim, começar a encontrar um pouco mais de liberdade. O primeiro passo para descolar tempo para nós mesmas é a gente reconhecer o valor do nosso trabalho e também entender que o cuidado de uma criança é responsabilidade não só nossa, mas também do pai, companheiros e companheiras, famílias e de toda sociedade.

Para mudar também precisamos romper um padrão que replicamos. E é um processo que envolve tempo e para acontecer precisamos alterar pequenos hábitos no nosso dia a dia, expressando nossos sentimentos e agindo na direção da mudança. Precisamos parar de romantizar a atuação dessa super mãe “dona de casa” exemplar, que com amor faz todo trabalho de cuidado sozinha porque coloca seus filhos e seu lar como prioridades sem se queixar. Esse padrão mantêm as mulheres em um lugar de fragilidade, onde muitas vezes dependem dos seus companheiros financeiramente por longos anos e, às vezes, por toda vida.

Quando percebemos que somos agentes de mudança podemos olhar para nossos filhos como potências de transformação para o futuro. Como mãe de dois meninos pratico no dia a dia uma educação que inclui os dois nas atividades domésticas e de cuidado da casa. Eles ajudam a varrer e limpar. O mais velho, de nove anos, já lava louça. O pequeno, de 5 anos, dobra
e guarda suas próprias roupas.

Ensino tarefas como ligar a máquina de lavar e como colocar sabão, e com essas atitudes mostro pra eles que é importante que eles contribuam para o cuidado e limpeza da casa. Ajudam a guardar os brinquedos, colocam no lugar alguma coisa que esteja fora do lugar certo, mesmo quando não é um pertence deles. Estimulo, elogio e explico como essas atividades vão torná-los adultos independentes e responsáveis.

Percebo que muitas amigas, mães de meninas, despertam suas filhas para além do estereótipo de cuidado. Garotas precisam ser estimuladas na matemática, na ciência e tecnologia e precisam ser incentivadas a serem independentes e a reconhecerem seu valor para além do papel de serem mães e donas de casa no futuro. Precisam ser estimuladas a amar a si mesmas e a buscar liberdade de expressão.

A mudança pode ser demorada mas boa parte dela está nas mãos de muitas de nós. Mesmo que hoje possamos estar sobrecarregadas, podemos construir através dos nossos filhos um futuro que permita que as tarefas de cuidados sejam melhores divididas entre mulheres e homens.

Uma outra mudança fundamental passa por como ajudamos mulheres a ocupar lugares de poder na nossa sociedade, onde elas possam crescer profissionalmente, contratar outras mulheres para tornar os ambientes das empresas mais diversos e respeitosos. Mulheres que possam ocupar lugar de poder no governo para alterarem leis que protejam as mulheres e as crianças, leis que incluam licenças parentais e até leis que alterem nossa atual legislação trabalhista e jornadas de trabalho para que sejam mais compatíveis com a vida do trabalho de cuidado.

Quando mulheres conseguirem encontrar um lugar de divisão igualitária do tempo, elas podem enfim encontrar o bem viver. Menos sobrecarregadas, esperamos que nesse futuro o recurso mais valioso da existência humana – sim, o tempo –  será utilizado e dividido de uma forma mais justa. Se não para nós, que esse novo tempo possa ser vivido pelos nossos filho, netos ou bisnetos.

Minha dica final – já que reguei esse texto com trechos de musicas – é você tirar um tempo para refletir sobre como a falta de tempo te abala, mas também para encontrar um tempo só para você. Para sua playlist, indico começar escutando a musica Pitty “Desconstruindo Amélia”.

 “Já é tarde, tudo está certo. Cada coisa posta em seu lugar. Filho dorme, ela arruma o uniforme. Tudo pronto pra quando despertar. O ensejo a fez tão prendada. Ela foi educada pra cuidar e servir. De costume, esquecia-se dela. Sempre a última a sair. Disfarça e segue em frente. Todo dia até cansar. E eis que de repente ela resolve então mudar “

Fizemos uma playlist com as músicas citadas nesta coluna:

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