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É normal explodir, mas precisamos urgentemente falar sobre raiva materna

Entenda de onde vêm e como lidar com os ataques de agressividade, um sinal claro da sobrecarga de tarefas e de exigências impostas às mulheres.

Por Chloé Pinheiro
Atualizado em 31 jul 2020, 11h04 - Publicado em 31 jul 2020, 10h58

No último Dia dos Namorados, Thuany Pereira Tirapani e o marido, pais de uma menina de 1 ano e 8 meses e de um menino de 3 anos, planejaram um jantar especial em casa. Pouco antes da hora combinada, o filho mais velho fez cocô no box do banheiro durante o banho. Ela respirou fundo, limpou tudo e desceu para o andar térreo da casa para começar as comemorações. 

Pouco tempo depois, mais um número 2 fora do lugar, dessa vez por todo o banheiro social. A mãe ficou nervosa, mas se controlou, não queria estragar a noite romântica planejada. Tudo limpo, o casal sentou no sofá para tomar um vinho antes do jantar. 

Neste momento, o filho, em um ataque de birra, jogou o brinquedo na taça recém-enchida da mãe, que se espatifou, lançando vidro, vinho e brinquedos para todos os lados. “Me vi em um ataque terrível de fúria, gritos, choro intenso, eu extrapolei completamente, cancelei nossos planos, botei todo mundo para dormir e disse que ninguém mais ia comer naquela noite”, relembra a publicitária de Santo André/SP, que tem 28 anos. 

Se você é uma mãe lendo esse texto, certamente se identifica com o relato de Thuany. “Eles já aconteciam antes, mas creio que com a quarentena, e as 24 horas de convivência diária, ficaram mais frequentes, ao menos para mim”, relata. Falar sobre isso é tão dolorido quanto necessário.

De onde vem a raiva materna?

Primeiro, vale esclarecer que é normal sentir irritabilidade e até mesmo raiva do filho. “A maternidade, especialmente na primeira infância, é um momento de grande tensão, ansiedade, onde a própria criança está se descobrindo no mundo e a mãe, além de compartilhar essas emoções do filho pequeno, ainda é demandada cada vez mais”, comenta Fernanda Aoki, psicóloga mestra pela Universidade de São Paulo (USP).

Por isso, uma explosão do tipo, cercada de choro, lágrimas e até atitudes agressivas costumam ser, sobretudo, um sinal de sobrecarga materna. “A raiva vem também vem do fato de não lidar bem com a frustração de não conseguir dar conta de tudo, o que é realmente impossível, mas é imposto para as mulheres”, complementa Daniela Generoso, psicóloga pós-graduada em neuropsicologia.  

Trata-se de uma das poucas reações possíveis em um mundo que não exige nada além de perfeição materna. “É comum que a mulher sinta que não tem permissão para reclamar, então uma explosão pode ser uma manifestação de sofrimento emocional”, aponta Isabella Thomé Lopes, psicóloga do Hospital e Maternidade Santa Joana. 

A raiva pode ser também um sinal de depressão ou outro transtorno?

Até pode, mas o mais provável é que seja um resultado de um estresse acumulado por muito tempo. Para entender se os episódios de explosão podem significar um transtorno psicológico, é bom prestar atenção na intensidade e na frequência em que eles acontecem, além do impacto na vida. 

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A idade da criança também influencia na investigação sobre o problema. A depressão pós-parto, por exemplo, pode se manifestar com episódios de irritabilidade, entre outros sintomas. “Ela pode atingir em uma em cada quatro mulheres, e vem acompanhada de choros desesperados, dificuldades de sentir afeto pela criança ou por si mesmo, ansiedade grave e pensamentos destrutivos em relação a ela ou ao bebê”, diferencia Fernanda. 

Outro momento onde os picos de raiva podem ficar mais frequentes, sem necessariamente indicar um transtorno, é por volta dos dois anos. “Nesse momento, a criança que até agora falava apenas sim passa a rejeitar a mãe e testar os limites dos adultos. Se não estivermos bem resolvidos emocionalmente, entraremos em disputa com ela”, destaca Fernanda. 

De qualquer maneira, ao perceber a dificuldade em lidar com as emoções e se sentir sobrecarregada, o ideal é procurar ajuda psicológica para entender a origem desse estresse. “Muitas vezes, pode ser algo fácil de resolver, como uma questão de gerenciamento de tempo, ou exigirá uma terapia mais prolongada”, aponta Daniela. 

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A culpa e a necessidade de recompensar 

Quem já foi acometido por um episódio de fúria parental sabe que logo depois pode vir aquela sensação de culpa terrível. “Apesar de ser um sentimento normal, a culpa vem e pode inclusive deteriorar ainda mais a saúde mental e a própria identidade da mãe”, destaca Fernanda. 

O remorso pode ser tamanho que, logo depois da explosão, surge a necessidade de compensar aquilo para a criança, seja cedendo um pouco em uma regra, ou quebrando a rotina alimentar com um doce, enfim, qualquer “mimo” extra para que o filho esqueça o que aconteceu. 

Só que essa não é uma tática recomendada pelas especialistas. “Se a criança percebe que pode obter recompensas toda vez que a mãe estiver desorganizada emocionalmente, pode se acostumar a viver nesse padrão”, pontua Isabella.

Que tal aproveitar o momento para ensinar ao filho que é normal se sentir mal de vez em quando e ser verdadeiro sobre seus sentimentos? “Reconheça que errou, conte porque ficou brava e que essa situação é temporário. Isso é inclusive uma maneira de favorecer o desenvolvimento emocional da própria criança”, continua a psicóloga do Santa Joana. 

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Se estiver muito nervosa e não quiser falar, se afaste um pouco, esclareça que está tudo bem, mas que precisa de um tempo longe da criança. “É bom não mentir, mas também deixar bem explicado que voltará a falar com ele, se não o filho se preocupa excessivamente por ter ‘perdido’ o amor da mãe”, complementa Fernanda. 

Impacto negativo na criança 

Nem sempre é possível antecipar um episódio do tipo, mas o ideal é entendê-los e agir preventivamente para que não haja um impacto negativo no comportamento do filho. “Ele pode entender que é assim que se responde a algo negativo, e isso influenciará na maneira como lida com as frustrações lá na frente”, diz Isabella. 

Como sempre, os pais são o exemplo maior na primeira infância. “Vivemos em uma cultura que não aceita o erro, e o erro está sempre muito vinculado à culpa, então lidarmos melhor com isso é também uma estratégia para treinar o filho a se autorreparar emocionalmente e vivenciar suas dores futuras”, complementa Fernanda. 

Normalizando a raiva e as imperfeições maternas

O primeiro passo para lidar melhor com a raiva é assumi-la, sem julgamentos, acolhendo as próprias emoções. Você não é a única pessoa do mundo a sentir raiva do filho, pode acreditar. “É um sentimento que todos sentem, mas poucos admitem”, comenta Daniela. “O importante é olhar para isso não com o tom de condenação, mas de cuidado: como posso sarar essa ferida?”, ensina Fernanda. 

Quem partilha da vida íntima com a mãe tem papel fundamental nesse processo de aceitação. “Ter alguém que oferece suporte e com quem é possível compartilhar as emoções negativas também ajuda muito a lidar com elas”, pontua Isabella. 

A partir do momento em que a percepção sobre os próprios sentimentos fica mais aguçada, passamos também a perceber melhor nossos limites. Quando isso acontece, podemos pressentir que uma explosão vem por aí e reconhecer seus gatilhos.

É o caso de Thuany, que conhece bem os minutos que antecedem a explosão. “Quando as coisas não estão acontecendo como eu gostaria, sinto meu corpo esquentar, penso, penso, penso, respiro, mas nem sempre consigo controlar”, conta Thuany. 

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Veja algumas dicas elencadas pelas psicólogas ouvidas pela reportagem para lidar com esses momentos: 

  • Assuma o que está sentindo, dê nome às emoções e não tente mascará-las. 
  • Respire, contando as inspirações e expirações se necessário. A respiração ajuda a dar clareza e tempo para pensar e agir. Técnicas de meditação podem ajudar. 
  • Está sentindo uma raiva extrema naquele momento? Se afaste da criança para pensar sobre o assunto. 
  • Escolha as brigas que irá encarar. Algumas coisas que as crianças fazem são inofensivas, e muitos “nãos” ditos por elas apenas testam os limites dos pais – será que vale a pena brigar por isso? 
  • Se você errou, peça desculpas e converse claramente com a criança sobre o que houve, respeitando os limites da idade. 
  • Mantenha um canal de diálogo aberto com o parceiro, parceira ou outra pessoa de referência que possa te ouvir sem julgamentos sobre emoções negativas, e verbalize insatisfações, inclusive relacionadas à divisão de tarefas da casa e dos cuidados. 
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