“Quando a Alice chegava nas 150 convulsões, eu parava de contar”

Conheça a história de Alice, de 7 anos, que surpreendeu em seu tratamento contra a Síndrome de West, e veja os direitos das crianças com doenças raras!

Por Flávia Antunes
Atualizado em 31 mar 2022, 10h33 - Publicado em 28 mar 2022, 15h27
Mãe e filha
 (@vencendoasindromedewest/Instagram)
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Diagnóstico difícil, tratamentos de alto custo e pouca informação sobre os direitos disponíveis. É diante desta realidade delicada e angustiante que vivem os cerca de 13 milhões de brasileiros que têm alguma doença rara.

“De acordo com a definição da OMS, recebem essa classificação as doenças com frequência menor que 65 casos a cada 100 mil pessoas. Ou seja, um caso a cada 2300 pessoas”, explica a médica geneticista Rayana Maia. Dentre as condições mais comuns, estão os erros inatos do metabolismo e síndromes que causam malformações.

Cenário distante? É assim que a cearense Talita Felipe de Vasconcelos, física de 41 anos e mãe de três filhos, via as doenças raras – até ouvir do médico de sua filha o seguinte veredito: Síndrome de West, forma rara de epilepsia na infância

A pequena Alice, agora com sete anos, recebeu o diagnóstico com pouco mais de seis meses depois de seu nascimento, e logo embarcou em uma jornada cheia de medicamentos, procedimentos médicos e muita incerteza por parte da família.

Hoje, com suas crises epilépticas controladas e reaprendendo várias etapas do desenvolvimento, a menina ganhou um perfil nas redes socais administrado pela mãe onde compartilha o dia a dia de conviver com a doença rara. “O mínimo que posso fazer é levar esperança para as outras famílias, pelo milagre que recebi”, conta Talita.

Confira o relato da mãe na íntegra e, ao fim da matéria, informações sobre os direitos das crianças com condições raras e como pleiteá-los.

Da primeira crise até o diagnóstico

“A Alice se desenvolveu muito bem até os 6 meses de idade. No dia do aniversário de três anos da minha filha mais velha, a Thais, a Alice começou a ter crises, e eu não sabia do que se tratava. De repente, a cabeça dela começou a cair para frente como se estivesse engasgada, e na hora vi que algo não estava legal e corremos para o hospital.

A médica disse que era uma náusea, mas não acreditei. Então o pediatra pediu alguns exames e, um deles, o eletroencefalograma, mostrou que a minha filha estava com a atividade elétrica do cérebro alterada. 

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A frequência das crises começou a aumentar, mas o médico da emergência disse que não poderia fazer nada. Fui atrás do diretor do hospital e foi a primeira vez que ouvi o nome “Síndrome de West”. Lembro que olhei para ele e perguntei “doutor, isso é grave?” e o olhar dele já disse tudo.

Voltamos bem angustiados e entendi que a Síndrome de West é uma forma rara e muito agressiva de epilepsia na infância, porque deixa sequelas a cada espasmo (que é um tipo de convulsão). 

Conseguimos consulta com um neuropediatra e partimos para uma investigação muito minuciosa –  com ressonância do cérebro, exames de sangue, de urina e muito mais. Mesmo assim, não tínhamos nenhuma resposta. Era muito difícil, porque vários exames eram muito caros e o plano de saúde não cobria. Às vezes, a Alice ficava de 8 a 10 horas em jejum e, na hora do exame de sangue, não conseguia a coleta.”

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Tratamento agressivo, mas que surtiu efeito

“Depois de um tempo, a Alice iniciou a medicação, mas não era a mais indicada, porque não controlava as crises. Ela continuava tendo tendo todos os dias. A cada vez, ela tinha cerca de 150 convulsões. Eu contava para monitorar, mas quando chegava nesse número, eu parava. Em alguns dias, passavam de mil. 

Então, entre a sexta e sétima aplicação hormonal, o médico pediu um exame para ver se minha filha não estava mais tendo crises. Lembro que a médica ligou e disse: ‘Talita, parece um milagre, mas o exame da Alice deu normal’.

Não consigo lembrar desse dia e não me emocionar profundamente, porque foi uma alegria muito grande. Não esperávamos um exame normal, e simplesmente o eletroencefalograma apareceu ‘limpo’, sem resquício de atividade elétrica fora do normal. Até hoje, os exames dela sempre têm sido normais.”

Terapias e mais terapias

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“A partir daí, a Alice começou a evoluir e a reaprender as coisas. A segurar os objetos, a voltar a se alimentar deglutindo, a engatinhar, andar (com um ano e sete meses). Ela continuou tomando o anticonvulsivante até março de 2020, no início da pandemia. 

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Por volta deste época, o médico propôs o desmame da medicação, mas eu achava precoce. Mesmo assim, eu e meu marido resolvemos encarar e, após seis meses, a Alice teve uma crise de novo. Felizmente, repetimos o exame e vimos que tinha sido só um ‘escape’, uma reação do organismo diante da retirada do remédio. 

Hoje a Alice vai à escola e, apesar de ter um atraso no desenvolvimento global – principalmente na linguagem – ela evolui muito lindamente. Ela é muito observadora, muito sensível. Já fez fisioterapia, musicoterapia, hidroterapia… As demandas vão mudando, e hoje ela faz fonoaudiologia, terapia ocupacional, ABA (uma terapia comportamental) e psicopedagogia por conta das demandas da escola. 

Todas essas terapias são muito caras. Tivemos que entrar na Justiça, porque os tratamentos que o plano concedeu não eram suficientes. Hoje temos uma liminar contra o plano de saúde, que o obriga a custear as terapias da Alice – mas nem todas, o ABA e a psicopedagoga pago particular, por exemplo.”

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Os efeitos (devastadores) da falta de informação

“Não tinha ninguém com deficiência na família, então não sabia dos direitos – e acho que ainda não sei totalmente. Sei que minha filha, por lei, precisa ter alguém que a acompanhe na escola, um plano de aprendizagem individualizado, uma adaptação curricular – mas antes não sabia. 

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Se as famílias não buscarem esses direitos, não é a sociedade que chegará com eles de bandeja. Temos que lutar por eles, com empatia. O direito é garantido pelo Ministério Público, e a família que precisa pode – e deve – solicitar o tratamento gratuito na Defensoria Pública.

Se a criança tem plano de saúde, pode solicitar via plano de saúde, porque sem o acesso das terapias o desenvolvimento será muito prejudicado. Já se não tem convênio, tem que pleitear pelo Estado. Aqui em Fortaleza, há alguns núcleos pelo SUS que atendem crianças com deficiência – mas a demanda é enorme, então não dão conta. Vejo muitas famílias que não vão atrás por falta de informação.  

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Um caso que me marcou muito foi quando a Alice chegou na internação para fazer seu último tratamento. Lembro que a enfermeira perguntou o que estávamos fazendo lá e respondi que era o tratamento para a Síndrome de West. Na hora, os olhos dela encheram de lágrimas, e contou que sua filha também tinha a doença. Ficou visivelmente abalada.

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Um ano depois, em 2016, a Alice teve bronquiolite e teve que ficar internada novamente. Ficamos no mesmo hospital e lembrei da enfermeira. Fui perguntar dela e contaram que a filha dela havia falecido devido às sequelas das crises.

Aquilo me abalou demais. Era uma criança que não teve acesso aos tratamentos que tivemos – a medicação usada para o tratamento era de alto custo, importada. Será que se ela tivesse tido acesso aos medicamentos teria sobrevivido?”

Para quem recebe o diagnóstico difícil do filho…

“Recomendo que procure famílias que passaram ou estão passando pela mesma situação. Porque às vezes pesquisando na internet você só acha o pior prognóstico e se desespera, perde as esperanças.

Uma boa parte do sucesso do tratamento é acreditar. Se nem eu, que mais amo minha filha no mundo, acreditar que ela vai superar, quem acreditará?

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Recebo semanalmente muitas famílias que chegaram ao perfil da Alice buscando experiências semelhantes e que as enchem de esperança. O mínimo que posso fazer é levar esperança, pelo milagre que recebi.

O mês de março é o mês roxo, dedicado à luta para tirar o estigma da epilepsia, ainda muito cheia de preconceito. Por isso, não me constranjo se alguém vem me perguntar sobre a Alice – é a chance que tenho de conscientizar!”

Conheça os direitos das crianças com doenças raras

“Os direitos dos pacientes com doenças raras começam antes mesmo do diagnóstico, porque todos os esforços empreendidos na trajetória diagnóstica são direitos das crianças e suas famílias”, afirma Henderson Fürst, Presidente da Comissão Especial de Bioética da OAB-SP e advogado da área médica.

Aliás, por se tratarem de doenças genéticas, as condições raras geralmente se manifestam ainda na infância – o que faz com que o diagnóstico precoce seja fundamental para um melhor prognóstico.

No mesmo sentido, o tratamento adequado – inclusive os de alto custo – também é um direito dessas crianças. Costumam ser caros no caso das doenças raras por se tratarem de drogas órfãs, ou seja, substâncias que dizem respeito a uma pequena parcela da população.

“Além do tratamento principal, uma série de tratamentos acessórios para a melhor qualidade de vida são direito dessas crianças”, completa o advogado. Isso inclui, por exemplo, nutrições especiais para atender às necessidades específicas de desenvolvimento, a contratação de um cuidador e até mesmo cuidados com os pais e responsáveis.

No âmbito social, os pequenos têm direito à educação. Isso significa que nenhuma escola pode se recusar a fazer a adequada inclusão na sala de aula, prestando toda a assistência necessária, o que envolve eventuais adaptações da metodologia, inclusão de professor ou apoiador, etc.

“Isto também diz respeito a outras atividades sociais da infância, como clube, escola de idiomas, igreja e outras esferas que insiram a criança na vida social”, acrescenta Henderson.

Dependendo da renda familiar, e no caso de pessoas com deficiências físicas causadas por uma doença rara, é possível recorrer a uma ajuda financeira. “É o chamado Benefício de Prestação Continuado (BPC), que é uma lei de assistência social que garante um salário mínimo quando a renda familiar for de até um quarto do salário mínimo por pessoa”, explica Amira Awada, advogada no Instituto Vidas Raras.

Desde 2014, há a Portaria número 199 no SUS, que reconhece e dá atenção às pessoas com doenças raras. “A medida surge depois do trabalho de muitas instituições e impõe a criação dos centros de referência para tratar doenças raras, por exemplo, mas ainda é pouco. Precisamos que as políticas de atenção à pessoa com doença rara sejam mais robustas, com orçamento próprio e suficiente para atender a essa população”, lembra Amira.

Apesar da ação do poder público, nem sempre as próprias instituições de saúde estão cientes do que devem oferecer. Portanto, para as famílias que receberem o diagnóstico e precisarem buscar seus direitos, a orientação do advogado é procurar a Defensoria Pública ou um advogado de sua confiança.

“Isso porque muitas vezes é preciso efetivar esses direitos por meio do poder judiciário. Caso o poder público não aceite realizar algum exame ou fornecer algum tratamento, por exemplo, a família pode judicializar a questão”, comenta.

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