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A revolução dos cachos infantis: uma lição de amor e resistência

No Dia da Mulher, mães abrem o coração sobre a maternidade negra em relatos emocionantes e dão dicas para valorizar o cabelo afro.

Por Chloé Pinheiro
Atualizado em 9 mar 2018, 10h34 - Publicado em 8 mar 2018, 17h33
Aliya Fernandes.  (Priscilla Santos da Silva/Arquivo Pessoal)
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Apesar do amor e da satisfação em ver uma filha crescer, ser mulher e mãe às vezes é uma tarefa difícil. E quando se cria uma menina negra, há um desafio extra: lidar com o racismo que ainda permeia as relações no Brasil desde a infância.

Não dá para negar que recentemente os cachos ganharam espaço na mídia e na internet, mas é fato também que crianças de cabelos crespos e pele escura ainda são vítimas de ofensa e bullying, como atestam os casos que vira e mexe são divulgados na imprensa e as mães ouvidas nesta reportagem.

“A relação da mulher negra com o cabelo é muito conturbada, as pessoas falam como se tivesse que dar um jeito, como se o cabelo fosse ruim”, conta Priscilla Santos da Silva, 32, carioca mãe de Aliya, de 7 anos, que tem cabelo 3C (veja sobre os tipos de cachos abaixo), com cachos estruturados e textura próxima do crespo.

Tanto que, mesmo crescendo em um lar que valoriza as madeixas afro, quando tinha 4 anos, Aliya chegou em casa um dia reclamando que não gostava mais do próprio cabelo. “Ela dizia que queria ter um igual ao da Elsa, do filme Frozen, que era liso e loiro. Aquilo me afetou profundamente”, relembra Priscilla.

Depois de muita conversa, a mãe descobriu o motivo do desejo: uma colega de escola tinha dito que a boneca de Aliya, por ser negra, era feia. “Eu segurei as lágrimas e expliquei que o cabelo dela era lindo, que ela era linda e que a amiguinha só não tinha o conhecimento que ela já tinha de que as pessoas eram diferentes e os dois cabelos eram bonitos”, resgata.

“Sei que não vou conseguir blindar minha filha das situações que ela passará por conta do racismo, mas me esforço para que ela sofra menos do que eu sofri”, continua Priscilla. O caminho não é fácil, mas com as vivências da própria infância e aprendizados conquistados ao longo da vida, ela e outras mulheres acabam aprendendo a lidar com situações como essa. E fazem de tudo para prestigiar os cachos e a beleza das suas pequenas.

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(Priscilla Santos da Silva/Arquivo Pessoal)
Tipos de cabelos cacheados

Os cachos são classificados de acordo com suas características:

Tipo 2 – ondulado
2A: raiz lisa e ondas suaves, bem próximo do cabelo liso.
2B: um pouco mais definido do que o 2A, mas ainda com pouco volume.
2C: começa a formar ondas marcantes mais próximas da raiz e é mais cheio.

Tipo 3 – cacheados
3A: cachos abertos definidos da raiz às pontas e fios volumosos, costuma ficar com frizz em dias de chuva.
3B: cachos bem definidos e menores, como molinhas, que tendem a ficar ressecado nas pontas.
3C: muitos cachos pequeninos, que formam volume e fios mais grossos.

Tipo 4 – crespos ou afros
4A: cachos estreitos e fios grossos, formam um S quando esticados.
4B: os cachos têm formato de “z” e encolhem bastante de tamanho.
4C: os fios são grossos e o cachos quase imperceptíveis. Esse tipo de cabelo é mais seco naturalmente.

Ensinamentos do passado

Histórias como a de Aliya são uma constante para as mães de meninas negras. Mesmo assim, houve um tempo em que o cenário era ainda pior. “Quando eu era mais nova não se aceitava cabelo afro, nem eu me aceitava”, conta Carla Cavallieri, 33 anos, mãe de três meninas: Ágatha, de 11, Aisha, de 4, e Akillah, de 9 meses.

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Henê, bobes, brow, pente quente, relaxamento afro… São inúmeras as técnicas agressivas utilizadas no passado – algumas até hoje – para alisar ou reduzir o volume dos fios. “Isso detonava o cabelo e acabava com a nossa autoestima. Com uns 12 anos, minha mãe foi obrigada a cortar o meu bem curto, pois estava muito danificado”, relembra Priscilla.

“Eu olho as fotos daquela época e não estou sorrindo em nenhuma, me odiava muito”, completa a mãe de Aliya, que há nove anos passou pela transição capilar. “Nossas mães não faziam por mal, mas foi imposto para elas culturalmente que o cabelo afro não era aceito”, explica Carla, que voltou ao seu cabelo natural – que ela nem lembrava mais como era – aos 26 anos de idade.

“São lembranças de muita dor e tristeza”, resume Priscilla. A experiência negativa de ontem virou aprendizado para o presente. E as coisas, felizmente, evoluíram. “Melhorou e muito a situação, a variedade de produtos e informações para cuidar de cabelos crespos cresceu muito da infância para os dias de hoje”, relata a cantora Negra Li. Mãe de Sofia, de 8 anos, a cantora tem uma linha de produtos voltados para cachos e crespos.

https://www.instagram.com/p/BZt_B-0H7rn/?taken-by=negrali

“Hoje eu posso criar minhas filhas com cabelo crespo. Elas vão desde cedo se amar, se reconhecer, não vão passar pelo mesmo processo que eu passei”, comemora Carla. A mãe é, como sempre, espelho. “A relação da minha filha com o cabelo foi totalmente diferente, porque ela já nasceu com uma mãe com o cabelo natural”, concorda Priscilla. Mesmo assim, há altos e baixos.

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“A família do pai da Ágatha é branca de cabelo liso, então ela queria muito ter o cabelo liso quando era menor. Mas não alisamos e hoje, com 11 anos, ela é tão militante como eu e já fez meninas da idade dela terem vontade de voltar ao cabelo natural”, relata Carla.

Carla Cavallieri no centro, a filha Ágatha à direita, Akillah com a chupeta, o marido Samuel e Aisha de rosa.
(Carla Cavallieri/Arquivo Pessoal)

Texturas diferentes

Renata Germano, de 31 anos, tem a pele branca, os fios lisos e é casada com um homem negro. A filha, Rafaella, hoje com 6 anos e lindos cachos 3B na cabeça, nasceu em Moçambique, na África, enquanto os pais, missionários, trabalhavam lá.

“Tive dificuldades no início porque não sabia lidar com o cabelo dela, então pesquisei bastante”, conta a mãe, que, ao ter uma filha negra, passou também por um processo de descoberta. “A minha infância foi muito diferente da dela, pois o cabelo liso é aceito. Mas antes de ter a Rafaella eu não entendia isso”.

Há alguns anos, a pequena foi vítima de racismo na van escolar, relato compartilhado aqui no Bebê.com.br. “Ela normalmente é a única negra na escola e entre os amigos, então tento enaltecer a todo momento a negritude dela e inserir a temática negra em sua vida”, conta Renata. “Hoje ela tem muito orgulho do cabelo, da cor e, principalmente, de ser africana”, comemora.

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A rotina de beleza

Crespos e cacheados exigem cuidados específicos. Mas, com o boom de blogs, produtos e influenciadores digitais neste nicho, as mães temem agora outra ditadura: a do cacho perfeito. “Faço tratamentos no tempo da Aliya, quando o cabelo dela pede. Não quero impor a ela um padrão que possa causar lembranças dolorosas, como aconteceu comigo”, aponta Priscilla.

Um dos sinais de que é hora de hidratar ou umectar, para as mães, é quando os fios começam a embolar nas pontas. “Costumo usar óleos naturais, como o de coco e de amêndoas e procuro cortar com profissionais especialistas em crespos”, indica Priscilla. Outra dica é ficar de olho nos penteados. “Sempre procuro ideias de inspiração afro, faço tranças, coquinhos e outros que exaltam a negritude e preservam o cabelo delas”, conta Carla.

Eles são uma maneira prática de valorizar o cabelo. “A dificuldade em cuidar é que toma tempo, então durante a semana nós prendemos, lavamos e aos finais de semana deixamos solto para a Sofia exibir à vontade, o que ela ama fazer!”, acrescenta Negra Li. Além de exibir as madeixas livres, a pequena ama tranças no estilo boxeadora.

https://www.instagram.com/p/BUm-6cZl63l/?taken-by=sofiakymani

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O poder do exemplo

Priscilla com o marido Pablo e a filha, Aliya.
(Fotógrafa Gabi Alves/Arquivo Pessoal)

Para manter a autoestima das meninas em dia, as mães são unânimes em dizer que, sim, representatividade importa. “Além do pai e da mãe, a criança precisa de outras referências para se sentir bonita, precisa entender sua origem, seu passado, então conversamos muito sobre nossa descendência africana”, conta Priscilla.

“Com representatividade conseguimos trabalhar a autoestima e também contando a verdadeira história do nosso povo desde cedo”, concorda Negra Li. Entram aí os filmes, livros e séries com personagens negros, por exemplo. Mas há um limite do quanto os pais podem oferecer. “A luta agora é para que eles não passem por situações racistas na sociedade e aprendam na escola sobre as suas raízes”, opina Carla, que é historiadora e professora.

“A criança deve se reconhecer e a Rafa fica muito feliz quando vê alguém igual a ela em um desenho, pois é raro que isso aconteça”, destaca Renata, que encontrou na internet uma maneira de conectar a filha ao universo negro. Hoje a pequena tem um perfil no Instagram, no qual compartilha seus looks com seguidores.

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Desenvolvendo uma característica que eu aprecio muito, Rafa questiona e opina, sobre tudo que vê e ouve. Hj falamos sobre a Consciência Negra. Expliquei que é um dia de reflexão (afinal vivemos num país onde é necessário que as pessoas lembrem da importância da inserção do negro na sociedade, e a luta diária que se trava por causa da discriminação racial). Falei que no Brasil, durante muito tempo negros serviram a brancos como escravos. De Zumbi (Que é o motivo da escolha de 20/11 – data atribuída a sua morte) à Taís Araújo, Viola Davis… e tantos outros ícones que se posicionam nessa sociedade cruelmente racista. É delicado falar sobre algo que eu não vivo, afinal nasci com o privilégio branco, que significa usufruir de oportunidades e escolhas sem ter que pensar sobre isso. E justamente por possuir privilégio que é difícil entender que, apesar da liberdade para se esforçar e lutar pelo que se deseja, não são todos que atingem a linha de chegada com o mesmo sucesso… Integrar sem ser integrante, empoderar sem me apropriar, saber o que posso ou não falar, usar esse espaço pra dar voz a minha filha sem saber na pele (literalmente) a dor que ela sentiu ao ser por vezes discriminada por sua cor. Não vivemos o Apartheid no Brasil, e nem moramos no Sul do EUA, mas estamos um país onde 53% da população declarada é Negra , e dentre os 1% dos mais ricos apenas 17,8% são ocupados por eles … A segregação racial é paralela a social, conscientizar-se sobre isso e entender o seu lugar de fala e não fala, é uma forma de ajudar. Quando a pessoa não atenta para as posições que ocupa numa escala de privilégio, dificilmente fica explícito se ela está colaborando, mesmo que por viés inconsciente, com atitudes e ações preconceituosas. O racismo, portanto, se reproduz nessa estrutura de privilégios pq é dentro dela que o preconceito de cor exerce seu poder: criar obstáculos Ser mãe de uma menina preta, me fez enxergar coisas que outrora eu não sabia… Eu olho pra trás e penso : Como eu nunca vi nada disso antes de ser mãe da Rafa? Muito embora eu nunca vá saber o que é sofrer racismo, eu luto diariamente pra que a minha filha, preta e africana, não sofra. Concientize-se!

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Aliás, se estiver em busca de inspiração, as outras mães que colaboraram nesta reportagem também dividem o dia a dia da maternidade e retratos fofíssimos dos filhos no Instagram. A Carla está no Nana Maternidade Preta, Negra Li e sua filha Sofia têm perfis individuais. Já a Priscilla compartilha a rotina no Mãe Nada Convencional.

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