Por mais que a notícia de ganhar um filho seja recebida, na maioria das vezes, com euforia e entusiasmo, para nós, mulheres, ela é sempre acompanhada por um fundinho de dúvidas e inseguranças. Afinal, a responsabilidade é inédita, as mudanças corporais e emocionais são imprevisíveis e os desafios que teremos que lidar mais pra frente, com o pequeno já em mãos, são impossíveis de mensurar.
Mas se essa caixa de incertezas já faz morada em muitas mães, ela pode ser ainda maior para aquelas que já lidam diariamente com barreiras físicas e sociais relacionadas à deficiência. É o caso de Quelen de Oliveira, de 35 anos, moradora do município de Itajaí, em Santa Catarina.
Cadeirante há 12 anos por conta de um acidente de moto, a catarinense pensou por muito tempo que nunca realizaria seu sonho de construir uma família. Preconceito de todos os lados e sequelas decorrentes da lesão medular pareciam obstáculos difíceis de transpor, mas não foram capazes de impedi-la de viver a maternidade com seu marido Felix Carvalho, com quem teve o filho Heitor, hoje com dois anos.
Neste Dia da Família, comemorado em 8 de dezembro, publicamos este relato que mostra a capacidade que as conexões familiares têm de transformar modos de vida, de nos fazer repensar nossas limitações e até de curar. Quelen nos conta como encarou a primeira gravidez, como está sendo gestar novamente em meio à pandemia e ainda deixa um recado importantíssimo para as mulheres que querem ser mães, mas que têm receios por conta da deficiência: “Temos uma capacidade que nem a gente conhece, e é passando pela dificuldade que compreendemos isso”.
Leia o depoimento na íntegra:
“O primeiro filho não foi planejado, então foi um susto. Eu até sabia que podia engravidar, mas tenho um aparelho implantado na minha coluna que uso para controle de dor e ele emite choques em meu abdômen, e eu achava que esse choque poderia passar para o meu filho. Depois, consegui falar com meu neurologista e vi que não seria um problema.
Mesmo assim, vieram dúvidas de se eu daria conta. Porque eu já morava sozinha antes de conhecer meu marido e sabia que conseguia cuidar de mim mesma, mas não sabia se poderia dizer o mesmo para um bebê. Então no início fiquei bem apavorada, pensava bastante, achei que ficaria limitada…
Mas não, foi vida normal até os oito meses. Trabalhei até o quinto mês como auxiliar comercial, depois aumentei os repousos por causa da pressão, do risco de trombose, de infecção urinária, coisas que uma mulher sem deficiência também pode enfrentar. Foi uma gravidez tranquila e fui deixando acontecer e sem me precipitar.
Depois que o Heitor nasceu, fui me adaptando conforme as necessidades. Eu costuro e fiz uma almofada de amamentação bem larga, que ele coubesse em cima – então eu conseguia mexer na cadeira com ele no meu colo. Também tinha uma bolsinha que conseguia vestir em mim, porque não me adaptei em colocar o sling sozinha.
O mais difícil mesmo foi lidar com as sequelas que eu tenho da lesão medular, que voltaram porque tive que parar com as medicações. Eu tinha, por exemplo, muita incontinência urinária, então toda vez que eu estava amamentando acabava perdendo urina e tinha que esperar meu filho acabar de amamentar, arrotar e dormir para que eu pudesse me trocar e limpar tudo. Nesta época, meu marido trabalhava em horário comercial e só chegava à noite”.
A deficiência pelos olhinhos do Heitor…
“Meu filho entende minha deficiência desde sempre e me ajuda muito. Todos olham para um cadeirante e pensam que é alguém limitado, então saber que uma pessoa depende inteiramente de mim e eu consegui suprir essas necessidades é uma grande conquista.
A relação do Heitor com a deficiência é totalmente natural. Ele nunca me pede para levantar, porque sabe que eu não consigo. Quando ele quer que eu pegue algo, pede para eu sentar na cadeira. Às vezes vou para o chão fazer alguma coisa e ele acha que eu caí e logo tenta me ajudar… Ele é bem preocupado comigo.
Além disso, acredito que ter uma mãe cadeirante o ajuda a lidar com as diferenças, porque desde bebê eu pedia ajuda para pessoas na rua por conta da minha limitação e nunca escolhi cor, gênero… Pedia para quem estivesse passando. Ele sempre foi simpático e por entender que a mamãe precisa de ajuda às vezes, ele também quer auxiliar todo mundo, seja criança ou adulto. Quando vê uma situação em que a pessoa precisa de algo, por exemplo, ele logo se manifesta e quer fazer isso pelos outros”.
Como está sendo gestar durante uma pandemia
“O plano inicial era engravidar ano que vem, mas acabou acontecendo este ano. Eu já não estava saindo muito, porque tenho dificuldade de levar meu filho já maiorzinho para os lugares, porque ele não para quieto. Então me adaptei: peço coisas em casa ou vou à mercados mais próximos, em que as pessoas já me conhecem e me atendem no carro.
A falta de suporte não foi uma novidade. Na gestação do Heitor eu já não tive rede de apoio, porque fomos morar em uma cidade vizinha em que não tínhamos ninguém da família por perto. Por isso, agora acho que estou tendo mais ajuda externa do que antes: às vezes me mandam alguma coisa, fazem algo para mim na rua, ou se preciso ir ao médico, deixo na casa de alguma amiga próxima para não ter que levá-lo. Então estou tendo mais ajuda agora do que antes da pandemia.
A maior diferença mesmo está sendo em relação aos sintomas. Porque na primeira gestação eu não tive enjoo, apenas um pouco de azia. Nesta, eu tenho muito cansaço, falta de ar, minha barriga cresceu mais rápido – então estou com mais limitação para fazer transferências -, sinto muita fome, passo mal com cheiros e estou mais emotiva.
Eu não sei como vai ser cuidar de dois, mas não estou pensando muito nisso. Fiquei mais assustada na primeira gestação, porque não tinha ideia de como seria, mas como já tenho a experiência com o Heitor, imagino que será mais fácil, ainda mais porque ele já tem certa independência.
Além disso, o meu marido vai pegar férias quando o bebê nascer e depois vai ficar mais 20 dias de licença, então serão quase dois meses em casa. Estou aliviada, porque na primeira gravidez eu não consegui fazer esse repouso – tive o bebê e já fui logo cozinhar e cuidar dele.
Acredito que a maior dificuldade vai ser dar atenção para dois. Não que terá uma disputa, mas sim uma demanda maior. Aliás, o Heitor parece bem animado – vê um bebê e já quer pegar, cuidar, faz de tudo para parar de chorar… Ele é um amor e recentemente começou a entender que tem um nenê na minha barriga, mas é imediatista e pede para tirar o irmão pra brincar com ele. Acho que será um supercompanheiro”
A rotina na quarentena
“Normalmente acordo primeiro e começo a limpar a casa. Faço o café da manhã do meu filho, espero para comer com ele e meu marido. Depois vou costurar um pouco – sou auxiliar comercial, mas estou afastada, então eu que faço todo o enxoval do meu bebê. Em seguida, faço o almoço.
O Heitor faz todos os dias atividades da escolinha e sempre participo quando envolvem habilidades manuais, mas quando não consigo espero meu marido chegar para fazer com ele. À tarde, damos uma descansada e à noite eu cozinho, vemos um filme ou fazemos algo todos juntos.
Agora, passei por um período de desfralde com ele e achei que teria muita dificuldade, porque minha casa não é adaptada e não consigo entrar no banheiro sem ajuda. Mas não, ele aprendeu sozinho, a entrar, usar a privada, lavar as mãos… Foi algo tão natural, representou uma grande conquista para mim.
A única coisa que regrediu durante a quarentena foi a alimentação. O Heitor ficou três meses sem comer comida salgada, levei até no médico mas descobrimos que era pelo estresse. Começamos a passear com ele em lugares mais isolados, onde não tem tanta gente, e ele começou a se alimentar melhor”.
Com as redes sociais, novas possibilidades…
“Apesar de agora as pessoas não estarem acompanhando a minha barriga crescendo, hoje temos as redes sociais e eu consigo compartilhar um pouco ali, então dá uma suprida. Mas sinto falta de poder me reunir com as amigas, compartilhar as experiências…
Antes eu era bem reservada, não postava muito… Mas ultimamente tem tanta gente pedindo, e estou vendo um retorno tão grande de todos os tipos de assunto – tanto da deficiência quanto da maternidade. Me faz bem saber que estou transmitindo coisas boas com postagens tão simples do meu dia a dia, que para mim são atividades normais da rotina.
Tem gente que fala que eu sou guerreira, que sou extraordinária… Mas não acho que sou guerreira, porque não estou em guerra com minha deficiência, sou bem resolvida quanto a isso”.
Maternidade que cura
“O sonho da minha vida era ser mãe. E por muitos anos eu desisti dele, porque achei que não teria uma família, nem um marido, porque existe muito preconceito e ele acaba impondo esse pensamento na gente. E de uma hora pra outra minha vida deu uma virada – tenho meu esposo, meu filho, agora estou sendo mãe novamente… Me sinto realizada.
Além disso, a maternidade foi uma cura para mim. Porque eu sofria de dor neuropática por muitos anos, tomei várias medicações, fiz várias cirurgias, implante de neuroestimulador, quase tive que colocar uma bomba de morfina dentro de mim, e nada dava certo. Descobri depois que um pouco da dor era por conta da lesão medular, mas grande parte era psicológica.
Quando engravidei achei que teria muita dor e o médico também, por conta da barriga crescendo e por eu ter que interromper as medicações. Mas, para a minha surpresa, a dor parou. A dor neuropática que eu sentia foi embora depois que engravidei, ele foi a minha cura. Agora, na segunda gestação, também não tenho dor nenhuma e não precisei mais tomar medicamentos”.
E para quem sonha em ser mãe…
“Eu diria que dificuldades todas vão passar, independente de ser deficiente ou não. Limitações todas têm – algumas são físicas e mais visíveis, outras menos -, mas a gente que determina se esse obstáculo vai afetar a nossa vida.
Eu decidi que não, então faço as coisas do meu jeito e não tenho problema em pedir ajuda. O medo vai aparecer para todas, principalmente quando é o primeiro filho, mas nós damos conta… Temos uma capacidade que nem a gente conhece, e é passando pela dificuldade que compreendemos isso”.