Autismo em meninas: um universo a ser desvendado
Elas podem sofrer mais que os meninos no dia a dia, problema contornado com estímulos diários e terapias complementares, mas diagnóstico ainda é desafio.
Uma menina é diagnosticada com autismo para cada quatro meninos. Só que, recentemente, estudos mostraram que essa proporção pode ser um pouco menor. “Ele continua sendo mais comum nos meninos, mas descobrimos que elas podem, desde cedo, mascarar os sintomas quando estão no consultório médico e na convivência diária, o que atrapalha o diagnóstico”, explica Allison Ratto, neuropsicóloga do Sistema Nacional de Saúde da Criança (CNHS, na sigla em inglês), dos Estados Unidos.
Allison é autora de um dos trabalhos que observou essa diferença, que se explica, em parte, por uma maior habilidade social natural e um aparente fator protetor do sexo feminino. “O cérebro das meninas é conectado de uma maneira diferente, mas também sabemos que a sociedade também espera coisas diferentes delas, o que impacta no comportamento”, comenta Allison.
Por isso, o autismo flagrado nelas até pouco tempo atrás era quase sempre mais grave, associado a problemas como a epilepsia e a hiperatividade. Só que há manifestações mais leves, que afetam o cotidiano, e podem até ser confundidas com timidez ou problemas de adaptação, cenário que felizmente está mudando. Um dos exemplos disso é a história de Laura, hoje com quase 4 anos, filha de Aline Vicente, 32, do Instagram Dia a Dia de Mamãe.
“A princípio, parecia que tínhamos a atenção dela, mas, por volta de um ano e oito meses, percebemos que havia algo diferente”, explica Aline. “Ela ainda não falava e não fazia gracinhas como as outras crianças”, continua a mãe, que levou a menina a um neurologista, que descartou a possibilidade de ser autismo, e a uma fonoaudióloga, que disse que o problema era falta de estímulo.
O diagnóstico veio um ano depois, quando Laura tinha já quase três anos. Mesmo antes disso, graças a um aviso da escolinha sobre o comportamento da pequena e às mensagens que Aline recebia em seu Instagram alertando para a possibilidade de autismo, a mãe já começou a buscar maneiras de incentivar seu desenvolvimento.
“Agora ela está ótima, fala, tem intenção de socializar, troca-se sozinha e aprende aos poucos a fazer as atividades da vida diária”, explica. “Se não tivesse começado cedo as intervenções, com certeza ela não estaria como está hoje”, completa. De fato, os estímulos fazem a diferença para o crescimento de quem tem qualquer grau do Transtorno do Espectro Autista (TEA) – o de Laura é leve, considerado de alto funcionamento.
Só que esse benefício depende do diagnóstico precoce, de preferência antes dos 3 anos de idade. “Quando isso ocorre, há maior chance de desenvolver a potencialidade. Não significa que ela terá um quadro leve, mas tem mais chances de uma criança que tem autismo moderado ir para leve ou de grave para moderado e assim por diante”, explica Mirian Revers, psiquiatra do Programa de Transtorno do Espectro Autista (Protea), da Universidade de São Paulo. É neste campo que ainda falta avançar.
A dificuldade no diagnóstico precoce
Em fevereiro, pesquisadores da Universidade de Warwick, na Inglaterra, anunciaram um teste de urina e sangue capaz de identificar casos de autismo com uma eficácia de até 92%. O exame avalia os danos causados por processos conhecidos como oxidação e glicação em algumas proteínas, que parecem ser mais elevados no autista, e foi testado em crianças com idades entre 5 e 12 anos.
Outros trabalhos de 2017 buscaram identificar alterações no cérebro do bebê autista enquanto os sintomas ainda estão imperceptíveis. Só que ainda não está claro se essas alterações químicas e neurológicas seriam o suficiente para revelar o transtorno ou antecipar as crianças que têm mais chance de sofrer com ele, até mesmo porque o autismo é um distúrbio que pode ter origens diferentes e se manifesta de maneiras que variam muito. “A ciência busca marcadores que identifiquem o autismo, mas por enquanto o diagnóstico é feito com base no comportamento”, explica Clay Brites, neuropediatra do Instituto NeuroSaber, em Londrina.
“Mas o maior desafio hoje ainda é treinar o olhar dos profissionais que acompanham a criança, como pediatras e professores, porque os pais muitas vezes notam o comportamento estranho e escutam que é preciso esperar o tempo da criança”, comenta a médica da USP. “Há marcos no desenvolvimento que devem ser respeitados, por exemplo, o fato de não falar nenhuma palavra com 18 meses”, exemplifica.
A desconfiança surge com o crescimento do baixinho e o TEA pode variar para além das classificações entre leve, moderado e grave. O que ajuda, aliás, a explicar porque as meninas demoram mais para serem diagnosticadas e podem até sofrer mais com o quadro.
De olho nos sinais sutis
Em geral, os sintomas são similares entre os gêneros, especialmente no começo da vida. Além da falta de contato visual, um dos mais chamativos é o atraso para começar a falar. Outro relato comum dos pais é a falta de atenção compartilhada, quando o pequeno não divide com os pais as coisas de seu interesse.
“Ela me puxava pela mão até algo que quisesse, como água, ao invés de apontar, e com 14 meses não falava nem balbuciava”, conta Bianca Farias Bittencourt, 38 anos, mãe de Isabella, diagnosticada com TEA em grau leve aos 18 meses, uma raridade. “Hoje ela interage relativamente bem, parece uma criança tímida”, comenta.
E como separar autismo leve de timidez nas meninas, se uma coisa é tão parecida com a outra? “A criança tímida sabe o que deve fazer e como reagir ao estado emocional das pessoas, mas não consegue, enquanto o autista não tem essa percepção”, diferencia Mirian. Essas pequenas nuances são fundamentais para flagrar o autismo nas garotas.
“Elas apresentam menos dos sintomas que chamamos de externalizantes, como raiva, agressividade e comportamentos estereotipados, então o diagnóstico é mais sutil”, aponta Mirian. Por isso, a recomendação é, se houver a suspeita, já buscar ajuda e intervenções precoces mesmo antes de fechar o diagnóstico.
Como estimular o desenvolvimento das meninas autistas
Assim como os meninos, elas precisam de incentivos diários e de acompanhamento multidisciplinar para que consigam exercer seu pleno potencial. Uma das terapias mais reconhecidas para o TEA é o método ABA. “É um tipo específico de terapia cognitivo-comportamental, que dá instrumentos para a criança aprender os comportamentos esperados dela”, explica Mirian.
Além da terapia, a fonoaudióloga estimula o desenvolvimento da linguagem e a terapeuta ocupacional treina a coordenação motora fina, bem como a realização de tarefas diárias. Tudo depende também – e muito! – dos pais continuarem aplicando em casa o que aprendem na terapia: é um treino para que as crianças com o TEA ganhem, aos poucos, autonomia e independência. E aprendam a lidar com as situações que exijam delas as habilidades sociais.
“Após cada sessão, sou orientada sobre o que fazer e temos metas a atingir. Fiz também cursos para me aprimorar, no final viramos especialistas no TEA de nossos próprios filhos”, explica Bianca, que em seu perfil no Instagram Uma Autista na Flórida dá dicas de brinquedos e exercícios que ajudam no desenvolvimento da fofa Isabella.
Outras atividades diárias podem ajudar no desenvolvimento da autonomia das meninas autistas. “Os pais devem estimular atividades que elas gostem, como cozinhar ou fazer parte de um time de esportes, por exemplo”, aponta a neuropsicóloga do CNHS.
Estabelecer uma rotina também é importante. “Crianças com TEA precisam visualizar suas tarefas, então pais e cuidadores podem criar fichas com as tarefas simples: entrar na escola, pegar o caderno e por aí vai, para que ela tenha concretude e compreenda a necessidade de seguir essa ordem”, ensina Luciana Brites, psicopedagoga e coordenadora do núcleo de Londrina da Associação Brasileira de Neurologia, Psiquiatria Infantil e Profissões Afins (Abenepi).
O conjunto de intervenções beneficia até quem recebeu mais tarde o diagnóstico – é o caso de Beatriz, que foi diagnostica aos 6 anos. “Agora com as medicações corretas e o acompanhamento, ela está falando melhor e, em pouco mais de um ano vemos ela adquirindo os movimentos corretos, oferecendo menos resistência para as tarefas e melhorando a coordenação motora fina”, relata Gisele Mestieri Gonçalves, 39 anos, psicóloga e mãe da menina.
E a ciência segue trabalhando em novos métodos que ajudem quem tem o transtorno. Por exemplo, um novo estudo da Universidade McGill, no Canadá, mostrou que autistas que aprendem outro idioma têm mais facilidade na hora de encerrar uma atividade e começar a próxima, mudança que costuma ser uma dificuldade para eles e elas.
“Outra coisa que pode ajudar especialmente as meninas é estabelecer e incentivar uma amizade duradoura, ao invés de vários amigos ocasionais, e ouvir histórias de outras mulheres autistas”, aponta Allison. Por isso, o compartilhamento de casos como o de Laura e Isabella é tão importante.
“Se tivéssemos acesso a essas informações naquele tempo, com certeza as coisas poderiam ter sido diferentes, mas nem se falava direito em autismo”, opina Solange Lara Pupo, 54 anos, de Santos/SP, mãe de Bruna, diagnosticada com autismo aos 6 anos de idade, hoje com 31.
Sozinha, Solange rodou cidades e centros de referência até receber o diagnóstico e, a partir daí, passou a incentivar Bruna como pôde. “Ela aprendeu a ler e escrever algumas palavras por conta própria, gosta de brincar com o sobrinho e possui certa autonomia, mas tem a idade mental de uma menina de 6 anos”, conta a mãe.
Falando, aliás, sobre os casos mais graves, é importante ter em mente que nem sempre o autista reagirá ao tratamento da maneira esperada, por isso os pais de crianças com TEA devem sempre receber suporte da comunidade e se prepararem para uma vida com alguns desafios, mas cercada de amor e carinho.