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“Precisamos nos sentir representados enquanto sociedade afrodescendente”

Mercia Magalhães, professora e contadora de história, fala sobre o processo de escrita do livro infantil que resgata a cultura afro-brasileira.

Por Carla Leonardi
2 jun 2022, 12h04

Foi instigada pelo filho mais novo que Mercia Magalhães, professora e contadora de história, inventou uma narrativa que acabou dando origem ao livro Kaya, Uma História de Representatividade (editora A Arte da Palavra). A profissional tem como prática em sala de aula a atuação da lei 10.639 de 2003, que visa à garantia do ensino de história e cultura afro-brasileira, e viu na publicação a oportunidade de levar a ainda mais crianças o resgate cultural, a representatividade e o combate ao racismo estrutural. Mas o livro não se limita aos pequenos, já que gera reflexões em todos os leitores, independentemente da idade.

Em depoimento exclusivo ao Bebê.com, a autora contou como foi o processo de escrita e publicação. Confira:

“A ideia do livro surgiu em abril de 2021 com uma provocação feita pelo meu filho mais novo, na época com 7 anos. Eu contava histórias para os dois, Arthur, com 11 anos, e Augusto, com 7, todas as noites para dormir. Esse era o nosso ritual já há mais de 12 anos, pois fazíamos isso quando ainda estavam na barriga, afinal, eles são filhos de uma contadora de histórias.

Numa noite em especial, meu caçula me pediu que contasse uma história, mas disse que não queria a história de um livro e, sim, uma que eu inventasse ali na hora. Sem muito pensar comecei a contar a história da personagem que ainda não tinha nome e que depois batizei de Kaya. Naquele momento, vi que surgia uma boa história e fiquei muito ansiosa para concluir a rotina do sono, acabar a história, cantar ‘Eu sei que vou te amar’ (inteira), fazer nossas preces e só então sentar e escrever.

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Resgate da história e da cultura

E foi assim que surgiu a história que é uma espécie de descrição da minha prática em sala de aula com a atuação da lei 10.639 de 2003, que traz a obrigatoriedade do ensino de História e Cultura afro-brasileira na Educação.

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Sou professora e confesso que o período de pandemia foi desafiador, muito estudo e trabalho, pesquisas e mais pesquisas de como atender no ensino remoto e híbrido, além de cuidar da rotina da casa e acompanhar os estudos dos meninos. Eu e meu companheiro, Edson, dividíamos todas as tarefas e o cuidado com as crianças, mas o dia parecia ter 40 horas. Porém, a parte mais difícil foi conviver com a dura realidade das famílias que eu atendia. Foi um grande ensinamento para meus filhos sobre o quanto somos privilegiados. Apesar de sermos assalariados, temos um teto, boa comida, acesso à internet, dois celulares e um notebook para nós quatro. Parece pouco, mas aquelas pessoas tinham muito menos.

Entrei em crise e isso me fez ter um contato mais intenso com as famílias, quando firmei o propósito, que sempre tive mesmo antes da pandemia, de fortalecer esses vínculos. Eu os atendia pelo WhatsApp, por vídeo chamada e na escola, na entrega das cestas básicas que o município oferecia. Corria atrás de mais cestas para aqueles com maior necessidade e dava atendimentos até altas horas da noite.

Pude também refletir mais sobre minha prática e resgatar na memória muitos momentos que me motivaram a trazer a representatividade, não só para os pequenos, mas para toda a comunidade. Sempre acreditei na politização do ser, na valorização da educação e no entendimento de que, se todos tiverem mais oportunidades, a coisa vai ser diferente, com mais direitos garantidos, saúde, moradia, saneamento básico, alimentação digna de pessoas que lutam, e muito, para o sustento de suas famílias. Creio que isso tenha impulsionado inconscientemente a realização do livro, eu vi nele algo de mim que gritava e queria alertar para a necessidade desse resgate histórico e cultural.

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Mas como investir num livro num país que boicota livros e educação?

Kaya uma história de representatividade livro
(Mercia Magalhães / A Arte da Palavra/Divulgação)

O caminho até a publicação

O processo de realização do livro foi bem curto, porém muito intenso. Depois da história escrita, o que fazer? Eu não sabia nada sobre edição ou até mesmo como achar um ilustrador. Fui perguntando aqui e ali até que recebi a indicação de um artista muito talentoso, o Leandro Zamonel. Só que aí eu tinha uma questão importante para resolver. Não tinha dinheiro. Lancei uma proposta bem baixa, que ele aceitou, e eu lhe disse: ‘Topa essa parceria comigo e, se tudo der certo, eu te pago com decência no futuro’. Rimos juntos e ele ilustrou a obra.

Saquei os míseros tostões que eu tinha na poupança (era bem pouco mesmo) e o paguei. Foram muitos dias de criação. Eu pedia e ele fazia, eu falava das cores quentes, das pinturas étnicas, descrevia os livros e ilustrações que eu gostava, e ele fazia. Mandava para ele pesquisas sobre a capoeira, sobre o maracatu e ele representava tudo em cores e figuras perfeitas, Leandro é um profissional fantástico. Quando me mostrou o resultado, depois de vários esboços, depois de idas e vindas das páginas cheias de cores, eu chorei, chorei muito e vi que estava pronto.

Então, mais um desafio apareceu: o de achar uma editora que recebesse a minha obra. As maiores diziam que a agenda de seleção de livros estava fechada, outras não aceitavam porque já estava ilustrado, nem se interessavam em ver e dispensavam. A pandemia também não ajudou, estava tudo parado. Até que uma amiga, aquela amiga irmã que a gente tem para a vida toda, que divide as crises com os filhos, aquela amiga que me dá colo e me empresta o ombro amigo e solidário, Danielle Agostinho, atriz e professora como eu, inscreveu meu livro no edital de 2021 do PROAC. BINGO! Fomos contemplados em primeiro lugar.

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Representatividade importa (e muito!)

Agora, o livro está aqui, vivo e cheio de representatividade e cultura popular. É indicado para um público diversificado, para a faixa etária de 4 a 12 anos, mas se estende aos responsáveis, família e cuidadores, pois traz um despertar de consciência a todos, adultos e crianças. O tema mostra a questão de combate ao racismo estrutural, do apagamento pelo qual a nossa sociedade passou, mas fala também de diversidade e inclusão de toda e qualquer criança, independentemente de raça, credo, cor, gênero… Somos diferentes, isso é um fato, mas temos que ter as mesmas oportunidades, igualdade de direitos e equidade.

Quero dialogar também com um público muito específico, que são os profissionais da educação, professores, gestores, entre outros, para que fortaleçam a crença de que é extremamente relevante atuar na prática com essa lei. Precisamos de identidade cultural, precisamos conhecer nossa história, precisamos nos sentir representados enquanto sociedade afrodescendente.

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O intuito desse livro é que tenhamos uma maior atuação nas salas de aula da Lei 10.639, assim como da Lei 11.645 sobre a História e Cultura indígena, ampliando nossa percepção de mundo.

Este é um novo ciclo em minha vida, a escrita me trouxe acréscimos para minha atuação tanto na educação quanto na área artística, ampliou minha visão para este novo lugar em que me encontro, o de escritora. Sempre fui ligada à literatura, como contadora de histórias, como professora, e agora como autora de livro infantil.

Sou a mãe mais paparicada e feliz por todo reconhecimento vindo dos meus filhos. Augusto levou o primeiro livro que recebemos para a escola e leu para a turma toda e o Arthur, que é muito tímido, me deu um tapinha nas costas, um abraço e soltou a frase: ‘Mamãe, seu livro vai fazer muito sucesso'”.

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