Por que o discurso feminista se afasta do universo materno?
Três mães falam sobre suas experiências no movimento feminista e apontam questões que precisam ser revistas urgentemente.
Não é preciso ser um perito no assunto para compreender, mesmo que minimamente, o que é o feminismo: um movimento feito por mulheres para promover seus direitos e combater a desigualdade de gênero. Mas como não poderia deixar de ser, o feminismo é um tema bastante amplo. As pautas são muito variadas e as vozes mais ainda, afinal, a razão de ser do movimento é lutar em prol de todas as mulheres – e não é preciso dizer o quanto nós somos um grupo diverso.
Uma das pautas centrais do feminismo é a quebra de estereótipos. Poucas décadas atrás, o que se dizia era que mulheres não tinham capacidade intelectual e emocional para votar, para pilotar aviões, para tomarem conta de si mesmas sem um marido etc. De mãos dadas com essa noção retrógrada de que seríamos inferiores, há também um outro paradigma: o de que mulheres vêm ao mundo destinadas a serem mães. E o feminismo, obviamente, passou a questionar isso.
“A maternidade começava, então, a ser compreendida como uma construção social, que designava o lugar das mulheres na família e na sociedade, isto é, a causa principal da dominação do sexo masculino sobre o sexo feminino”, explica a professora de sociologia Lucila Scavone, no artigo A maternidade e o feminismo: diálogo com as ciências sociais, no qual destaca como as mães foram vistas pelo feminismo ao longo do tempo.
Se esta era a visão que se se tinha da maternidade por volta da década de 70, com o passar dos anos os grupos feministas começaram a enxergar esse universo de outra forma, especialmente em razão do avanço dos métodos contraceptivos. “Com as tecnologias reprodutivas, passamos de uma recusa circunstancial da maternidade para a possibilidade de escolha, significando, também, para as mulheres a decisão ou adequação entre vida profissional e vida familiar”, como também esclarece Lucila.
E se hoje as mulheres podem decidir se e quando querem ser mães, espera-se, então, que isso seja respeitado, certo? Na verdade, não é isso que muitas mães vivenciam dentro do feminismo. A redatora Gabriela Pasuch – mãe do Leônidas, de 6 anos, e do Vitório, de 4 – é uma delas. Curiosamente, ela começou a se envolver no feminismo por causa da maternagem, mas afastou-se do movimento, pois cansou de ver as pautas maternas negligenciadas no coletivo do qual fazia parte.
Quando engravidou do primeiro filho, Gabriela buscou conectar-se a mulheres interessadas em uma nova maneira de maternar e, assim, passou a abraçar outras causas feministas. “Nesses espaços, aprendi muito sobre a luta feminista. Mas sempre havia essa separação. Nos grupos maternos o feminismo está entrelaçado com todas as conversas e ações. Nos grupos feministas eu não via esse mesmo cenário”.
Para ela, os grupos feministas costumam deixar as mães de lado, tanto nas ações que abraça, quanto na organização prática. “Na maioria das vezes essa exclusão ocorre de forma menos evidente. Quando um evento feminista é realizado e as organizadoras não pensam em como acomodar as crianças – ou quando fazem num local e horário totalmente inacessível para quem tem filhos”, aponta.
Quem também nota essa barreira velada é a designer de moda Janice Mascarenhas – mãe do Rahvi, de 4 anos, e da Julieta, de 2. “Por exemplo, um coletivo feminista organiza uma roda de conversa sobre maternidade, mas esse coletivo não dispõe de alguém para te ajudar com seus filhos durante a reunião. De que adianta a mãe estar lá se ela está em outro ambiente porque a criança está chorando?”
Para além das questões práticas, ambas também apontam uma flagrante falta de interesse nas causas maternas. Para Janice, a maioria dos coletivos só se preocupa em combater a maternidade compulsória, ao invés de se importar com quem vive esse problema no dia a dia. Falta empatia e oportunidade para que as mães sejam ouvidas.
Gabriela compartilha da opinião de Janice e acredita que há muita falta de maturidade nos debates que circundam essa questão. Precisamos falar sobre o problema da maternidade compulsória? Sem dúvida, mas isso não pode se tornar pretexto para a falta de sororidade em relação às mães. É preciso saber dividir as coisas!
“A gente precisa superar essa noção rasa. Quando dizemos que a maternidade é compulsória, que somos realmente usadas para reprodução sem legitimidade na escolha em relação aos nossos corpos, estamos nos opondo ao sistema patriarcal e não às mães”, diz Ana Rossato, estudante de ciências sociais e mãe da Gabriela, de 6 anos, do Benjamin, de 5, e da Joana, de 2.
Ao contrário de Janice e Gabriela, Ana conta que nunca se sentiu excluída nas rodas feministas, nem presenciou o apagamento dos temas maternos nos debates do movimento. Mesmo assim, reconhece que não é difícil compreender que isso esteja acontecendo com outras mães. “O que a gente quer mudar é como a maternidade é vista e como ela é operada na sociedade, como os papeis de gênero (e a maternidade entra nessa questão) oprimem as mulheres. Ignorar isso é um erro tremendo, tanto porque afasta as mulheres, quanto porque cai num idealismo que não se converge em ações concretas para melhorar a vida das mulheres”.
Apesar de terem vivências distintas em relação ao movimento, Ana, Janice e Gabriela concordam num ponto: os temas relacionados à maternidade (como o fim da violência obstétrica, o acesso a creches e o direito à amamentação em público, por exemplo) devem ser defendidos por todas as feministas, sejam elas mães ou não.
“A partir do momento em que maternidade é sobre mulheres, deveria sim ser pauta do feminismo e TODAS as mulheres deveriam se importar. Até porque quem não é e nem vai ser mãe, é filha. E o feminismo deve atingir a todas as mulheres”, finaliza Janice.