Perda gestacional e neonatal: o pai também sofre, mas quase ninguém vê
Luto paterno é invisibilizado e afetado por estigmas e pressões culturais. Entenda os problemas disso e conheça iniciativas que tentam reverter o quadro.
Quando a mulher recebe o resultado positivo do teste de gravidez, passa a ser tratada instantaneamente como mãe. Para o homem, o processo é um pouco diferente. “Escutamos muito que só saberemos o que é ser pai depois que cortar o cordão, ouvir o choro ou pegar o filho no colo”, comenta o carioca Daniel Carvalho, de 39 anos, criador do projeto Luto do Homem.
O que acontece, então, quando o filho morre na gestação ou pouco depois do parto e nada disso é possível? Geralmente, tem início um processo de luto e sofrimento invisível, com consequências negativas para a saúde mental masculina e até mesmo para a mulher. “Tudo o que foi prometido a ele em relação à paternidade não se concretizou”, diz Daniel, que tenta mudar esta realidade a partir de sua própria experiência.
Sua filha, Joana, morreu com seis dias de vida, depois de complicações no parto e uma gravidez tranquila. “As pessoas passaram a nos visitar no hospital enquanto ela estava internada na UTI neonatal, e quando chegavam já iam perguntando direto pela minha esposa”, relembra.
“Respondia no automático, pois estava imbuído da ideia de que eu deveria estar lá para dar forças para ela apenas, e as pessoas também me diziam isso, que eu tinha que ser forte, porque era ela que estava sofrendo de verdade, não eu”, conta Daniel. Ele só se deu conta da própria dor quando, por iniciativa da esposa, as pessoas passaram a perguntar se ele estava bem também.
“Esse espaço é a coisa mais importante de todas, pois nem eu conseguia enxergar minha própria dor”, relata. A partir daí, Daniel e a esposa passaram a participar um grupo de apoio para casais, predominantemente frequentado por mulheres, o Do Luto à Luta (cuja história já contamos aqui).
Dessa experiência, nasceu o Luto do Homem, que desmistifica preconceitos sobre luto paterno e acolhe homens que sofreram perdas.
Homem não chora
A psicóloga Erica Quintans é autora de uma das poucas pesquisas sobre luto masculino na perda gestacional ou neonatal feitas no Brasil. “Seu sofrimento é invisível dentro de um luto que já é invalidado, uma vez que, quando o bebê morre ainda na barriga no parto os casais já escutam que logo terá outro, que não deu tempo de criar vínculo, entre outras coisas”, conta.
Na sua tese de mestrado, ela entrevistou dez homens que viveram essa experiência. “O que percebemos, logo de cara, é o medo, a incerteza do que fazer com as coisas que ficaram, uma tristeza grande que só é colocada para fora quando o homem está sozinho ou, pelo contrário, é evitada a todo custo”, destaca a psicóloga.
É claro que a mulher é mais prejudicada pela sociedade machista, mas está longe de ser a única afetada. “Os homens são criticados por acessarem emoções, chorar ou expressar seus sentimentos”, continua Érica. “Ao mesmo tempo em que somos privilegiados pela estrutura atual, também sofremos por ela”, aponta Daniel.
Um dos resultados disso é que, muitas vezes, a raiva é a única manifestação “sentimental” possível. “Porque é uma emoção que a sociedade permite que ele sinta”, diz Érica, que relembra um caso de um homem que passou pela perda e, pouco depois, o casal engravidou novamente.
“Quando ele saiu da primeira consulta com a companheira, um carro estava encostado no seu e ele quebrou ‘na porrada’ o veículo. Estava ansioso, preocupado, mas foi só assim que ele conseguiu se expressar”, relembra.
O impacto no relacionamento
Por conta dessas construções culturais, homens tem um modelo de sofrimento chamado instrumental, focado no realizar tarefas. “Ele converte a energia do luto para algo mais racional e encontra outras formas particulares de expressar o luto”, explica Érica. Já as mulheres, em geral, choram mais, falam sobre suas emoções e sentem necessidade de colocar a dor para fora.
“Isso acaba gerando uma desconexão. A mulher acha que o homem não está vivendo o luto porque não fala sobre isso, e ele pensa que ela está falando demais sobre o assunto e precisa ‘sair dessa’”, comenta a psicóloga. “Em casais hétero essa situação fica bem evidente: a mulher absolutamente entregue aos seus sentimentos e o homem silenciando, pois a masculinidade disse que ele não deve entrar nesse terreno”, concorda Daniel.
Não à toa, o casal pode até ficar mais suscetível à separação depois da perda, daí a importância de entender que cada um se expressa de uma maneira e de cultivar o respeito a essas individualidades.
Por outro lado, passar por algo tão triste também tem potencial para estreitar vínculos. “A pessoa que viveu tudo com você é um cúmplice, alguém que entende como ninguém o que você está passando, então é possível aprofundar a relação”, destaca Érica.
O que falar para um pai em luto
Como vimos, parceira, família e amigos podem tanto ajudar quanto atrapalhar o processo. Para fazer diferença positiva, o principal é abrir espaço. “Essa é a palavra mais fundamental”, aponta Daniel. Dizer que está ali se a pessoa quiser conversar, perguntar como ela está, são pequenos gestos que fazem a diferença.
Quem convive com o homem de perto tem a oportunidade de acompanhar sinais de que ele não está lidando tão bem com os seus sentimentos. “É bem individual, e não necessariamente isso indica um problema, mas abuso de álcool, de comida ou outras compulsões, muitos episódios de insônia ou rompantes de raiva, podem ser indícios de que ele precisa de ajuda”, relata Érica.
Aprendendo a sofrer e sentir
Fugir da dor é uma estratégia comum que pode se tornar um fator de risco para o luto complicado, quadro que precisa de ajuda psicológica e às vezes psiquiátrica para ser enfrentado. “A maior parte das pessoas vive sua perda e encontra suporte social para lidar com ela, mas para alguns enlutados não é isso que acontece”, aponta Érica.
Por fim, a invisibilidade do luto paterno é um sintoma de um problema bem maior, reflexo da nossa criação. “Ao longo dos meus 39 anos de vida, o luto é o único espaço onde encontrei homens para falar de amor”, relata Daniel. “Tentamos devolver ao homem seu direito de sentir, começando por mostrar que ele é alguém que pode sofrer”, completa.
Quando pergunta aos homens atendidos em seu projeto o que eles estão fazendo, Daniel escuta muitas respostas, prolixas e variadas diferentes. “Mas quando pergunto o que estão sentindo, a resposta é até violenta: ‘eu não sei’. Isso mostra que precisamos fazer esse resgate mais básico mesmo, de dar instrumentos para que ele identifique e contate suas emoções”, conclui.