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Maternatípica

Poliana é mestranda em comportamento infantil, autora do instablog @meubebeeoautismo e mãe atípica de Soph e João.
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Tenho poucas certezas na vida, mas sei que sou a mãe dos meus filhos

Às vezes, não tenho clareza sobre muitas escolhas que fiz, rumos que me trouxeram até aqui. Mas o que importa mesmo é que aprendi a fazer o João sorrir.

Por Poliana Martins
29 Maio 2021, 16h00

“Mulher, como você se chama? – Não sei.
Quando você nasceu, de onde você vem? – Nao sei.
Para que cavou uma toca na terra? – Não sei.
Desde quanto está aqui escondida? – Não sei.
Por que mordeu o meu dedo anular? – Não sei.
Não sabe que não vamos te fazer nenhum mal? – Não sei.
De que lado você está? – Não sei.
É a guerra, você tem que escolher. – Não sei.
Esses são teus filhos? – São.”

(Poemas, Wislawa Szymborska. São Paulo: Cia das Letras, 2011.
Tradução de Regina Przybycien)

Eu fui a adolescente que queria mudar o mundo. Uma de tantas meninas negras da periferia belo horizontina, tive o privilégio de cursar Direito na Universidade Federal de Minas Gerais ainda aos 17 anos. Eu, que mal havia saído de Minas Gerais, conheceria ali a arte, a literatura, a dança pela qual me apaixonei. O café com os amigos nas praças da Afonso Arinos, o jazz e a vida noturna dos bares mineiros que ocupavam a calçada com riso, celebração e vida.

Na minha ingenuidade pueril acreditava que justiça social se construiria pela lei e políticas públicas e estava disposta a dar minha contribuição. Mas, foram meus filhos, Sophia e João, que me ensinaram que a revolução que eu ansiava (e anseio) começava muito antes, na educação e no afeto.

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É engraçado pensar que meus filhos me fizeram trilhar caminhos raros. Aos 22 anos fui mãe pela primeira vez e recebi Sophia, uma menina gentil e extremamente precoce em tudo. Um bebê que fez tudo cedo demais: falou, andou, aprendeu a ler sozinha, brincava de jogos complexos, mas, ao mesmo tempo, dona de uma personalidade emocional muito sensível, ansiosa, com problemas de regulação emocional.

No auge do meu puerpério, tentando entender os processos da Sophia, o pediatra me disse que ela era um bebê high need. Mais tarde eu ia descobrir que Soph é, na verdade, superdotada. Gosto de pensar que é como ter um cérebro de adulto e um coração de menina, um conhecimento cognitivo muito acima da média da idade, mas uma imaturidade em absorver as emoções que esse conhecimento gera.

Soph chegou no meu último período de Direito esvaziando o diploma que eu sequer havia recebido. Tê-la pela primeira vez em meus braços fez com que eu entendesse que era preciso mais, muito mais do que eu imaginava, pra construir um mundo que fosse minimamente digno.

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Anos depois, duas perdas gestacionais, 5 anos advogando, 3 anos como investigadora de polícia, eu desejei ser mãe novamente. Me sentia pronta mesmo consciente de que nenhuma das tarefas que eu exercia era tão difícil quanto ser mãe da Soph. Por vezes, às 3h da manhã, arma em punho, colete à prova de balas, cercando alvos para cumprir mandado de prisão em aglomerados, ou investigando tráfico de drogas, eu pensei que aquilo era fácil comparado a ser mãe. No meio de uma troca de tiros, correndo entre becos perdida da minha equipe, a adrenalina era imensa. Mas eu sabia, que passageira. Mesmo ali, no auge da vulnerabilidade física, eu encontraria caminhos certos e definitivos, era apenas uma questão de tempo. Não acontece o mesmo na maternidade.

Não existe mapa: maternar é caminhar

Educar é sobre caminhar com o coração constantemente exposto, à beira de um abismo, tateando possibilidades que jamais serão claras. E se eu tivesse feito diferente, escolhido diferente, respondido diferente? Em todas as questões que se colocam ao educar uma criança, as respostas parecem estar em aberto, cíclicas, indo e voltando e exigindo reflexões novas. Nada é dado ou fica pronto em definitivo e essa é minha maior angústia.

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A decisão de ter um segundo filho parecia acertada. Eu tinha 30 anos de idade quando João chegou, vários caminhos percorridos e a sensação de que era madura, vivida, experiente. Mas João era o menino que odiava viver. Não se choque, foi isso que eu disse pra pediatra quando ele tinha apenas um mês de vida: “João me odeia, odeia viver, e odeia estar no mundo. Ele chora quando o dia nasce; quando eu falo com ele; se eu der banho, se der mamar. Ele não gosta de ficar no colo, não aceita o toque, mas não se acalma no berço. Ele não dorme, não se alimenta direito, não olha na direção de pessoas. Tem algo de errado com meu bebê”.

Imagino que eu tenha assustado bastante a médica que tentou me acolher do jeito que pôde, me acalmar, disse que os exames estavam todos normais, que ele estava clinicamente bem e que provavelmente era um bebê high need. Eu já tinha ouvido isso anos antes e, por um breve espaço de tempo, me permiti descansar com aquelas palavras. Mas João era diferente da Sophia, não eram apenas marcos emocionais que estavam alterados. Sua maneira de se relacionar com o mundo era peculiar e impedia que tivéssemos vínculo e que ele aprendesse adequadamente. Ele era um bebê irritado, sério, pouco responsivo às tentativas de troca afetiva e com atrasos no desenvolvimento.

Alguns meses depois eu descobriria que João é autista e isso significa que ele tem um cérebro diferente da média das pessoas, com dificuldades de interação, comunicação e padrões de comportamento repetitivos.

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E repentinamente nenhum dos caminhos pelos quais eu conduzi minha vida, pessoais ou profissionais, fazia mais sentido.

Eu precisava de um mundo em que meus filhos coubessem, cada um com suas diferenças, e em que suas atipicidades pudessem coexistir sendo reconhecidas como formas válidas de existência.

Não foi fácil abrir mão do meu serviço público estável, da minha formação e carreira pra encarar a luta que se colocava. Tantas vezes me questionei se estaria abrindo mão de quem sou, do que construí, dos caminhos que trilhei. Mas na verdade eu estava agregando a quem eu fui – a adolescente que queria mudar o mundo – Sophia e João. Entender que eles eram partes de mim e da minha história me fez abraçar as transformações necessárias e contínuas que eu viveria a partir dali.

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Posso dizer que maternar duas crianças atípicas e com necessidades de suporte educacional tão distintos é um desafio que eu jamais imaginei ter que encarar. E não é que eu seja “guerreira ou escolhida por Deus”, é que eu não tenho mesmo a opção de desistir de lutar pelos meus pequenos, então eu apenas prossigo. Não posso negar que, por vezes arrastada, outras devidamente medicada.

Soph e João me ensinaram mais sobre diversidade humana que os melhores cursos superiores poderiam fazer. Me arrastaram pro universo do comportamento humano, me obrigaram a estudar neurociência, mecanismos de controle de comportamento, desenvolvimento e aprendizado.

Eu, a menina negra da periferia, me tornei pesquisadora em desenvolvimento de bebês, terapeuta, especialista em TEA e criadora de conteúdo digital num instablog materno. Às vezes, não tenho clareza sobre muitas escolhas que fiz, caminhos que tracei e rumos que me trouxeram até aqui. Mas o que importa mesmo é que aprendi a fazer o João sorrir e se tornar um menino que ama muito, profundamente, viver. Por isso, das poucas certezas que carrego há esta: eu sou a mãe dos meu filhos.

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