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Cansada, mãe?

Lia Abbud é jornalista e uma das criadoras do @Fatigatis, um projeto de conteúdo sobre estresse materno que propõe estratégias em direção ao bem-estar físico e mental feminino.
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Por que o tempo do pai é apertado e da mãe precisa ser infinito?

O grupo de Whats dos pais, o e-mail da pediatra, a cobrança da escola... Todos enxergam a mulher como a “gestora oficial”. E isso cansa.

Por Lia Abbud
Atualizado em 9 out 2020, 16h10 - Publicado em 23 set 2020, 16h52

Esses dias me peguei pensando sobre a diferença que há na valorização do tempo de homens e mulheres. Não sei se é uma percepção agravada pelo momento ímpar que estamos vivendo, com mais sobreposição de tarefas, mas cada vez mais tenho a sensação de que existe uma crença de que o tempo do homem é finito e o da mulher, infinito.

Seja no microcosmos, na família ampliada ou na sociedade de forma geral, as tarefas ligadas aos cuidados domésticos e com filhos são quase sempre endereçadas às mães. Exemplos básicos do dia-a-dia: o grupo de WhatsApp da escola, a mensagem do dentista alertando que é hora de marcar nova consulta dos filhos, o e-mail da pediatra checando a carteirinha de vacinação, a escola questionando decisão da família sobre volta à aula presencial quando for acontecer. Todos parecem enxergar a mulher como a “gestora oficial” destes temas, acreditando que temos mais do que 24 horas no dia.

Os parceiros também “repassam” alguns afazeres para suas companheiras sob a alegação de que aquilo não vai caber na agenda deles. É claro que não há problema nisso quando pensamos que um casal atua como um time. O que me intriga é que muitas vezes esse repasse carrega implicitamente a mensagem “na minha não cabe, mas tenho certeza que na sua vai caber”. Justamente como se o nosso tempo fosse infinito e a nossa agenda pudesse abrigar tudo o que vai aparecendo ao longo do dia.

Mas sabe o que é pior? Notar que muitas vezes a gente realmente faz caber. Nem que para isso a gente abra mão de outras coisas que gostaríamos/precisaríamos fazer ou acabe virando madrugada adentro para dar conta de tudo.

Não estou colocando as mulheres num pedestal nem na figura de heroínas. Minha reflexão vai no sentido contrário: se continuarmos assumindo todas as “buchas” relacionadas à casa, filhos, família, em detrimento do nosso descanso e da nossa própria escolha de como usar nosso tempo, a situação não vai mudar. Porque se você avança madrugada adentro terminando de fazer o que está na sua lista e no dia seguinte tudo amanhece pronto e resolvido, ninguém percebeu a quantidade de horas, esforço físico e mental envolvidos para que tudo aquilo pudesse ser resolvido. Ninguém nota a sobrecarga, a divisão injusta de tarefas.

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Não existe dia com 36 horas!

O caminho é sinalizar de forma gentil e sincera, algo como “sinto muito, isso também não vai caber na minha agenda essa semana, é preciso buscar outra solução”. Acredito que o debate “tempo finito de um x tempo infinito de outro” está diretamente alinhado à questão da valorização do tempo de cada um em termos monetários – quanto vale a hora remunerada de um x quanto vale a hora remunerada de outro.

As tarefas de cuidado da casa e dos filhos são um trabalho não remunerado e pouco valorizado, já que não resultam em capital. É a discussão sobre o valor do provedor X o valor do cuidador, um tanto equivocada se pensarmos na importância do trabalho do cuidador para a construção da sociedade. Nesta lógica, a hora do principal provedor é mais valiosa que a hora do cuidador. Com isso, quem “traz mais dinheiro pra casa” poderia ser isentado de se dedicar às atividades relacionadas ao cuidar.

Vou contar uma passagem para exemplificar. Minha filha mais velha fazia ginástica artística. Então, éramos figurinha constante no pronto-socorro de ortopedia para checar se a última estripulia havia rendido uma torção, luxação, ligamento rompido, fratura. Mesmo em dias de sorte, com sala de espera vazia, havia alguma demora porque sempre era preciso se consultar com o médico, fazer raio-x, tomografia ou ressonância e depois voltar com o médico.

Algumas vezes meu marido se ofereceu, sim, para remanejar sua agenda de trabalho e acompanhá-la, evitando que eu renunciasse a meu tempo de trabalho em pleno período da tarde. Na grande maioria das vezes – placar 8 x 2, digamos – eu agradeci dizendo que achava que seria ruim pra ele desmarcar reuniões importantes.

Não era uma questão de controle materno, de não querer “desgrudar da filha”, mas a crença de que como eu sou autônoma e ele trabalha em empresa, ele seria mais prejudicado do que eu nesse remanejamento de agenda e renegociação de prazos. De certa forma, eu estava reforçando a crença de que o valor do trabalho dele era maior do que o valor do meu.

Eu estava assumindo a ideia de que meu tempo é elástico. Ou seja, eu poderia voltar e continuar fazendo o que estava programado para o dia, nem que isso consumisse, mais uma vez, minhas horas de descanso. É claro que levar a filha no pronto socorro torna-se prioridade, mas questiono o fato de eu não ter aceitado ou pedido mais a ajuda dele, valorizando meu próprio tempo.

A partir dessas reflexões, passei a olhar para o meu tempo com mais objetividade. E a expressar isso. Eu não tenho um dia com 36 horas. E você também não. Quando começamos a lidar com o tempo como um recurso limitado e finito, podem sobrar horas dedicadas ao nosso prazer, ao nosso descanso, às nossas paixões, aos nossos estudos. Portanto, o lema agora é: o tempo é igual para todos.

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