Maconha medicinal: o uso dessa terapia alternativa em crianças

Conheça a opinião de especialistas e o depoimento de famílias sobre os efeitos dos princípios ativos e entenda por que é necessário discutir o assunto.

Por Chloé Pinheiro
24 nov 2017, 19h10
Maconha medicinal epilepsia
 (Renata Kameda/Bebê.com.br)
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Imagine como é conviver com descargas elétricas constantes no cérebro desde o segundo dia de vida. Era assim com o pequeno Vincenzo, hoje com 4 anos de idade. Por conta de uma malformação, ele chegava a ter 40 crises convulsivas por dia – número que caiu para 15 com o tratamento convencional mais eficaz.

Em 2014, quando o menino ainda era bebê, sua mãe assistiu ao documentário Ilegal, da revista SUPER Interessante, que conta a saga de outras famílias brasileiras que lutavam na justiça pelo direito de comprar medicamentos à base de canabidiol (CBD), um dos princípios ativos da Cannabis sativa, o nome científico da maconha.

Isso porque a substância tem um poder cujos mecanismos ainda estão sendo descobertos pela ciência: controlar epilepsias quando os remédios não dão conta do recado.

“Eu já tinha perdido todas as esperanças e me animei com a história. Pedi para amigos trazerem o canabidiol do exterior e contei para a neurologista dele, que na época ainda nem podia prescrever”, conta Maria Eduarda Tassi Martins, 31 anos, mãe do menino, de Recife. “Deu muito certo, as crises diminuíram e ele passou a ficar mais tempo acordado, atento”, continua.

Hoje, utilizando o extrato nacional fornecido por uma associação de cultivo legalizada e um anticonvulsivante tradicional, ela comemora meses sem convulsões e um Vincenzo diferente. “Ele fixa o olhar, é expressivo, interage com o mundo”, celebra a administradora de empresas.

Maria Eduarda Tassi Martins e sua família na ABRACE ao redor de pés de maconha
Maria Eduarda com o filho Vincenzo (Maria Eduarda Tassi Martins/Arquivo Pessoal)

O Conselho Federal de Medicina liberou a prescrição dos medicamentos à base de CBD em outubro de 2014, ano em que a discussão floresceu no país. Em 2017, o tema avançou, a importação de remédios que utilizam a planta em sua composição está mais fácil e dez brasileiros já podem plantar a própria cannabis para fins medicinais.

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“A pressão exercida pelas mães é a principal responsável pelo reconhecimento do uso terapêutico da cannabis no Brasil”, aponta Emilio Figueiredo, advogado da Reforma – Rede Jurídica pela Reforma da Política de Drogas, no Rio de Janeiro. “Comecei a utilizar no tratamento de duas crianças com autismo grave por insistência dos familiares e tem demonstrado resultados positivos no comportamento delas”, relata Sérgio Antoniuk, neurologista da Sociedade Brasileira de Pediatria (SBP), de Curitiba.

É assim, pelos pais, que o uso de maconha medicinal tem entrado nos consultórios dos neuropediatras. Mais especificamente seus dois princípios ativos mais estudados: o CBD e o tetrahidrocanabinol (THC).

O tema pode causar estranheza e até ressalvas – o que é compreensível – mas os resultados são inegáveis. “Tratamos com cautela porque não sabemos os efeitos a longo prazo, mas se a substância consegue melhorar a vida de uma criança que tem 70 convulsões por dia, é preferível usar porque o dano causado pelo excesso de convulsões será maior de qualquer maneira”, comenta Antoniuk.

Hora, então, de abandonar preconceitos e opiniões pessoais para ouvir o que a ciência tem a dizer sobre o assunto.

O que é o canabidiol e porque ele ajuda

O CBD é um dos 80 canabinoides, substâncias que ativam receptores específicos no cérebro, que existem na maconha. “Ele não é psicoativo, ou seja, não causa euforia e não dá barato, mas melhora a expressão de endocanabinoides, moléculas que atuam na comunicação entre os neurônios e em diversos sistemas neurológicos. Por conta disso, tem efeito anticonvulsivante, ansiolítico e antipsicótico”, comenta Renato Filev, neurocientista da Universidade Federal de São Paulo (Unifesp) que atua no Centro Brasileiro de Informações sobre Drogas Psicotrópicas (Cebrid).

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“Estamos testando no nosso serviço o uso do CBD puro e com 1% de THC na formulação – e os resultados são bem evidentes em casos de epilepsia de difícil controle”, revela Antoniuk. O combate desse tipo de convulsão é a principal indicação na pediatria para o canabidiol. Assim como Vincenzo, estima-se que cerca de 20% dos portadores de epilepsia sejam afetados pelos ataques mesmo com uso de vários medicamentos tradicionais.

Mas não é só nesses pacientes que os princípios ativos demonstram ser promissores. “Alguns estudos apontam que ele pode ser útil para crianças autistas e no tratamento de dores neuropáticas. Mas como se trata de uma aplicação muito recente, o próprio uso em convulsões é empírico”, afirma Renato.

O que faz da planta alvo de tanto interesse dos pais com filhos nessas condições é que, além de sua eficácia no alívio de sintomas, os efeitos colaterais notados são muito menores do que os remédios tradicionais. “As reações são, no máximo, excesso de sonolência e um pouco de diarreia por conta do óleo presente na composição, diferente dos prejuízos motores e cognitivos observados nos medicamentos tradicionais”, comenta Renato.

Sem cortinas de fumaça

A única ressalva dos médicos é com o THC. É que esse canabinoide mais famoso, além de ser remédio para combater dor, enjoos, esclerose múltipla e muitas outras condições nos adultos, é também responsável pela “viagem” que o uso recreativo da maconha proporciona. E ele está presente na formulação de alguns produtos consumidos pelas crianças que precisam, como os extratos artesanais.

“Algumas mães usam óleos com THC e os filhos melhoram, mas ainda não sabemos como será no futuro a criança que usa a substância”, pondera Antoniuk. “Para a epilepsia, por exemplo, o THC é contraindicado pois em doses altas pode deflagrar crises mais facilmente, embora eu não acredite que a baixa concentração existente nesses produtos seja capaz de causar algum efeito colateral significativo”, complementa Renato.

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Vale destacar que qualquer remédio à base da planta agora entra como complemento no tratamento, ou seja, não substitui a farmácia tradicional, mas racionaliza seu uso. “Sabemos que ele funciona e pode até reduzir o consumo de outros remédios, mas não deve ser administrado sozinho”, orienta Cypel.

A palavra da experiência

Fabiana Grosso e a filha Sophia
(Fabiana Grosso)

Com dois anos, Sophia teve sua primeira convulsão. A menina já tinha problemas motores por conta da paralisia cerebral, complicação do parto prematuro que custou 92 dias na UTI neonatal e sequelas para a vida da pequena.

As crises continuaram e ela começou o tratamento convencional. “Ela chegou a tomar cinco remédios por dia, mesmo assim, as crises aumentaram de intensidade ao ponto de exigirem internação e ela começou a ter muitos efeitos colaterais”, conta Fabiana Grosso, 40 anos, mãe de Sophia. A gravidade da epilepsia somou-se, então, ao acúmulo de gordura no fígado e diminuição na capacidade da menina de se movimentar e interagir. “Ela mal conseguia segurar o tronco, ficava prostrada, apática”, relembra a empresária de Osasco.

Desenganada pelos médicos, começou a estudar opções de terapia até se deparar com a cannabis. “Tinha muito preconceito com o assunto, mas vi que isso era tratado de forma muito mais natural em outros países e resolvi tentar”, conta.

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Depois de importar por conta própria a primeira leva, Fabiana apresentou a novidade à médica. Hoje, Sophia toma só o CBD importado e um medicamento tradicional, além dos extratos com CBD e THC fornecidos pela Abrace (Associação Brasileira de Apoio Cannabis Esperança), a primeira a obter autorização para o cultivo coletivo, em abril de 2017.

“As crises não zeraram, mas são mais brandas e raras. A medicação devolveu qualidade de vida e melhorou muito a questão cognitiva. Ela está mais inteligente e, além disso, hoje ela senta, levanta e engatinha, o que achávamos que não iria acontecer nunca”, comemora Fabiana.

O que diz a lei

Os médicos estão autorizados a prescrever o canabidiol desde o final de 2014, ano que as importações começaram a ser liberadas. Em 2015, a Anvisa mudou o status do canabidiol de substância proibida para controlada e, em abril do mesmo ano, simplificou as regras para importação com prescrição. Em 2016, foi a vez dos produtos à base de THC começarem a ganhar pareceres favoráveis.

Hoje, a maconha medicinal está em uma espécie de limbo. “A Anvisa reconhece os efeitos terapêuticos, mas não libera a produção nacional, então a mãe tem duas opções: importar a um preço altíssimo ou entrar com uma ação para que o Estado pague, processo que pode demorar anos”, comenta o advogado Ricardo Nemer, que também atua na Reforma.

Em nota, a Anvisa afirmou que está realizando pesquisas com outros países e outras atividades técnicas em busca de regulamentar o cultivo e garantir “o devido controle e a proteção da saúde da população”. Enquanto isso, as famílias que não podem esperar enfrentam o Judiciário para plantar em casa e, assim, produzir o próprio extrato.

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Em novembro de 2016, o primeiro habeas corpus que autoriza o cultivo medicinal do país foi expedido para uma família carioca que já tratava a epilepsia e também aparece no documentário lançado em 2014. Já a primeira autorização para uma associação de cultivo, a de Eduarda e Fabiana, saiu em abril de 2017.

“Temos 75 casos aguardando a autorização para o cultivo e 10 habeas corpus já emitidos. Poderíamos atender mais se tivéssemos recursos humanos para isso”, comenta Nemer. A rede em que atua o advogado atende gratuitamente processos em todo o Brasil de pessoas que precisam dos princípios ativos no tratamento de suas doenças.

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